“De Príncipe Dourado a Tirano que Apodreceu Vivo: A Obsessão Mortal de Henrique VIII e o Terrível Preço de sua Coroa”

Dizem que o fim de um império começa com um sussurro. No caso de Henrique VIII, começou com um odor.
Um cheiro espesso, doce e pútrido que atravessava paredes de pedra e tapeçarias caras, fazendo os criados prenderem a respiração nos corredores. O corpo do rei, outrora símbolo de poder, virilidade e glória dourada, estava apodrecendo em vida.
Era uma ferida que não cicatrizava, uma perna que supurava pus sem fim, um trono com rodas que levava consigo o peso esmagador de uma Inglaterra fraturada.
Mas antes do fedor, houve aplausos. Antes da carne aberta, houve o ouro. Antes do silêncio, houve música.
Henrique não nasceu para ser rei. Nasceu como “peça de reposição”, o segundo filho de um rei em transição. Cresceu entre latins e teologia, cercado por mais livros do que espadas.
Mas quando a morte levou seu irmão mais velho, Arthur, levou junto a inocência de Henrique. No mesmo ato, colocou sobre seus ombros juvenis a coroa fria, pesada e eternamente sedenta por sucessores.
Ele tinha apenas 17 anos quando assumiu o trono.
Jovem, bonito, forte. Um verdadeiro rei renascentista, com corpo de guerreiro e alma de poeta. O povo o amava, as cortes o idolatravam. Os artistas o pintavam como um novo Alexandre, o novo sol brilhante da Inglaterra.
Mas por trás do sorriso perfeito, algo já se movia nas sombras. Uma fome ancestral. Um vazio que não se preenchia com vitórias no campo de batalha ou versos elegantes.
Henrique queria mais. Sempre mais.
E o “mais” que ele queria não era glória militar. Era continuidade. Era um filho, um nome, um espelho vivo que o tornasse eterno.
Catarina de Aragão, sua primeira esposa, tentou cumprir esse dever várias vezes. Mas as perdas se acumulavam como pequenos fantasmas no berço real. Filhos que nasciam mortos, outros que morriam no colo.
Restou apenas Maria. E para Henrique, obcecado pela linhagem masculina, isso era quase como não restar nada.
A frustração virou dúvida corrosiva. A dúvida virou raiva. A raiva virou ruptura.
Ele passou a questionar se aquele casamento, abençoado por Roma e baseado na dispensa papal (pois Catarina fora esposa de seu irmão), era mesmo legítimo aos olhos de Deus.
E quando o Papa recusou-se a anulá-lo, Henrique não hesitou. Desafiou a Igreja, desafiou séculos de tradição sagrada e, num único ato de vontade suprema, arrancou a Inglaterra das mãos de Roma.
Nascia ali a Igreja Anglicana. Não por fé, não por iluminação espiritual, mas por desejo. Por controle. Por um filho.
Henrique não queria ser servo de Deus; queria sentar-se ao lado Dele. A nova igreja lhe deu o que o Papa recusou: liberdade.
Mas liberdade nas mãos de um rei faminto é uma faca afiada.
E com essa faca, Henrique cortou não só laços com Roma. Cortou também destinos, cortou promessas antigas e cortou cabeças.
Entre todas, uma ficou marcada na história com sangue indelével: Ana Bolena.
Ela não era a mais bela da corte, mas era a mais perigosa. Sua presença acendia algo em Henrique que nem a devoção de Catarina, nem as danças da corte, nem os sermões de bispos conseguiam acalmar.
Ana era verbo, veneno e visão de grandeza. E ele a queria.
Não como amante passageira, mas como rainha. A mulher que prometia um novo império dentro do seu ventre.
Ela deu à luz Isabel, uma menina. Mas abortos vieram depois, e com eles o mesmo sentimento sombrio de maldição.
Mas Ana não era submissa como Catarina. Era sagaz, irônica, ambiciosa. E isso, no coração de um rei em desespero, virou ameaça.
Em poucos dias, foi acusada de adultério, incesto e traição. As provas eram frágeis, as testemunhas manipuladas, o julgamento um teatro grotesco. Mas o veredicto já estava decidido antes do primeiro ato.
No cadafalso, Ana subiu com a cabeça erguida, vestida de vermelho. Não chorou, não implorou. Apenas murmurou uma oração.
Dizem que seu sangue respingou nos sapatos de quem a condenou.
Naquela mesma tarde, Henrique caçava, ria e brindava, como se um sacrifício tivesse sido aceito pelos deuses que ele próprio inventava.
No dia seguinte, já havia outra mulher à espera: Joana Seymour.
Joana foi o oposto de Ana. Silenciosa, obediente, dócil. Não encantava; servia. E foi exatamente por isso que sobreviveu — por pouco tempo.
Ela deu a Henrique o que ele queria desesperadamente há décadas: um filho homem. Eduardo. O herdeiro, a vitória final, a paz.
Mas a paz veio ao custo de sangue. Joana morreu dias depois do parto, consumida pela febre puerperal.
E Henrique, por um instante, pareceu humano. Chorou, vestiu-se de luto profundo, mandou erguer um túmulo magnífico em sua homenagem.
Mas dor que não se transforma vira cicatriz. E no caso de Henrique, virou armadura.
Ele nunca mais se casou por amor. Apenas por aliança política, por status ou pelo vício terrível de repetir um ciclo que já tinha matado demais.
A glória do jovem rei dourado começava a apodrecer lentamente sob as vestes reais. E a Inglaterra, sem perceber, era arrastada com ele para um espelho sujo, onde fé, poder e carne se confundiam até se tornarem irreconhecíveis.
Após Joana, vieram mais três esposas. Nenhuma por amor, todas por necessidade. E todas, de algum modo, tocaram o abismo em que Henrique já afundava.
A quarta foi Ana de Cleves. Escolhida por um retrato lisonjeiro, rejeitada pelo cheiro e aparência pessoalmente. Ele a chamou cruelmente de “égua de Flandres” e anulou o casamento sem consumá-lo.
Ela foi esperta. Aceitou o fim, sorriu, aceitou o título de “irmã do rei” e sobreviveu. Uma das únicas que escaparam com a cabeça intacta.
A quinta, porém, não teve a mesma sorte. Catarina Howard era prima de Ana Bolena. Jovem, impulsiva, cheia de vida. E exatamente por isso, uma ameaça.
Henrique já não era o homem que encantava salões. Sua perna infeccionada exalava um fedor que enchia corredores inteiros. Pesava mais de 160 quilos e se locomovia num trono com rodas.
Mas ainda assim exigia devoção e pureza absoluta.
Quando descobriu que Catarina escrevia cartas a um amante jovem, enlouqueceu. Humilhado, a condenou por traição. Ela foi arrastada, decapitada, e seu nome enterrado com os outros fantasmas do rei.
A sexta e última foi Catarina Parr.
Não era paixão; era companhia. Enfermeira disfarçada de esposa. Inteligente o suficiente para sobreviver, discreta o bastante para não ser vista como ameaça.
Ela cuidava das feridas que ninguém mais suportava olhar. Os curativos precisavam ser trocados todos os dias, embebidos em vinagre e óleos fortes para tentar conter o pus.
Mas nada segurava o cheiro.
O rei gritava à noite, esmurrava paredes, sangrava de dor e de raiva impotente. Seus criados se revesavam para estar perto dele, não por lealdade, mas por medo puro.
O corpo do rei era agora um monumento de decadência. E sua mente, um espelho rachado, já não confiava em ninguém.
Dava ordens da cama, punia pelo olhar, temia os próprios filhos. Alimentava-se como um animal ferido, escondido entre paredes douradas e tapetes empapados de perfumes que não escondiam a podridão essencial.
A perna ulcerada, aberta, viva, “chorando”, era a metáfora final de seu reinado. Um poder que já não sustentava a si mesmo, mas que ainda machucava tudo ao redor.
Mesmo assim, ele continuava rei. Porque ninguém ousava destroná-lo. Porque mesmo apodrecendo por dentro, sua palavra ainda era lei absoluta.
Porque em algum lugar daquelas carnes inchadas e respiração podre, ainda havia uma chama — doentia, mas viva — que sussurrava: “Eu sou o escolhido”.
Enquanto o rei apodrecia, a Inglaterra adoecia com ele.
Os mosteiros estavam vazios, as cruzes haviam sido queimadas, os padres perseguidos. O povo, confuso, dividido, órfão de fé, vivia sob o silêncio de um altar sem nome.
Henrique havia rompido com Roma, criado uma nova igreja, saqueado os templos e redistribuído a fé como quem reparte espólios de guerra.
Mas no fundo, ele continuava perdido. As decisões que pareciam estratégicas eram, na verdade, tentativas desesperadas de vencer o tempo.
O tempo que cobrava em carne tudo o que ele havia tomado em sangue.
A política era só uma desculpa para sua ferida nunca fechar. A Reforma, uma máscara para a dor que o consumia. Cada execução, cada mulher trocada, cada inimigo enforcado era um espelho partido no qual ele tentava se ver inteiro.
Nos últimos anos, Henrique não andava; era movido. O trono com rodas substituiu o cavalo de guerra.
Os criados carregavam seu peso imenso, mas nenhum ousava olhar em seus olhos. Dizem que o cheiro de sua perna infeccionada era tão forte que impregnava as cortinas de veludo.
O quarto real se tornou uma câmara de suplício, não só para o rei, mas para todos que o serviam.
Mesmo assim, ele insistia em ser servido como um deus vivo.
Dias se tornaram delírios. Às vezes, Henrique esquecia onde estava. Outras vezes falava com mortos. Chamava por Joana, confundia Maria com Ana, pedia vinho e, em seguida, jogava as taças na parede.
Dava ordens de execução pela manhã e se desculpava à noite, como se o remorso o visitasse apenas ao cair do sol.
Mas não era remorso; era medo. O medo que chega quando o corpo não obedece mais e o trono parece um altar de sacrifício.
Ele pedia para ser virado na cama, não por conforto, mas porque já não suportava o peso do próprio corpo. Uma úlcera aberta, uma boca de carne viva que parecia querer devorá-lo de dentro para fora.
Os médicos tentavam de tudo, mas não por piedade e sim por pânico. Porque se Henrique morresse em meio a delírios, quem herdaria o caos?
O menino Eduardo era frágil. Maria era católica fervorosa. Isabel era filha de Ana Bolena, a herdeira do “erro”.
O país tremia enquanto o rei apodrecia, e ninguém tinha coragem de dizer “acabou”.
Henrique VIII morreu numa madrugada fria, no dia 28 de janeiro de 1547.
Não houve cerimônia grandiosa no momento final, não houve dignidade. Seu corpo inchado, decomposto, exalando um líquido escuro, precisou ser selado às pressas.
As crônicas sussurram um detalhe macabro: ao ser transportado para Windsor, o caixão vazou durante a noite. O fluido do rei escorreu pelos cantos, impregnando a madeira e o chão com o cheiro de um império que finalmente se rendia ao tempo.
Cães vadios teriam lambido o que restou do rei sob o caixão — cumprindo uma profecia antiga que ele tanto temia.
Dizem que nos últimos instantes ele chamou por Thomas Cranmer, o arcebispo que havia nomeado, o homem que selou sua ruptura com Roma.
Mas quando Cranmer chegou, o rei já não falava. Só apertou sua mão com força. Uma última tentativa de controle. Como se, mesmo à beira do nada, ainda quisesse decidir quem seguraria sua queda.
Henrique foi enterrado ao lado de Joana Seymour, a única esposa que lhe deu um filho homem. Um gesto simbólico de amor, ou apenas uma ironia final do destino.
Porque tudo que ele buscou em vida — glória, descendência e imortalidade — se fragmentaria em poucos anos.
Eduardo, o herdeiro tão esperado, reinaria pouco e morreria jovem. Maria tomaria o trono entre sangue e cruz, tentando reverter tudo o que o pai fez.
E Isabel? A filha que ele quase não reconheceu, a “bastarda”, seria a maior rainha que a Inglaterra já viu. Uma mulher. Fruto do ventre que ele mandou decapitar.
O legado de Henrique não cabe numa frase simples. Ele foi um príncipe admirado e um tirano apodrecido. Um reformador religioso e um assassino serial. Um homem que quis ser Deus, mas terminou sozinho, gritando de dor, esquecido emocionalmente por aqueles que o bajulavam.
Sua morte não foi apenas biológica; foi simbólica.
Um lembrete cruel de que o poder, quando não conhece limites, consome o próprio trono até virar pó.
E hoje, quando andamos pelos salões dos castelos ingleses, quando lemos sobre os Tudors, quando olhamos os retratos dourados de Holbein e as coroas em exposição, o que vemos não é apenas história.
É uma advertência.
É carne que sangrou por glória. É a memória de um homem que quis dominar o tempo, mas foi vencido por sua própria febre.
Porque não importa quantos títulos alguém acumule, ou quantas cabeças corte em nome da dinastia. No fim, todos apodrecem iguais.