Recife, 20 de novembro de 1695. A praça pública está lotada. Homens, mulheres e crianças se aglomeram para ver o espetáculo que as autoridades portuguesas prepararam. No centro da praça, uma estaca alta e no topo dessa estaca, a cabeça de um homem. Não é a cabeça de um criminoso comum, é a cabeça de Zumbi dos Palmares, o líder que por décadas desafiou o império mais poderoso do mundo.
Sua cabeça ficará exposta ali por meses, até apodrecer completamente, como aviso para todos os escravos que ousassem sonhar com liberdade. Mas o que poucos sabem é que aquela cabeça representa o fim de algo muito maior, o fim de um sonho que durou quase um século. fim do maior quilombo que já existiu nas Américas. Esta é a história de Palmares e de como escravos construíram uma nação dentro de uma nação.

Para entender o que foi Palmares, precisamos voltar ao ano de 1596. Faz quase 100 anos que os portugueses começaram a traficar africanos para o Brasil. Centenas de milhares de pessoas foram arrancadas de suas terras, acorrentadas em navios imundos e vendidas como gado nas fazendas de açúcar do Nordeste brasileiro. A escravidão era o motor da economia colonial e os escravos eram considerados menos que humanos, mas alguns se recusavam a aceitar esse destino.
Nas matas densas da serra da barriga, na região que hoje conhecemos como Alagoas, grupos de escravos fugitivos começaram a se reunir. No início, eram apenas algumas dezenas, homens e mulheres desesperados que preferiam arriscar a morte nas matas a continuar vivendo sob o chicote. Eles construíram abrigos rudimentares, plantaram roças escondidas e começaram a criar algo que não deveria existir.
uma comunidade de pessoas negras livres. Aquilo que começou como um pequeno esconderijo cresceu e cresceu rápido. Mais escravos fugiam. Alguns vinham das fazendas próximas, outros de regiões distantes, guiados por rumores de um lugar onde negros viviam livres. E Palmares cresceu de dezenas para centenas, de centenas para milhares, até se tornar uma confederação de mocambos, pequenas aldeias fortificadas espalhadas pela serra.
No seu auge, Palmares tinha cerca de 20.000 habitantes. 20.000? Para colocar isso em perspectiva, era maior do que a maioria das cidades brasileiras da época. Recife tinha 15.000 habitantes, Salvador 25.000. Palmares não era apenas um esconderijo, era uma civilização. Os mocambos principais tinham nomes. Macaco era a capital onde ficavam os líderes.
Subupira, Zumbi, Tabocas, Damaceno. Cada Mocambo tinha sua própria organização, suas próprias defesas, suas próprias roças e todos se protegiam mutuamente. A organização social de Palmares era complexa. Eles tinham líderes eleitos. O principal chamado de gangazumba, que significa grande senhor.
Tinham regras, tinham sistema de defesa, tinham agricultura organizada, plantavam milho, feijão, mandioca, batata doce, cana de açúcar, criavam galinhas e porcos, fabricavam ferramentas e armas, faziam comércio com alguns povoados vizinhos, trocando produtos agrícolas por sal, pólvora e ferramentas de metal. Mas a existência de palmares era uma afronta intolerável para os portugueses.
Um quilombo daquele tamanho não era apenas uma perda econômica pela fuga de escravos. Era um símbolo perigoso. Se palmar e sobrevivesse, se prosperasse, todos os escravos do Brasil veriam que a liberdade era possível e o sistema inteiro poderia desmoronar. Por isso, desde o início, Portugal tentou destruir Palmares.
A primeira expedição militar contra Palmares foi enviada ainda no século X. Depois vieram outras e outras e outras. Ao longo de quase 100 anos, 66 expedições militares, portuguesas e holandesas, quando eles ocuparam o Nordeste, foram enviadas para destruir o quilombo. 66. Algumas eram pequenas, apenas algumas dezenas de soldados. Outras eram grandes operações militares com centenas de homens, canhões e cavalaria.
Mas todas falharam, porque os palmarinos conheciam aquela terra melhor do que ninguém, porque lutavam por suas vidas e pela liberdade de seus filhos e porque tinham líderes excepcionais. E então nasceu Zumbi. O ano era 1655. No Mocambo de Palmares, uma criança veio ao mundo. Ninguém sabe exatamente os detalhes de seu nascimento, mas sabemos que ele nasceu livre.
Não tinha memória de correntes, não tinha cicatrizes de chicote nas costas. Ele era um filho de Palmares, nascido na liberdade que seus pais tinham conquistado. Mas sua liberdade durou pouco. Quando zumbi tinha por volta de 6 anos, uma das expedições portuguesas conseguiu capturar algumas pessoas de palmares. Zumbi estava entre elas.
Ele foi levado para Porto Calvo e entregue a um padre chamado Antônio Melo. O padre o batizou com o nome cristão de Francisco. Durante 9 anos, Zumbi viveu com o padre. Aprendeu português fluentemente, aprendeu latim, estudou religião católica. O padre tinha planos para ele, queria fazer daquele menino um exemplo de escravo civilizado e obediente.
Queria provar que até os negros de Palmares podiam ser domesticados. Mas Zumbi nunca esqueceu quem ele era. E aos 15 anos, em 1670, ele fez uma escolha que mudaria sua vida e o destino de palmares. Ele fugiu, voltou para a serra, voltou para sua gente e levou consigo não apenas suas lembranças de liberdade, mas também tudo que tinha aprendido sobre os portugueses, sua língua, suas táticas, suas fraquezas.
Zumbi voltou a Palmares como um guerreiro, alto, forte e com conhecimentos que poucos palmarinos tinham. Rapidamente se destacou nas defesas do quilombo. Era estrategista natural, entendia como os portugueses pensavam e lutavam e usava esse conhecimento para derrotá-los repetidamente. Enquanto isso, a pressão portuguesa sobre Palmares aumentava, os ataques ficavam mais frequentes e mais brutais.
E em 1678, o governador de Pernambuco, Pedro de Almeida, decidiu tentar algo diferente. Em vez de mais uma expedição militar, ele ofereceu um acordo de paz. Ganga Zumba, o líder de Palmares na época, estava cansado. Décadas de guerra constante tinham cobrado seu preço. O acordo parecia razoável.
Os palmarinos que tinham nascido livres em Palmares poderiam continuar livres. Receberiam terras em outro local. Em troca, deveriam devolver os escravos que tinham fugido mais recentemente e parar de aceitar novos fugitivos. Para gangazumba, parecia ser a melhor opção. Pelo menos alguns seriam salvos. Pelo menos alguns viveriam em paz.
Mas Zumbi se opôs violentamente. Para zumbi, aquele acordo era uma traição. Como poderiam devolver irmãos que tinham arriscado suas vidas para chegar a Palmares? Como poderiam fechar as portas para novos fugitivos? Como poderiam aceitar que alguns nascidos livres em Palmares valem mais que outros que tinham nascido em cativeiro, mas lutado pela liberdade? A resposta de Zumbi foi clara.
Ou todos eram livres, ou ninguém aceitaria aquele acordo. O quilombo se dividiu. Kanga, Zumba e seus seguidores aceitaram o acordo e se mudaram para as terras oferecidas pelos portugueses. Mas não duraram muito tempo. Em 1680, Ganga Zumba foi envenenado. Até hoje não se sabe com certeza quem foi o responsável.
Alguns dizem que foram os próprios portugueses que nunca pretenderam honrar o acordo. Outros dizem que foram os palmarinos que o consideravam traidor. O que sabemos é que após a morte de Ganga Zumba, Zumbi se tornou o líder supremo de Palmares. E sob sua liderança, o quilombo entrou em sua fase mais radical e mais perigosa. Zumbi não apenas rejeitou acordos, ele transformou palmares em uma máquina de guerra.

organizou ataques a fazendas, libertou escravos à força, sabotou a economia escravista da região. Para os portugueses, ele se tornou o inimigo público número um. E então Portugal decidiu que estava na hora de acabar com Palmares de uma vez por todas. Em 1694, o governador de Pernambuco contratou Domingos Jorge Velho, um bandeirante paulista famoso por sua brutalidade.
Jorge Velho tinha experiência em destruir aldeias indígenas, agora usaria os mesmos métodos contra palmares. Ele reuniu um exército de aproximadamente 6.000 homens equipados com armas de fogo, canhões e cavalaria. era a maior força militar já enviada contra o quilombo. A campanha de Jorge Velho foi metodicamente brutal.
Ele não apenas atacou os mocambos, ele destruiu as roças, queimou plantações, envenenou fontes de água, capturou e executou palmarinos. Sua estratégia era clara, não deixar nada, não deixar comida, não deixar esperança. O cerco a macaco, o mocambo principal, começou no início de 1694. Os palmarinos resistiram com ferocidade, mas estavam em desvantagem.
Tinham menos armas, menos munição e estavam cercados. A batalha final aconteceu em 6 de fevereiro de 1694. Após dias de bombardeio de canhão, as defesas de macaco começaram a desmoronar. Os soldados de Jorge Velho invadiram o Mocambo. O que aconteceu ali foi um massacre. Homens, mulheres e crianças foram mortos. Muitos palmarinos, vendo que a derrota era inevitável, se jogaram dos penhascos, preferindo a morte, à captura.
Mas Zumbi não estava lá. Ele tinha conseguido escapar com um grupo de guerreiros. e durante os próximos meses continuou lutando. Organizou emboscadas, atacou comboios portugueses, manteve viva a resistência, mesmo quando Palmares como território já não existia mais. Para os portugueses, isso era inaceitável. Enquanto zumbi estivesse vivo, enquanto continuasse lutando, Palmares não estava verdadeiramente destruída.
Eles precisavam capturá-lo, precisavam matá-lo e precisavam que todos vissem seu corpo. Foi então que Antônio Soares entrou na história. Antônio Soares era um dos mais próximos companheiros de zumbi. Tinha lutado ao seu lado por anos. Conhecia seus esconderijos, conhecia suas táticas, conhecia seus segredos.
Mas em novembro de 1695, Antônio Soares foi capturado pelos portugueses e sob tortura, ou talvez sob promessa de liberdade e recompensa, ele traiu. Antônio Soares revelou onde zumbi estava escondido, revelou quem estava com ele, revelou tudo. Em 20 de novembro de 1695, André Furtado de Mendonça liderou um ataque ao esconderijo de Zumbi.
O líder de Palmares lutou, mas estava cercado, estava exausto. E após quase 40 anos de vida, 15 deles lutando contra o império português, zumbi dos palmares foi morto. Mas matar zumbi não foi suficiente para os portugueses. Eles queriam enviar uma mensagem. Queriam garantir que nenhum escravo no Brasil se esquecesse do que acontecia com quem desafiava a ordem colonial.
Por isso, decaptaram zumbi, salgaram sua cabeça para preservá-la e a levaram para Recife, onde foi exposta em praça pública. Ali ficou por meses, como um aviso macabro. As autoridades até publicaram comunicados oficiais descrevendo sua morte para que não houvesse dúvida. Zumbi estava morto. Palmares estava destruída. A resistência tinha acabado, mas tinham subestimado algo fundamental.
Palmares não era apenas um lugar, era uma ideia. A ideia de que pessoas negras podiam ser livres, de que podiam governar a si mesmas, de que podiam criar suas próprias leis e viver com dignidade. E ideias não morrem quando se corta a cabeça de um homem. Nos anos seguintes, a destruição de palmares, outros quilombos surgiram por todo o Brasil. Alguns pequenos, alguns grandes.
Nenhum chegou ao tamanho e a longevidade de Palmares, mas todos existiam porque Palmares tinha provado que era possível resistir, que era possível vencer, mesmo que apenas por algum tempo, que liberdade não era apenas um sonho impossível. Os descendentes dos palmarinos se espalharam. Alguns foram recapturados e reescravizados.
Outros conseguiram se misturar a outras comunidades quilombolas. Outros ainda conseguiram viver como pessoas livres em vilas remotas. O sangue de palmares se espalhou pelo Brasil e com ele as histórias. Durante séculos, a história oficial do Brasil tratou Palmares como uma nota de rodapé.
Zumbi era mencionado brevemente, se é que era mencionado. O quilombo era descrito como um bando de fugitivos criminosos. A resistência era minimizada ou distorcida, mas as comunidades negras nunca esqueceram. Em terreiros de candomblé, em rodas de capoeira, em festas populares, as histórias de Palmares continuavam sendo contadas.
Zumbi se tornou um herói popular, um símbolo de resistência e dignidade. Foi apenas no século XX que a história de Palmares começou a ser resgatada academicamente. Historiadores começaram a estudar documentos da época. Descobriram a extensão real do quilombo, entenderam sua complexa organização social, perceberam que Palmares não era um acampamento temporário de fugitivos, mas uma sociedade estruturada que existiu por quase um século.
E em 1995, no tricentenário da morte de Zumbi, o dia 20 de novembro foi oficialmente declarado Dia da Consciência Negra no Brasil. A data em que a cabeça de zumbi foi exposta como troféu se tornou a data em que sua memória é celebrada como símbolo de resistência. Hoje, na Serra da Barriga, onde ficava o mocambo de macaco, existe um parque memorial.
Não sobrou quase nada das construções originais. Os portugueses foram meticulosos na destruição, mas a Terra está lá, as montanhas estão lá e o que aconteceu ali nunca será apagado. A história de Palmares nos ensina várias lições sobre resistência, obviamente, sobre a capacidade humana de lutar pela liberdade, mesmo nas condições mais impossíveis, mas também sobre a brutalidade necessária para manter um sistema como a escravidão funcionando.

Porque não bastava escravizar. Era preciso destruir qualquer alternativa. Era preciso destruir a esperança. Por isso, Portugal gastou recursos imensos tentando destruir Palmares por quase 100 anos. Porque Palmares provava que o discurso oficial era mentira. Os portugueses diziam que escravos eram inferiores, que precisavam ser tutelados, que não conseguiam se governar.
Palmares provava o contrário e isso era perigoso demais para ser tolerado. Zumbi dos Palmares não foi um herói perfeito. Nenhum herói é. Ele era um líder militar que tomou decisões difíceis, que recusou compromissos, que manteve uma guerra mesmo quando muitos queriam paz, que provavelmente ordenou ações violentas que hoje julgaríamos duramente.
Mas ele também foi um homem que preferiu morrer livre, a viver curvado, que liderou milhares de pessoas em uma resistência que durou décadas, que se tornou um símbolo tão poderoso que os portugueses precisaram exibir sua cabeça em praça pública para tentar destruir esse símbolo. E quanto a Palmares, não foi uma sociedade perfeita.
tinha suas hierarquias internas, tinha seus conflitos, tinha suas injustiças, mas foi uma sociedade criada por pessoas que tinham sido consideradas propriedade. E essas pessoas construíram cidades, plantaram roças, criaram famílias, elegeram líderes, defenderam seu território e viveram como seres humanos livres por quase um século.
Isso não é pouca coisa, isso é extraordinário. Hoje, mais de 300 anos depois, Palmares ainda nos desafia, nos faz perguntar sobre os sistemas que construímos e os sistemas que destruímos, sobre quem tem direito à liberdade e que preço estamos dispostos a pagar por ela, sobre como lembramos o passado e o que fazemos com essas memórias.
A cabeça de zumbi apodreceu naquela praça em Recife há séculos, mas seu nome permanece. Palmares foi destruída em 1694. Mas sua história continua viva. E enquanto houver pessoas lutando por liberdade e dignidade, palmares e zumbi nunca estarão verdadeiramente mortos. Porque no fim isso é o que a história de Palmares nos deixa.
A prova de que é possível resistir ao impossível. a prova de que pessoas consideradas menos que humanas podem construir civilizações. A prova de que liberdade não é algo dado, mas algo conquistado, defendido e preservado a um custo altíssimo. E a certeza de que enquanto houver injustiça, haverá resistência. Sempre haverá um palmares, sempre haverá um zumbi.
que a sede de liberdade é tão antiga quanto a própria humanidade e não há império forte o suficiente para destruí-la completamente. [Música]