Quando o navio negreiro São José atracou no porto do Rio de Janeiro em 15 de março de 1794, trazia apenas 147 africanos acorrentados no porão. Deveria trazer 452. Os outros 305 não morreram de doenças, fome ou maus tratos durante a travessia. Eles escolheram a morte. Em um ato coletivo de resistência que jamais foi esquecido, centenas de homens, mulheres e crianças se lançaram ao Atlântico, preferindo se afogar nas águas geladas do oceano a viver como escravos no Brasil.

Esta é a história real do maior suicídio coletivo da história do tráfico negreiro. Um episódio que abalou até os mais cruéis traficantes de escravos e que permaneceu encoberto por séculos nos arquivos da coroa portuguesa. O navio São José partiu de Luanda, na costa da Angola, em 8 de dezembro de 1793. Era uma embarcação de porte médio com aproximadamente 25 m de comprimento, comandada pelo capitão Jerônimo Lobo da Silva, um português de 48 anos, veterano de 17 travessias atlânticas.
Lobo da Silva era conhecido nos portos africanos como homem eficiente e brutal. Suas viagens anteriores haviam registrado taxas de mortalidade consideradas aceitáveis para os padrões da época. entre 15 e 20% dos cativos. Ele se orgulhava de entregar carga humana em condições que maximizavam o lucro de seus investidores, um grupo de comerciantes do Rio de Janeiro e Lisboa.
O porão do São José havia sido especialmente projetado para o tráfico negreiro. Possuía dois conveses, o superior e o inferior, separados por apenas 80 cm de altura. Os africanos eram acorrentados em fileiras, deitados de lado, encaixados uns contra os outros, como peças de um quebra-cabeça macabro.
Não havia espaço para sentar ou virar. O ar era sufocante, carregado com o cheiro de suor, urina, feeses, vômito e morte. Pequenas aberturas no casco permitiam alguma ventilação, mas nunca suficiente. Durante tempestades, essas aberturas eram fechadas, transformando o porão em uma tumba úmida e escura, onde homens, mulheres e crianças sufocavam lentamente.
Os 452 africanos embarcados em Luanda vinham de diferentes regiões do interior da Angola e do Congo. A maioria era de origem banto, dos povos Ambundo, Ovimbundo e Bacongo. Haviam sido capturados em guerras tribais, sequestrados por caçadores de escravos ou vendidos por chefes locais em troca de armas, tecidos e aguardente.
Alguns eram prisioneiros de guerra, outros vítimas de traições familiares. Muitos eram simplesmente camponeses que foram surpreendidos enquanto trabalhavam em suas roças. Todos compartilhavam agora o mesmo destino, uma viagem de dois meses através do Atlântico, acorrentados como animais rumo a uma vida de escravidão no Brasil.
Entre os cativos estava um homem que os registros portugueses identificavam apenas como um gunga, nome banto que significa trovão. Tinha cerca de 35 anos e era descrito pelos traficantes como de estatura alta e porte atlético. Ngunga havia sido um guerreiro e líder em sua aldeia antes de ser capturado durante um ataque noturno. Durante asanas que passou nos barracões de Luanda, aguardando o embarque, ele observou tudo.
Estudou os movimentos dos guardas, aprendeu algumas palavras em português, compreendeu o funcionamento da máquina escravista. Mas acima de tudo, conversou. Nas noites escuras dos barracões, ele circulava entre os cativos, falando em diferentes línguas bantas, conectando pessoas que pensavam estar sozinhas, plantando uma ideia que cresceria durante a travessia.
A ideia era simples e terrível. Se não podiam ter liberdade, escolheriam como morrer. Se não podiam voltar para suas terras, voltariam para os espíritos dos ancestrais. Se os portugueses queriam suas vidas para trabalho escravo, negariam essa mercadoria da única forma possível. Ngunga falava de Calunga, a grande água que separava o mundo dos vivos do mundo dos mortos.
Para muitos povos bantos, o oceano não era apenas água, era passagem, portal, fronteira entre mundos. Morrer no Calunga significava retornar, atravessar de volta para a terra dos ancestrais. Nos primeiros dias de viagem, o capitão Lobo da Silva seguiu os procedimentos habituais. Uma vez por dia, os africanos eram trazidos ao convés em grupos de 30, ainda acorrentados para receber água e comida.
A refeição consistia em angu de milho ou feijão cozido com carne seca de qualidade inferior. Cada cativo recebia uma caneca de água salgada misturada com um pouco de água doce. O capitão havia aprendido que economizar água doce aumentava os lucros, mesmo que aumentasse também a mortalidade. Os africanos permaneciam no Convés por aproximadamente uma hora, o tempo suficiente para que o porão fosse parcialmente limpo por dois escravos que já faziam parte da tripulação.

Homens que haviam atravessado o oceano em viagens anteriores e agora trabalhavam para os negreiros em troca de melhores condições. Foi durante essas subidas ao Convés queunga começou a organizar o que viria. Ele não podia falar abertamente. Havia sempre guardas armados vigiando, prontos para açoitar qualquer movimento suspeito.
Mas havia formas de comunicação que os portugueses não compreendiam. Um olhar sustentado, uma palavra sussurrada em língua banta, um gesto discreto das mãos. Gunga identificou outros líderes entre os cativos, homens e mulheres que haviam sido importantes em suas comunidades, que mantinham dignidade mesmo acorrentados, que ainda tinham fogo nos olhos.
Uma dessas pessoas era Quitembo, uma mulher de aproximadamente 40 anos, descrita nos registros como robusta e de temperamento difícil. Quitembo havia sido curandeira e sacerdotisa em sua aldeia. Conhecia os rituais de passagem entre mundos. Quando Ngunga conseguiu se comunicar com ela, encontrou aliada determinada. Caetembo começou a cantar.
Durante as horas intermináveis no porão escuro, sua voz se elevava, entoando canções que falavam de ancestrais, de retorno, de liberdade na morte. Os portugueses não entendiam as palavras, mas permitiam os cânticos. Haviam aprendido que cativos que cantavam resistiam melhor à travessia, mantinham-se mais calmos, morriam menos.
Mas aqueles cânticos eram muito mais que lamentação, eram instrução, coordenação, preparação espiritual. Que tempo cantava sobre Calunga, sobre como os espíritos dos ancestrais esperavam do outro lado da grande água, sobre como a morte no oceano não era fim, mas retorno. Ela cantava sobre liberdade, sobre escolha, sobre dignidade.
E lentamente, cativo por cativo, acorrentado por acorrentado, a ideia se espalhava. Quando chegasse o momento, quando engunga desse o sinal, eles se lançariam ao mar, todos juntos, como um só povo. Prefeririam o Calunga, a escravidão. O plano tinha que ser coletivo. Um suicídio individual poderia ser contido, punido, usado como exemplo.
Mas se dezenas, centenas de pessoas se lançassem ao mar simultaneamente, não haveria como impedir. Os marinheiros não conseguiriam resgatar todos. As correntes que os prendiam uns aos outros se tornariam peso que os levaria mais rapidamente ao fundo. A própria estrutura do navio negreiro, projetada para aprisionar se tornaria instrumento de libertação final.
Na terceira semana de janeiro de 1794, o São José atravessava uma das regiões mais perigosas do Atlântico, a área de calmaria equatorial. O vento cessara quase completamente. O navio avançava lentamente, impulsionado por brisas fracas e pela corrente marinha. O calor era insuportável. No porão, a temperatura ultrapassava 45º. Homens, mulheres e crianças sufocavam seus corpos colados uns aos outros encharcados de suor.
Sete cativos morreram naquela semana. Seus corpos jogados ao mar, sem cerimônia, alimento para tubarões que seguiam o navio desde a costa africana. Foi nesse contexto de sofrimento extremo que Ingunga decidiu agir. Mas havia um problema. Os africanos estavam acorrentados. Mesmo que conseguissem subir ao Convem em número suficiente, as correntes os impediriam de se lançar ao mar.
Seria necessário um momento específico quando muitos estivessem livres das correntes, mesmo que temporariamente. Esse momento chegou no dia 23 de janeiro. Naquela manhã, o capitão Lobo da Silva ordenou que todos os cativos fossem trazidos ao Convés. A mortalidade no porão estava aumentando e ele precisava avaliar o estado da carga.
Além disso, o porão precisava de limpeza mais profunda. Os marinheiros jogaram baldes de água do mar e esfregaram o piso de madeira com vassouras duras, tentando remover semanas de imundícia acumulada. Os 445 africanos sobreviventes foram organizados em grupos no Convés, ainda acorrentados, mas com mais espaço entre si que o normal.
Ngunga observou tudo com atenção, contou os guardas, oito marinheiros armados com mosquetes e chicotes. Avaliou a distância até a amurada do navio. Observou como as correntes estavam organizadas. Então esperou. O sol subia no céu sem nuvens. O calor aumentava. Os guardas começaram a ficar sonolentos buscando sombras sob a vela principal.
Foi quando Ingunga viu a oportunidade. Um dos marinheiros encarregados de distribuir água tinha uma chave pendurada no cinto, a chave que abria os cadeados das correntes. O que aconteceu a seguir foi registrado posteriormente por três membros da tripulação que sobreviveram para contar. Ngungá, que estava próximo ao marinheiro que distribuía a água, de repente se lançou sobre ele.
Mesmo acorrentado, usando apenas a força do corpo, derrubou o português, arrancou a chave do cinto e, antes que alguém pudesse reagir, começou a abrir os cadeados dos cativos mais próximos. Tudo aconteceu em segundos. Os guardas gritaram e empunharam armas, mas não tiveram tempo de atirar, porque naquele momento queembo começou a cantar.
Não era mais um lamento, era um grito de guerra, um chamado ancestral. Sua voz se elevou acima do barulho do navio e imediatamente centenas de vozes se juntaram a dela. O som era ensurdecedor, primitivo, assustador. Era o som de um povo escolhendo seu destino. Era o som de liberdade, sendo conquistada da única forma possível naquele momento.
Os primeiros 10 africanos libertados por Ingunga não hesitaram. correram diretamente para a murada do navio e se lançaram ao mar. Seus corpos cortaram o ar e desapareceram nas águas azuis do Atlântico. Então, outros seguiram e outros. Ngunga passou a chave para outra pessoa que começou a libertar mais cativos. O conv se transformou em caos.
Guardas gritavam, atiravam, mas havia pessoas demais se movendo em todas as direções. Alguns africanos, ainda acorrentados, se arrastavam até a amurada e se jogavam mesmo presos uns aos outros, o peso das correntes os levando mais rapidamente ao fundo. Quitembu foi uma das primeiras a pular. Antes de se lançar, ergueu os braços ao céu, gritou palavras em sua língua nativa e então saltou graciosamente, como se estivesse mergulhando em um rio sagrado de sua terra.
Ngunga libertou tantos quanto pôde antes que um tiro de mosquete o atingisse no ombro. Mesmo ferido, ele continuou. Libertou mais cinco pessoas, então, segurando a chave ensanguentada, correu para a amurada. No momento antes de pular, virou-se para o capitão Lobo da Silva. que gritava ordens desesperadas e disse em português imperfeito: “Nós voltar, você ficar”.
Então se lançou ao oceano. O que se seguiu foi o evento mais traumático da carreira do capitão Lobo da Silva. Durante quase 3 horas, africanos continuaram se lançando ao mar. Alguns tinham conseguido se libertar completamente. Outros pulavam ainda acorrentados em grupos de dois, três até cinco pessoas.
As correntes os arrastavam para baixo rapidamente, mas isso não os impedia. Pais seguravam filhos enquanto pulavam. Mulheres grávidas escolhiam a morte antes de parir filhos na escravidão. Idosos que mal podiam andar encontravam força para escalar a amurada e se jogar. A tripulação tentou de tudo para impedir a carnificina.
Marinheiros bloquearam partes do Conv, atiraram em africanos que se aproximavam da amurada, usaram chicotes e porretes para afastar a multidão, mas eram apenas 20 homens contra mais de 400 desesperados por liberdade. O capitão ordenou que os cativos fossem forçados de volta ao porão, mas foi impossível. Aqueles que eram empurrados para baixo voltavam correndo, determinados a alcançar o mar.
Um marinheiro chamado Antônio Pereira, cujo testemunho foi registrado anos depois em Lisboa, descreveu a cena. Era como se uma loucura coletiva tivesse tomado conta daquela gente. Não havia medo nos olhos deles, apenas determinação. Vi uma mãe com uma criança de colo correr para a amurada. Tentei segurá-la, mas ela me empurrou com força que não parecia humana.
Então pulou abraçada ao filho. Vi um velho cego sendo guiado por um jovem. Ambos se lançaram juntos. Vi dezenas de pessoas acorrentadas se atirando, o peso das correntes os puxando para baixo. O mar ao redor do navio ficou cheio de corpos. Alguns nadavam tentando se afastar do barco, mas as correntes os arrastavam. Outros apenas afundavam imediatamente.
Havia um canto, um canto terrível que vinha de todas aquelas vozes, mesmo quando já estavam na água. O capitão lobo da Silva ordenou que os botes fossem lançados para resgatar os africanos. Dois botes com quatro marinheiros, cada um desceram ao mar e conseguiram puxar alguns dos que pularam de volta para o navio.

Mas para cada um resgatado, cinco se afogavam. E muitos dos que foram trazidos de volta imediatamente tentavam pular novamente. Um homem foi resgatado três vezes. Na quarta tentativa, conseguiu se libertar dos marinheiros, correu pelo Convés e se lançou ao mar pela última vez. Desta vez afundando imediatamente. Por volta do meio-dia não havia mais africanos livres no Convés.
Os que não haviam pulado estavam de volta ao porão, acorrentados com correntes duplas. O mar ao redor do São José estava calmo, mas salpicado de corpos. Alguns ainda se moviam fracamente. A maioria havia afundado. Tubarões que seguiam o navio há semanas realizavam um banquete horrível. A tripulação contou os sobreviventes.
Dos 445 cativos que haviam sido trazidos ao convés naquela manhã, apenas 147 permaneciam vivos no navio. 305 africanos haviam escolhido a morte. O capitão Lobo da Silva ficou três dias trancado em sua cabine, incapaz de processar o que havia acontecido. Perdera mais de 2/3 da carga. Financeiramente, a viagem era um desastre.
Mas mais que isso, algo dentro dele havia quebrado. Testemunhar aquele ato coletivo de resistência, ver centenas de pessoas escolhendo a morte com tamanha determinação, abalar a sua visão de mundo. Em seu diário de bordo, conservado nos arquivos da Torre do Tombo em Lisboa, ele escreveu: “Nunca vi tamanha vontade de morrer. Era como se preferissem o fundo do mar a pisar em terras do Brasil.
Que tipo de criaturas são essas que escolhem a morte com tanto fervor? Ou será que somos nós os que os escravizamos, que nos tornamos criaturas de tal crueldade que a morte se torna preferível? A viagem continuou em silêncio sombrio. Os 147 sobreviventes foram mantidos acorrentados no porão com vigilância redobrada.
Não cantavam mais, não falavam. Alguns recusavam comida e água. buscando na inanição a morte que não conseguiram encontrar no oceano. Outros simplesmente deixavam de respirar como se tivessem desligado a vontade de viver. Quando São José finalmente atracou no Rio de Janeiro, em 15 de março de 1794, apenas 139 cativos estavam vivos.
Oito haviam morrido durante o restante da travessia. A chegada do navio causou comoção no porto. Notícias sobre o suicídio coletivo se espalharam rapidamente entre traficantes de escravos, comerciantes e autoridades coloniais. O governador do Rio de Janeiro, Conde de Rezende, ordenou uma investigação.
O capitão Lobo da Silva foi interrogado por três dias. Sua versão dos fatos foi registrada em um relatório oficial que permaneceu arquivado e esquecido por mais de dois séculos. Os investidores do São José sofreram perdas financeiras enormes. Cada africano que se jogou ao mar representava lucro perdido. Eles tentaram processar o capitão por negligência, mas o tribunal colonial determinou que não havia como prever ou impedir um ato de suicídio coletivo daquela magnitude.
O caso criou precedente legal peculiar e sombrio, estabelecendo que a perda de carga por suicídio não poderia ser imputada ao capitão, desde que as condições de transporte seguissemões da época. Mas o impacto do evento foi além do financeiro. Pela primeira vez, traficantes de escravos portugueses e brasileiros tiveram que confrontar uma realidade perturbadora.
Suas vítimas podiam resistir de formas que tornavam todo o empreendimento escravista vulnerável. Se os africanos preferiam a morte à escravidão em números tão grandes, como garantir que as próximas travessias não terminariam da mesma forma? Novas regras foram implementadas. Os navios negreiros passaram a manter os cativos acorrentados mesmo durante as subidas ao convés.
O número de guardas armados foi aumentado. Redes foram instaladas ao redor dos navios para tentar impedir que africanos pulassem ao mar. Mas essas medidas tornavam as viagens ainda mais mortais. A taxa de mortalidade nos navios negreiros aumentou nos anos seguintes ao evento do São José, não apenas por suicídios, mas por doenças e sufocamento, causados pelas condições ainda mais desumanas.
Os 139 sobreviventes do São José foram vendidos em leilão público no Valongo, no Rio de Janeiro. Eles nunca falaram sobre o que havia acontecido. Carregavam o peso de ter sobrevivido quando tantos outros escolheram morrer. Alguns historiadores especulam que aqueles que permaneceram vivos no navio não eram necessariamente covardes ou menos determinados.
talvez simplesmente não estivessem próximos o suficiente da amurada quando tudo aconteceu. Talvez estivessem acorrentados de forma que impossibilitava o movimento, ou talvez acreditassem que podiam resistir de outras formas, sobrevivendo para contar a história, mantendo viva a memória daqueles que escolheram Calunga.
Entre os sobreviventes estava uma jovem de aproximadamente 16 anos, que os registros identificam apenas como Maria. Ela foi comprada por um fazendeiro de café do Vale do Paraíba. Décadas depois, já idosa e liberta após a lei Áurea, Maria contou sua história a um padre que a registrou em suas memórias. “Eu vi minha mãe pular”, ela disse.
“Vi meu pai pular. Vi meus irmãos pularem. Eu queria pular também, mas estava acorrentada longe da borda do navio. Tentei me arrastar, mas não consegui chegar a tempo. Passei o resto da minha vida me perguntando se deveria ter tentado mais. Mas também sei que alguém precisava sobreviver para contar o que aconteceu, para que o mundo soubesse que 300 pessoas escolheram morrer juntas para não viver separadas de sua dignidade.
O capitão Jerônimo Lobo da Silva nunca mais comandou um navio negreiro. Nos anos seguintes ao evento do São José, ele trabalhou em navios mercantes comuns, transportando açúcar, café e algodão. morreu em 1803, aos 57 anos em Lisboa. Em seus últimos anos, tornou-se defensor da abolição do tráfico de escravos, escrevendo cartas para autoridades portuguesas, argumentando que o comércio negreiro era não apenas imoral, mas insustentável.
Vi homens, mulheres e crianças preferirem a morte ao cativeiro”, escreveu em uma dessas cartas: “Vi 300 almas se lançarem ao oceano como se estivessem voltando para casa. Qualquer sistema que leva seres humanos a tal desespero não merece existir.” A história do São José foi deliberadamente suprimida pelas autoridades coloniais e pelos traficantes de escravos.
Relatórios oficiais foram arquivados em locais de difícil acesso. Testemunhas foram desencorajadas a falar. A própria existência do evento foi questionada e negada. Durante mais de 150 anos, o suicídio coletivo de 1794 permaneceu como um segredo sombrio, uma nota de rodapé nos arquivos portugueses, uma história sussurrada entre descendentes de africanos no Brasil.
Foi apenas no final do século XX que historiadores começaram a redescobrir documentos sobre o evento. Pesquisadores brasileiros e portugueses encontraram o diário de bordo do capitão Lobo da Silva. relatórios da investigação colonial, testemunhos de marinheiros, registros de leilão dos sobreviventes. Lentamente, a história completa começou a emergir dos arquivos, revelando um dos atos mais poderosos de resistência coletiva da história da escravidão.
O suicídio coletivo do São José não foi um evento isolado. Registros históricos documentam outros casos de africanos se lançando ao mar durante a Travessia Atlântica. Mas nenhum teve a escala ou o caráter organizado do que aconteceu em janeiro de 1794. A maioria dos suicídios nos navios negreiros eram atos individuais ou de pequenos grupos.
O que tornou o São José único foi a coordenação, a organização, a liderança de pessoas como Ingunga e Quitembo, que transformaram desespero individual em ato coletivo de resistência. Hoje, historiadores e ativistas debatem o significado daquele evento. Alguns o veem como tragédia última, prova do horror absoluto da escravidão que levou seres humanos a escolherem a morte.
Outros o interpretam como ato supremo de resistência e liberdade, demonstração de que, mesmo nas circunstâncias mais opressivas, seres humanos mantém a capacidade de escolher seu destino. Provavelmente é ambos: tragédia e triunfo, desespero e dignidade, morte e liberdade entrelaçados de forma impossível de separar.
Para os descendentes de africanos no Brasil, a história do São José carrega significados profundos. representa a resistência ancestral que sempre existiu, mesmo nos momentos mais sombrios. Representa a recusa em aceitar desumanização, o compromisso com a dignidade, mesmo quando tudo mais foi tirado. E representa o preço terrível que foi pago, as centenas de milhares de vidas perdidas, não apenas no trabalho escravo, mas na própria travessia, nas águas do Atlântico, que se tornaram cemitério para milhões de africanos.
Nas águas do Atlântico, a aproximadamente 500 km da costa do Brasil, no local onde os registros indicam que o São José estava, quando o suicídio coletivo aconteceu, não há marcador, monumento ou memorial, apenas oceano azul se estendendo até o horizonte. Mas para aqueles que conhecem a história, aquelas águas são sagradas, são Calunga.
São a grande água onde 300 almas escolheram retornar aos ancestrais. São o lugar onde pessoas escravizadas demonstraram que havia algo que seus opressores nunca poderiam controlar. A escolha final entre viver como escravo ou morrer como ser humano livre. A história do São José nos força a confrontar perguntas desconfortáveis sobre nossa própria humanidade.
Como uma sociedade chegou ao ponto de transformar seres humanos em mercadoria? Como pessoas comuns, marinheiros, capitães, comerciantes, participaram de um sistema tão cruel? E como aqueles que foram escravizados mantiveram sua humanidade, sua dignidade, sua capacidade de resistir mesmo quando tudo estava perdido? As respostas não são simples, mas a história de Ingunga, Kitembo e dos 303 outros africanos que se lançaram ao mar em janeiro de 1794 permanece como testemunho poderoso.
Testemunho de que a liberdade é valor tão fundamental que pessoas estão dispostas a morrer por ela. Testemunho de que a resistência pode assumir formas que desafiam compreensão. testemunho de que mesmo na maior escuridão, seres humanos encontram formas de afirmar sua dignidade. Quando o navio São José finalmente foi desmantelado anos depois, suas madeiras foram vendidas e reutilizadas em construções no Rio de Janeiro.
fragmentos daquele navio que testemunhou uma das maiores tragédias e um dos maiores atos de resistência da história da escravidão estão espalhados pela cidade, incorporados em casas, igrejas, armazéns. A história que ele carrega permanece ecoando através dos séculos, lembrando-nos do preço terrível da escravidão e da força indomável do espírito humano que escolhe liberdade, mesmo quando liberdade significa apenas a escolha de como morrer.
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