O Escravo Vingador dos Ximenes Que Deu um Fim no Feitor em São João de Meriti

Eu matei o feitor Ferreira na madrugada de 15 de março de 1856. Fiz isso com minhas próprias mãos, as mesmas mãos que ele havia marcado com ferro em brasa 10 anos antes. E se me perguntarem se me arrependo, digo que não. Que faria de novo mil vezes mais. Mas para entender porque um homem chega a esse ponto, precisam conhecer minha história completa.

Meu nome é Tomás e esta é a verdade sobre o que aconteceu naquela fazenda dos Ximenes em São João de Meriti, na Baixada Fluminense. Nasci escravo em 1821 numa propriedade menor perto de Iguaçu. Minha mãe Benedita morreu quando eu tinha apenas 7 anos de uma febre que nunca soubemos o nome. Meu pai eu nunca conheci.

Diziam que era um homem livre, um tropeiro que passou pela região, mas isso nunca fez diferença para mim. Aos 12 anos, fui vendido para a fazenda dos Ximenes, uma propriedade de café que ficava nas terras mais férteis de São João de Meriti. O senhor Joaquim Ximenes era considerado um homem de posses, dono de mais de 100 escravos e 300 alqueires de terra.

Nos primeiros anos, a vida na fazenda era dura, mas suportável. Eu trabalhava no eito, nas lavouras de café que se estendiam até onde a vista alcançava. O feitor da época era um mulato chamado Sebastião, homem severo, mas justo. Ele batia quando precisava, mas não tinha prazer nisso, apenas cumpria sua função. Aprendi a trabalhar sob o sol escaldante.

Aprendi a colher café com rapidez. Aprendi a sobreviver com pouca comida e menos esperança ainda. Tudo mudou em 1846, quando o Sr. Ximenes trouxe Antônio Ferreira para ser o novo feitor. Ferreira era um português baixo e atarracado, com olhos pequenos que pareciam avaliar constantemente o quanto de dor poderia causar antes de quebrar um homem completamente.

Ele chegou em abril, num daqueles dias quentes que anunciam o inverno próximo e desde o primeiro momento soubemos que nossa vida havia mudado para pior. “Vou ensinar vocês o que é trabalho de verdade”, disse ele no primeiro dia, reunindo todos nós no terreiro. “Aqui não vai ter moleza. Quem não render o esperado vai conhecer meu chicote e quem ousar me desafiar vai conhecer coisa pior.”

Ferreira não estava blefando. Na primeira semana ele açoitou cinco homens por motivos que antes nem seriam considerados faltas. Um escravo chamado João levou 20 chibatadas porque parou para beber água antes da hora permitida. Uma mulher chamada Rosa foi amarrada no tronco por um dia inteiro porque cantou enquanto trabalhava.

O feitor dizia que canto era sinal de preguiça, que quem tinha fôlego para cantar tinha fôlego para trabalhar mais. Eu tentei me manter invisível. Trabalhava em silêncio, mantinha a cabeça baixa, evitava qualquer comportamento que pudesse chamar a atenção de Ferreira, mas não adiantou. Em junho daquele mesmo ano, ele me escolheu para uma demonstração.

Foi num sábado, dia em que normalmente terminávamos mais cedo. Eu estava carregando sacos de café para o armazém quando tropecei numa pedra e deixei cair um dos sacos. Parte do café se espalhou pelo chão. Não foi muito, talvez meio quilo no máximo. Mas Ferreira surgiu como se estivesse esperando por aquilo. “Seu desgraçado!” Ele gritou, atravessando o terreiro em passos largos.

“Você sabe quanto vale esse café que você jogou no chão?” “Foi sem querer, senhor feitor”, respondi, já sentindo o medo apertar meu peito. “Eu escorreguei.” Não terminei a frase. Ele me acertou com o cabo do chicote no rosto, abrindo um corte profundo na minha sobrancelha. Caí no chão, atordoado, sentindo o sangue quente escorrer pelo meu rosto, mas ele não tinha terminado.

“Amarra esse cachorro no tronco”, ordenou para dois capangas que o acompanhavam sempre. “20 chibatadas e quero que todos assistam.” Me arrastaram até o tronco no centro do terreiro, arrancaram minha camisa e me amarraram com as mãos acima da cabeça. Os outros escravos foram obrigados a se reunir em volta, formando um círculo.

Eu ouvi os murmúrios assustados. Vi nos olhos deles o mesmo terror que sentia. A primeira chibatada rasgou minha pele como uma lâmina afiada. Mordi os lábios para não gritar, mas na terceira não consegui mais segurar. Na décima, minha visão começou a escurecer. Na vigésima, eu já não sentia mais nada.

Só um peso enorme no peito e um gosto de sangue na boca. Quando me desamarraram, desabei no chão. Ferreira se inclinou sobre mim, seu rosto tão perto que pude sentir o cheiro de cachaça em seu hálito. “Da próxima vez não vai ser só chicote”, ele sussurrou. “Da próxima vez eu marco você com ferro para você nunca esquecer quem manda aqui.” Levaram-me para a senzala.

Uma velha chamada Madalena cuidou das minhas feridas, aplicando folhas e unguentos que aliviavam um pouco a dor. Mas a humilhação, essa não tinha remédio. Fiquei deitado por três dias até conseguir me levantar de novo. Quando voltei ao trabalho, algo dentro de mim havia mudado. O medo ainda estava lá, mas agora era acompanhado de algo mais sombrio, ódio.

Os anos seguintes foram um inferno calculado. Ferreira transformou a fazenda dos Ximenes num campo de tortura. Ele não se contentava em apenas fazer os escravos trabalharem. Ele precisava quebrar nosso espírito, nos lembrar a cada momento que não éramos nada, que nossas vidas não tinham valor algum. Em 1848, ele matou um escravo chamado Miguel.

O homem estava doente, com febre alta, e não conseguiu cumprir a cota de café do dia. Ferreira o arrastou até o terreiro e o açoitou até a morte na frente de todos nós. 50 chibatadas. O Sr. Ximenes estava viajando naquela época e quando voltou e soube do ocorrido, apenas deu de ombros. “Um escravo doente não serve para nada mesmo.”

Disse: “Ferreira fez bem em dar o exemplo.” Foi nesse momento que percebi que não haveria justiça, que não adiantava esperar que o Senhor nos protegesse, que não adiantava acreditar que as coisas mudariam. Se algo fosse mudar, teria que ser pelas nossas próprias mãos. Comecei a planejar em silêncio. Durante o dia, eu era o escravo modelo.

Trabalhava sem reclamar, evitava problemas, mantinha a cabeça baixa. Mas à noite, na senzala, eu conversava em sussurros com outros homens que pensavam como eu. Havia Joaquim, um homem forte como um touro, que tinha perdido a esposa para os açoites de Ferreira. Havia Pedro, jovem e raivoso, cujo irmão tinha sido vendido depois de tentar fugir.

E havia Vicente, o mais velho entre nós, que conhecia a região como ninguém e sabia de caminhos escondidos na mata. “Não podemos simplesmente matar o feitor”, disse Vicente numa noite de Lua Nova em 1850. “Isso seria suicídio. Viriam atrás de nós, nos caçariam com os capitães do mato e nossa morte seria pior que qualquer coisa que o Ferreira já fez.”

“Então, o que sugere?”, perguntou Joaquim, cerrando os punhos. “Que continuemos sofrendo, que esperemos até que ele mate todos nós?” “Sugiro que sejamos inteligentes”, respondeu Vicente, “que esperemos o momento certo, que façamos parecer um acidente.” Mas os anos passavam e o momento certo nunca chegava.

Ferreira parecia estar sempre alerta, sempre rodeado de capangas, sempre armado com sua pistola na cintura e o chicote na mão. Ele dormia numa casa separada, próxima à casa grande, e tinha dois cachorros grandes que latiam ao menor barulho estranho. Em 1852, ele finalmente cumpriu sua ameaça. Eu estava trabalhando na moenda quando uma peça da máquina quebrou.

Não foi culpa minha. A madeira estava podre, mas Ferreira não quis saber de explicações. Ele me arrastou até a forja, aqueceu um ferro com as iniciais dos Ximenes e me marcou nas costas da mão direita. A dor foi indescritível. Pior que qualquer chicotada, pior que qualquer surra, o cheiro da minha própria carne queimando, o som do chiado, a sensação de que minha mão estava sendo arrancada do meu corpo.

Desmaiei e quando acordei, estava novamente na senzala com Madalena cuidando de mim. “Não chore, Tomás”, ela disse com lágrimas nos próprios olhos. “Guarde essas lágrimas. Transforme essa dor em força. Um dia você vai poder fazer justiça.” E foi o que fiz. A partir daquele dia, não pensei em mais nada além de vingança.

Cada noite eu olhava para a marca na minha mão e alimentava o ódio que crescia dentro de mim. Não era mais sobrevivência, era sobre fazer aquele homem pagar por tudo que tinha feito. A oportunidade chegou em março de 1856. O Sr. Ximenes viajou para o Rio de Janeiro para tratar de negócios e levou consigo o filho mais velho e três dos capangas.

Ferreira ficou na fazenda com apenas um ajudante, um homem meio surdo chamado Gonçalo. Era a chance que estávamos esperando havia anos. “É agora ou nunca”, disse Joaquim na noite de 14 de março. “Amanhã de madrugada, antes que o galo cante.” Planejamos tudo nos mínimos detalhes. Vicente conhecia uma trilha na mata que levava até os fundos da casa do feitor.

Pedro ficaria de vigia para avisar se alguém se aproximasse. Joaquim e eu entraríamos na casa. O plano era simples, fazer rápido, fazer em silêncio e fazer com que parecesse que Ferreira tinha sido atacado por ladrões. Saímos da senzala às 3 da manhã. A lua estava escondida atrás de nuvens pesadas e a escuridão era quase completa.

Caminhamos em silêncio pela trilha que Vicente nos indicou. Nossos pés descalços não fazendo barulho na terra úmida. Os cachorros de Ferreira estavam presos numa corrente do outro lado da casa. Tínhamos preparado carne com ervas que Madalena disse que fariam os animais dormirem e Pedro a tinha jogado para eles horas antes.

Chegamos aos fundos da casa. A porta estava trancada, mas a janela do quarto estava entreaberta. Joaquim, que era o mais forte, me ergueu até a janela. Abri devagar, centímetro por centímetro, rezando para que não rangesse. Entrei no quarto escuro, meu coração batendo tão forte que tinha certeza de que iria acordar o feitor. Mas Ferreira dormia profundamente, roncando alto, o cheiro de cachaça impregnando o ar.

Vi sua pistola sobre a mesa ao lado da cama. Vi o chicote pendurado na parede e naquele momento, todos os anos de sofrimento, todas as marcas no meu corpo, todas as humilhações e toda a dor se concentraram num único ponto incandescente no meu peito. Abri a porta dos fundos para Joaquim entrar. Ele carregava uma corda grossa que havíamos roubado do armazém.

Nos aproximamos da cama, movendo-nos como fantasmas. Joaquim segurou os braços de Ferreira enquanto eu cobria a sua boca com minha mão. A mão marcada, a mão que ele havia queimado. Ferreira acordou em pânico, seus olhos se arregalando ao me reconhecer na penumbra. Tentou gritar, mas minha mão estava firmemente pressionada contra sua boca.

Tentou se debater, mas Joaquim era forte demais. Vi o medo nos olhos dele, o mesmo medo que eu tinha visto nos olhos de Miguel, de João, de Rosa, de todos nós durante todos aqueles anos. “Você lembra do que disse?”, sussurrei no ouvido dele, “que ia me marcar para eu nunca esquecer. Pois bem, feitor, eu nunca esqueci.”

“E agora você vai pagar.” Não vou descrever em detalhes o que fizemos naquela noite. Basta dizer que Ferreira levou muito tempo para morrer e que cada segundo foi deliberado. Quando terminamos, colocamos seu corpo numa posição que sugeria luta. Espalhamos alguns objetos pela casa como se tivesse havido um roubo, e levamos algumas moedas e uma faca que estavam sobre a mesa.

Saímos da mesma forma que entramos, silenciosos como a própria noite, voltamos para a senzala antes que o sol nascesse. Ninguém nos viu, ninguém suspeitou. Quando descobriram o corpo de Ferreira, na manhã seguinte, houve grande alvoroço. O Sr. Ximenes voltou às pressas do Rio de Janeiro. Chamaram o delegado de polícia de São João de Meriti, um homem gordo e preguiçoso chamado Tavares.

Investigaram, fizeram perguntas. Mas chegaram à conclusão óbvia: ladrões tinham invadido a propriedade, matado o feitor e roubado alguns pertences. Alguns escravos foram interrogados, eu inclusive. Olhei nos olhos do delegado e disse com a voz mais neutra que consegui: “Eu estava dormindo, senhor. Não ouvi nada.” E ele acreditou.

Por que não acreditaria? Afinal, éramos apenas escravos, invisíveis, inofensivos. Nos dias que se seguiram, percebi uma mudança na fazenda. Os outros escravos olhavam para mim de forma diferente, não com medo, mas com algo próximo ao respeito. Ninguém falou nada abertamente, mas todos sabiam. Todos entendiam que havia sido justiça, não assassinato, que um homem que torturou e matou dezenas de pessoas havia finalmente recebido o que merecia. O Sr. Ximenes contratou um novo feitor, um homem chamado Rodrigues. Este era diferente, severo, sim, mas não cruel. Ele batia quando necessário, mas não com prazer. Não torturava, não matava. A vida na fazenda continuou difícil, porque a escravidão em si é uma violência impossível de suavizar. Mas pelo menos não vivíamos mais sob o reinado de terror que Ferreira havia estabelecido.

Passei mais 7 anos naquela fazenda. Em 1863, quando tinha 42 anos, consegui comprar minha alforria com dinheiro que havia economizado, fazendo trabalhos extras nos domingos. Alguns escravos conseguiam guardar moedas assim, vendendo pequenos produtos ou fazendo serviços para pessoas fora da fazenda. Levou anos, mas finalmente juntei o suficiente.

Quando recebi minha carta de alforria das mãos do Sr. Ximenes, senti um misto de alegria e vazio. Era livre, sim, mas tantos outros continuavam presos. Joaquim ainda estava lá. Pedro ainda estava lá. Vicente havia morrido dois anos antes de velhice, nunca tendo conhecido a liberdade. Saí de São João de Meriti e fui para o Rio de Janeiro.

Arranjei trabalho como carpinteiro, ofício que havia aprendido nos anos de cativeiro. Vivi uma vida simples, discreta, sempre guardando meu segredo. Casei-me em 1865 com uma mulher livre chamada Josefa. Tivemos três filhos, todos nascidos livres, graças a Deus. A Lei Áurea foi assinada em 1888, quando eu já estava com 67 anos.

Chorei naquele dia. Chorei pelos que não viveram para ver aquele momento. Chorei por Miguel, por Vicente, por minha mãe Benedita. Chorei pela justiça que chegou tarde demais para tantos. Joaquim me procurou alguns meses depois da abolição. Ele havia ficado na região de São João de Meriti, trabalhando como homem livre numa pequena propriedade.

Nos abraçamos como irmãos, porque era isso que éramos. Irmãos forjados no sofrimento, unidos por um segredo que levaríamos para o túmulo. “Você se arrepende?”, ele me perguntou numa tarde enquanto bebíamos cachaça em minha casa. Olhei para ele, depois para a marca na minha mão, ainda visível depois de tantos anos.

Pensei em tudo que havia acontecido, em todas as vidas que Ferreira destruiu, em todas as vidas que foram salvas depois que ele morreu. “Não”, respondi, “não me arrependo. Fiz o que era necessário. Fiz justiça.” Ele assentiu. E não falamos mais sobre o assunto. Agora tenho 82 anos. Minha saúde está falhando e sei que não tenho muito tempo.

É por isso que decidi contar esta história, não para me glorificar, mas para que fique registrado, para que as pessoas saibam que nem sempre a justiça vem dos tribunais ou das leis. Às vezes ela vem das mãos calejadas de um homem que foi empurrado além de seus limites. Matei o feitor Ferreira em 15 de março de 1856. Fiz isso porque ele matou, torturou e humilhou dezenas de pessoas inocentes.

Fiz isso porque ninguém mais faria. Fiz isso porque, no final das contas, mesmo um escravo tem dignidade, tem limites, tem o direito de defender sua própria humanidade. E se isso faz de mim um assassino aos olhos de alguns, que seja. Prefiro ser um assassino livre do que um escravo covarde.

Prefiro ter feito algo, mesmo que terrível, do que ter passado minha vida inteira aceitando passivamente a crueldade. Esta é minha história, esta é minha confissão. E quando eu morrer, carregarei esta verdade comigo, sabendo que fiz o que tinha que ser feito, que dei um fim ao feitor dos Ximenes, que vinguei não apenas a mim mesmo, mas a todos aqueles que não puderam se vingar.

Que Deus me perdoe, se é que preciso de perdão. Mas eu, Tomás, escravo que foi e homem livre que morreu, não me arrependo de nada.

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