Ninguém na fazenda Santa Rita do Recôncavo imaginava que aquele homem de 32 anos, considerado o escravo mais bonito e cobiçado de toda a região, guardava uma sede de vingança tão profunda que em uma única noite de junho de 1839 tiraria a vida de cinco mulheres da família senhorial. Mas antes de entender como isso aconteceu, precisamos voltar ao ano de 1835, quando Tomás chegou àela propriedade de cana de açúcar no interior da Bahia.

Tomás era um homem alto, de ombros largos e músculos bem definidos pelo trabalho pesado. Tinha pele negra reluzente, olhos expressivos e um rosto que chamava atenção por onde passava. Nascera em uma fazenda menor perto de Cachoeira, filho de uma escrava de ganho e de um pai que nunca conheceu. Aos 28 anos, foi vendido para a fazenda Santa Rita por um preço três vezes maior que o normal.
O motivo não era apenas sua força física ou habilidade no trabalho, era sua aparência. A fazenda Santa Rita pertencia à família Cavalcante, uma das mais ricas e influentes do recôncavo baiano. O patriarca coronel Antônio Cavalcante havia morrido do anos antes em 1833, deixando a propriedade nas mãos de sua viúva, dona Eugênia, uma mulher de 53 anos, conhecida por seu temperamento autoritário e caprichoso.
Ela vivia na casa grande com suas quatro filhas. Francisca, de 35 anos, também viúva. Mariana de 32, Adelaide de 28 e a caçula Beatriz de apenas 23 anos. Nenhuma delas havia se casado, exceto Francisca, cujo marido morrera de febre amarela, deixando-a sem filhos. Aquela casa era um matriarcado incomum para a época.
Cinco mulheres controlando uma das maiores plantações de cana de açúcar da região, comandando mais de 200 escravos, administrando negócios que a maioria dos homens considerava complexos demais para mentes femininas. Dona Eugênia provava todos os dias que estavam errados. A fazenda prosperava sob seu comando, mas havia algo de perturbado naquela casa.
Algo que os escravos percebiam, mas nunca ousavam comentar abertamente. Quando Tomás chegou à fazenda em março de 1835, foi imediatamente designado para trabalhar na Casa Grande, não nos canaviais. Dona Eugênia disse que ele seria responsável por trabalhos pesados dentro da propriedade: carregar móveis, fazer reparos, cuidar dos cavalos, buscar água do poço, trabalhos que o mantinham sempre perto da casa.
sempre visível. Nos primeiros dias, Tomás achou aquilo uma sorte. Trabalhar na Casa Grande era considerado melhor do que o trabalho brutal no Eito, sob o sol escaldante, cortando cana das 5 da manhã até o anoitecer. Ele teria comida melhor. Dormiria em um quarto nos fundos da casa em vez da cenzala lotada. Usaria roupas menos rasgadas, mas logo descobriu que havia um preço a pagar.
Francisca foi a primeira. Numa tarde quente de abril, ela o chamou para seu quarto, alegando que precisava que ele movesse um armário pesado de lugar. Quando Tomás entrou no cômodo, ela trancou a porta atrás dele. Usava um vestido de tecido fino, cabelos soltos, um perfume adocicado que enjoava. “Tira a camisa”, ordenou ela com uma voz que não admitia a recusa.
“Quero ver se você é mesmo tão forte quanto dizem”. Tomás obedeceu. O que mais poderia fazer? Ela era a senhora. Ele era propriedade. Quando tirou a camisa, Francisca aproximou-se e passou as mãos por seu peito, seus braços, suas costas, como quem avalia um cavalo no mercado. Depois ordenou que ele a carregasse até a cama e então aconteceu o que ele já temia que acontecesse.
Quando terminou, Francisca disse com frieza: “Você não vai contar isso para ninguém. Se contar, mando te açoitar até arrancar a pele das costas. Entendeu? Tomás apenas a sentiu, sentindo uma mistura de humilhação e raiva que queimava no peito. Mas aquilo foi apenas o começo. Nas semanas seguintes, as outras irmãs começaram a chamá-lo também.
Mariana precisava que ele a ajudasse a alcançar algo no alto de um armário e acabava encurralando-o contra a parede. Adelaide inventava desculpas para que ele a acompanhasse até a tulha de açúcar, longe dos olhares. Beatriz, a mais jovem, era a mais descarada de todas. Simplesmente ordenava que ele fosse ao seu quarto à noite, depois que todos dormiam.
E dona Eugênia, a matriarca, também quis sua parte. Numa noite sufocante de maio, ela o chamou para massagear suas costas, alegando dores terríveis. Mas o que começou como massagem terminou em algo muito diferente. Depois, ela disse a mesma coisa que a filha. Isto fica entre nós. Uma palavra e você conhecerá o chicote de couro cru.
Tomás vivia um pesadelo. Durante o dia, fazia os trabalhos que lhe ordenavam sob o sol. A noite era convocado aos quartos das senhoras, uma após a outra, às vezes duas na mesma noite. Elas o tratavam como objeto, como brinquedo, como animal de estimação. Não havia gentileza, não havia consideração, apenas ordens e ameaças.
Ele tentou falar com o feitor, um mulato livre chamado Severino, mas o homem apenas riu. Você está reclamando de qu, rapaz? Tem teto, comida e ainda por cima assim que era em você. Outros no seu lugar agradeceriam. Tomás percebeu que estava sozinho naquilo. Os outros escravos da fazenda o olhavam com uma mistura de inveja e desprezo.
Achavam que ele tinha privilégios, que vivia uma vida fácil. não faziam ideia do inferno que ele enfrentava. Como poderiam entender? Para eles, um homem sendo desejado por mulheres era motivo de orgulho, não de sofrimento. Não compreendiam que não havia escolha ali, não havia desejo da parte dele, apenas obediência forçada sob ameaça de violência.
As cinco mulheres começaram a brigar entre si por sua atenção. Francisca acusava Adelaide de monopolizá-lo. Mariana reclamava que Beatriz o chamava com mais frequência. Dona Eugênia, cansada das discussões das filhas, estabeleceu uma espécie de cronograma. Cada uma teria direito a convocá-lo em determinados dias da semana.
discutiam aquilo na mesa de jantar como quem discute a divisão de um bem qualquer. Tomás era tratado literalmente como mercadoria compartilhada. Em setembro de 1835 aconteceu algo que piorou tudo. Adelaide descobriu que estava grávida, entrou em pânico absoluto. Uma mulher solteira da alta sociedade baiana grávida seria um escândalo insuportável.
Mas pior ainda, todos saberiam de quem era o filho pela cor da pele. Dona Eugênia resolveu o problema da forma mais cruel possível. Obrigou a Delaide a tomar uma mistura de ervas abortivas que quase a matou. A moça passou três dias com febres altíssimas, sangrando, delirando. Quando finalmente o aborto aconteceu, dona Eugênia mandou chamar Tomás ao seu escritório.
“Isto foi culpa sua”, disse ela, batendo com uma régua na mesa. “Você engravidou minha filha, por isso vai receber 20 chibatadas para aprender a ter mais cuidado.” Tomás não podia acreditar no que ouvia. Ele não tinha escolha naquilo. Era convocado, ordenado, ameaçado e agora seria punido por uma consequência sobre a qual não tinha controle.
Levaram-no ao tronco no pátio central da fazenda, amarraram seus pulsos e tornozelos. O feitor severino aplicou 20 chicotadas nas costas nuas de Tomás, enquanto todos os outros escravos eram forçados a assistir para que servisse de exemplo. As senhoras observavam da varanda da casa grande. Quando terminou, as costas de Tomás estavam em carne viva.
Levaram-no para seu quarto e o trancaram lá por três dias, sem comida suficiente, sem tratamento adequado para os ferimentos. A dor era insuportável, mas pior que a dor física era a humilhação, a injustiça, a certeza de que ele não era visto como ser humano por aquelas mulheres. Enquanto se recuperava deitado de bruços no pequeno colchão de palha, Tomás tomou uma decisão.
Não sabia ainda como, mas um dia faria aquelas mulheres pagarem por tudo que haviam feito, por cada humilhação, por cada noite em que o usaram como objeto, por terem transformado sua existência em um inferno disfarçado de privilégio. Passou meses planejando, observava tudo, registrava mentalmente cada detalhe da rotina da casa grande.
sabia que dona Eugênia tomava chá de valeriana todas as noites para dormir, que Francisca mantinha uma pistola carregada na gaveta da cômoda, herança do falecido marido, que a cozinha ficava vazia depois das 10 da noite, que as portas dos quartos eram trancadas por dentro, mas as janelas ficavam abertas por causa do calor.
Ele precisava de uma oportunidade e ela veio em junho de 1839. Naquele mês, houve uma grande festa na fazenda vizinha, celebrando o aniversário de outro senhor de terras. Quase todos os feitores e escravos de confiança foram levados para ajudar nos preparativos e servir na festa, já que era costume entre as famílias ricas ajudarem-se mutuamente nesses eventos.
A fazenda Santa Rita ficaria praticamente vazia por uma noite inteira. Tomás foi um dos poucos que ficaram. alegou estar doente, com dores nas costas que nunca haviam cicatrizado completamente desde o açoitamento. Dona Eugênia permitiu que ficasse, mas com uma condição. Ele deveria estar disponível caso alguma das senhoras precisasse de algo durante a noite.
Era tudo o que ele precisava ouvir. Naquela tarde de 23 de junho de 1839, Tomás começou a executar seu plano. Primeiro foi até a cozinha e pegou uma faca grande usada para cortar carne. Escondeu-a sob a camisa. Depois encontrou um frasco de arsênico que era usado para matar ratos na tulha. Guardou-o no bolso. Quando a noite chegou, a casa grande estava silenciosa.
As cinco mulheres jantaram na sala principal, conversando sobre futilidades alheias ao que estava por vir. Tomás serviu o jantar como sempre, com a mesma expressão neutra de sempre. Depois recolheu-se ao seu quarto nos fundos e esperou. A meia-noite começou. Beatriz foi a primeira. Como sempre fazia nas noites em que os empregados estavam fora.
Ela bateu na porta do quarto de Tomás e ordenou que ele a segue. Caminharam em silêncio pelo corredor até o quarto dela no segundo andar. Quando entraram e ela trancou a porta, virou-se para ele com aquele sorriso prepotente que ele tanto odiava. “Tira a roupa”, ordenou. Mas desta vez Tomás não obedeceu. Em vez disso, sacou a faca de dentro da camisa.
Os olhos de Beatriz se arregalaram de surpresa e medo. Ela abriu a boca para gritar, mas Tomás foi mais rápido. Cobriu-lhe a boca com uma mão e com a outra. Enfiou a faca em seu peito com toda a força que tinha. Uma vez, duas vezes, três vezes. O corpo de Beatriz desabou no chão sem fazer muito barulho.

Tomás limpou a faca no vestido dela e saiu do quarto, trancando a porta por fora com a chave que ela sempre deixava na fechadura. Adelaide foi a segunda. Ele bateu na porta dela e disse que Beatriz havia pedido que a chamasse. Quando Adelaide abriu a porta, ainda sonolenta, Tomás entrou rapidamente e fechou a porta.
Ela não teve tempo de reagir antes que a faca encontrasse sua garganta. Mariana acordou com os ruídos estranhos do corredor. Quando abriu a porta do quarto para investigar, encontrou Tomás parado ali, coberto de sangue. Ela começou a gritar, mas ele foi rápido, empurrou-a de volta para dentro do quarto e fez o mesmo que havia feito com as outras.
Francisca tentou se defender, correu até a cômoda, onde guardava a pistola do marido morto, conseguiu pegá-la e até apontou para Tomás, mas suas mãos tremiam tanto que não conseguiu atirar antes que ele se jogasse sobre ela. A luta foi breve e brutal. Dona Eugênia foi a última. Quando ouviu os gritos e os barulhos, trancou-se no quarto e empurrou um armário contra a porta.
Mas Tomás entrou pela janela, subindo pelo telhado como um animal acuado, que finalmente se volta contra os caçadores. Ela implorou. Pela primeira vez em 4 anos, uma daquelas mulheres falou com ele não como uma ordem, mas como um pedido. Por favor, não faça isso. Eu te dou dinheiro. Te dou sua carta de alforria. Você pode ir embora livre.
Tomás olhou para ela com olhos vazios. Vocês nunca me viram como humano disse com voz cansada. Agora vão morrer, sabendo que eu também nunca vi vocês como humanas. Quando terminou, a casa grande estava silenciosa novamente. Cinco corpos, cinco mulheres que pensavam que podiam fazer o que quisessem com outro ser humano sem nunca pagar por isso.
Tomás lavou-se no poço do pátio, queimou as roupas manchadas de sangue na fornalha da cozinha e vestiu roupas limpas. Depois pegou comida, água, uma faca limpa e o pouco de dinheiro que encontrou no escritório de dona Eugênia. Antes de sair, passou pelos quartos das senhoras uma última vez. Não sentiu remorço, não sentiu satisfação, sentia-se vazio.
Fugiu pela mata fechada em direção ao norte, rumo aos quilombos que sabia existirem nas montanhas, além de cachoeira. Era uma jornada perigosa, mas preferiu arriscar a liberdade incerta na fuga do que permanecer mais um dia naquele inferno. Os corpos foram descobertos dois dias depois, quando os empregados voltaram da festa na fazenda vizinha. O horror foi indescritível.
Nunca tinha acontecido nada parecido naquela região. Cinco mulheres da alta sociedade assassinadas na própria casa. A notícia se espalhou pelo recôncavo como fogo em palha seca. As autoridades organizaram uma caçada massiva. Capitães do mato, milícias, até soldados da guarda provincial foram mobilizados. Ofereceram recompensas enormes por Tomás vivo ou morto.
Preferiam vivo para que pudesse ser executado publicamente como exemplo, mas nunca o encontraram. Alguns dizem que ele conseguiu chegar a um quilombo nas montanhas e viveu lá até a idade avançada, protegido por outros fugitivos que admiravam sua coragem. Outros contam que morreu na fuga, perdido nas matas, devorado por animais ou morto de fome.
A quem afirme que conseguiu chegar até a baía de todos os santos e pegou um navio para a África, voltando à terra de seus antepassados. A verdade ninguém sabe. O que se sabe é que o caso das cinco senhoras da fazenda Santa Rita se tornou lenda no recôncavo baiano. Durante décadas, senhores de escravos contavam a história como aviso dos perigos de dar muita liberdade aos cativos.
Mas entre os escravizados, a história era contada de outra forma, como exemplo de que até o mais oprimido pode se revoltar quando levado além de seus limites. A fazenda Santa Rita foi herdada por um primo distante da família Cavalcante, que morava no Rio de Janeiro. Quando chegou para assumir a propriedade e ouviu toda a história, ficou tão perturbado que vendeu tudo e voltou para a corte.
A fazenda mudou de mãos várias vezes ao longo dos anos seguintes. Diziam que era amaldiçoada, que os fantasmas das cinco mulheres assombravam os corredores da Casagre. Em 1865, a casa foi destruída por um incêndio de origem desconhecida. Alguns viram nisso a confirmação da maldição. Outros disseram que foram os próprios escravos da fazenda que atearam fogo.
Cansados de trabalhar em um lugar com história tão sombria. O que aconteceu naquela noite de junho de 1839 levantou questões que a sociedade da época não queria enfrentar. Será que um escravo podia ser vítima de abuso sexual? Será que mulheres podiam ser perpetradoras de violência? Será que o sistema inteiro da escravidão era intrinsecamente violento e corruptor, transformando senhores em monstros e escravos em mercadorias? Essas perguntas incomodavam porque exigiam que as pessoas olhassem para aspectos da escravidão que preferiam ignorar. Era
mais fácil ver Tomás apenas como um assassino monstruoso do que reconhecer que ele foi levado à aquele ponto por anos de abuso, humilhação e desumanização sistemática. A história de Tomás não justifica seus atos finais. Tirar cinco vidas humanas é sempre uma tragédia, independente das circunstâncias. Mas sua história expõe a brutalidade de um sistema que transformava pessoas em propriedade, que permitia que senhores exercessem poder absoluto sobre outros seres humanos, que criava situações onde a violência era não apenas possível, mas
quase inevitável. Hoje, quase 200 anos depois, a história do homem que aniquilou as cinco senhoras da fazenda Santa Rita continua sendo contada no Recôncavo Baiano. Já não se sabe mais onde termina a verdade e onde começa a lenda, mas a essência permanece. é a história de um homem que foi tratado como objeto de desejo, mercadoria a ser compartilhada, animal a ser usado e descartado.
Até que um dia decidiu que não aceitaria mais. E naquela decisão, por mais terrível que tenha sido sua execução, há um lembrete importante para todas as gerações. Todo ser humano tem um limite. E quando esse limite é ultrapassado repetidamente, quando a dignidade é pisoteada sem parar, quando não há mais esperança de justiça ou libertação, até o mais subjugado pode se transformar em algo perigoso.
A escravidão no Brasil durou oficialmente até 1888. Quase 50 anos depois dos eventos na fazenda Santa Rita. Durante esse tempo, quantos outros Tomás existiram? Quantos outros homens e mulheres foram abusados, humilhados, desumanizados por seus senhores? Quantos guardaram sua dor em silêncio? Quantos se revoltaram? Quantos morreram sem nunca conhecer liberdade ou justiça? A história não registra a maioria desses nomes, mas registrou o de Thomás, o escravizado mais cobiçado do recôncavo, que numa noite de 1839 decidiu que preferia ser lembrado como
assassino do que continuar vivendo como objeto.