A noite caiu sobre o recôncavo baiano como um manto de luto que a Terra já conhecia, de cor densa, abafada, carregada daquele calor úmido que grudava na pele e fazia os suores escorrer pelas costas dos homens e mulheres que trabalhavam sob o sol inclemente durante o dia. O vento não soprava.

O silêncio era quebrado apenas pelo canto rouco dos sapos nas margens do rio Paraguaçu e pelo ranger distante de uma carroça que subia a estrada de terra batida em direção à Casa Grande do Engenho Santa Efigênia. Era março de 1879 e algo podre pairava no ar. Não apenas o cheiro adocicado da cana fermentando nos tachos, mas algo mais profundo, mais antigo, como se a própria Terra soubesse que naquela noite um pacto seria selado, uma transação que os livros de história jamais ousariam registrar.
Dentro da biblioteca enfumaçada, iluminada apenas por candelabros de prata, o coronel Anastro Sampaio de Albuquerque observava suas três filhas sentadas no sofá de veludo vermelho. Maria da Glória, 17 anos. Bernardina, 15, e a caçulfigênia, apenas 13. Enquanto sua mão trêmula, segurava um cálice de conhaque francês e seus olhos revelavam a decisão que já havia tomado.
Uma decisão tão monstruosa que condenaria não apenas aquelas meninas, mas toda a sua linhagem ao esquecimento e à maldição. O coronel Anastásio era um homem destruído por dentro, embora sua postura ainda carregasse a arrogância dos senhores de engenho, que haviam construído fortunas sobre o sangue e o suor de centenas de africanos escravizados.
Viúvo há do anos, desde que dona Eolia morrera de febre amarela, ele via seu império desmoronar como castelo de areia sob a maré. As dívidas com os comerciantes do porto de Salvador haviam se acumulado numa velocidade assustadora. A safra de 1878 fora destruída por uma praga. Os escravos mais fortes haviam fugido aproveitando o sei da desorganização causada pela morte da Sinh.
E os credores batiam a porta com uma insistência que roubava seu sono. Mas o que verdadeiramente corroía a alma do coronel não era ruína financeira, menos era o vício. Old as noites intermináveis nas mesas de carteado das casas clandestinas de cachoeira, onde perdera não apenas dinheiro, mas terras, gado, até mesmo a baixela de prata que pertencera a sua avó.
E naquela noite fatídica, quando já não tinha mais nada a oferecer, quando o português Baltazar Figueiredo, traficante de escravos e agenciador de carne humana, lhe fizera uma proposta indecente. O coronel não hesitara. Suas filhas dissera Baltazar com aquele sotaque carregado de Lisboa. Os olhos pequenos brilhando de malícia enquanto soprava a fumaça do charuto cubano.
Tem um fazendeiro no interior de Minas, homem de posses, viúvos 50 e poucos anos. Procura esposas jovens, castas, de boa família, pagará bem por três meninas de linhagem comprovada. E eu, meu caro coronel, estou disposto a quitar todas as suas dívidas e ainda lhe entregar sete escravas de primeira menos moças jovens, fortes, recém-chegadas da costa da mina, negras, bonitas, prontas para o trabalho ou para outros serviços.
Coronel bebera o conhaque de um gole só, sentindo o líquido queimar sua garganta como se fosse a própria condenação, descendo por seu corpo. Olhara para o retrato de dona Eulalia na parede e imaginara o que ela diria se estivesse viva. Mas ela não estava e as dívidas eram reais. E a proposta de Baltazar ressoava em seus ouvidos, como o canto de uma sereia, levando marinheiros à perdição.
Naquela mesma noite, após mandar chamar as filhas à biblioteca, o coronel não encontrou palavras para suavizar o que tinha a dizer. Maria da Glória, a mais velha, compreendeu primeiro. Seus olhos castanhos se arregalaram de horror. Suas mãos começaram a tremer e ela deixou escapar um gemido abafado que soou como o último suspiro de algo puro morrendo dentro dela.
Bernardina começou a chorar copiosamente, suas lágrimas manchando o vestido de organza branca que usara para o jantar. Mas foi, a caçula de olhos verdes herdados da mãe, quem pronunciou as palavras que perseguiriam o coronel até seu último dia. O Senhor nos vendeu, pai, como escraves, somos mercadoria agora.
A verdade daquela acusação perfurou o peito do coronel como uma lança, mas ele já havia assinado o contrato, já havia bebido o vinho envenenado da perdição. Três dias depois, sob o pretexto de uma viagem para visitar parentes em São Paulo, as três meninas foram colocadas numa carruagem fechada, acompanhadas por dois capangas de Baltazar, homens rudes, de faces marcadas por cicatrizes, que falavam pouco e olhavam demais.
A última imagem que tiveram de sua casa foi a figura curvada do pai na varanda. Um homem quebrado que não teve coragem sequer de acenar. O destino que aguardava as filhas do coronel Anastamento prometido, mas sim uma casa de tolerância no interior de Minas Gerais, um prostíbulo disfarçado de pensão, onde mulheres decaídas eram exploradas por homens endinheirados.
Baltazar fizera fortuna, traficando não apenas escravos, mas também moças brancas e mulatas, de famílias falidas, vendendo suas virtudes ao melhor lance. Maria da Glória. Ao descobrir a verdade na primeira noite, quando um comerciante gordo de Ouro Preto entrou em seu quarto com um sorriso lacivo, tentou fugir e foi surrada brutalmente.
Bernardina perdeu a razão após semanas de abusos, passando os dias sentada numa cadeira de balanço, cantarolando cantigas de ninar que sua mãe lhe ensinara. E e Figênia. Efigênia guardou sua fúria como brasas sob cinzas, planejando uma vingança que levaria anos para se concretizar enquanto isso. No Engenho Santa Efigênia, o coronel recebia suas sete escravas.
eram jovens mesmo entre 15 e 20 anos, trazidas acorrentadas do porão de algum navio negreiro que burlara as leis de proibição do tráfico. Seus corpos traziam as marcas da travessia, costelas salientes, pele ressecada, olhos vazios de quem já vira a morte de perto e não há. Tamer Ma o coronelus observou com um misto de cobiça e repulsa, sabendo que aqueles corpos negros eram o preço da alma de suas filhas brancas naquela noite, embriagado novamente, ele chamou a mais jovem delas, uma menina chamada Kindy, de olhos grandes e tristes para seus
aposentos. O que aconteceu naquele quarto foi mais um pecado adicionado a uma lista já longa demais, mais uma violência numa terra construída sobre violências. Os meses passaram como um pesadelo eterno. O coronel descobriu que as dívidas quitadas não traziam paz, que o jogo continuava a seduzilou, que o conhaque não apagava os gritos que ouvia em seus sonhos, os gritos de Maria da Glória implorando por misericórdia, os soluços de Bernardina, perdida em sua loucura, os olhos acusadores de Ifigênia, as escravas trabalhavam em
silêncio, mas à noite, na cenzala, Kendy e suas companheiras sussurravam preces em Yorubá, invocando eixo e ogum, pedindo justiça. aos orixás que haviam atravessado o oceano com elas e a terra parecia escutelas. A nova safra de cana nasceu fraca, doente. O gado começou a morrer de uma enfermidade misteriosa e o próprio coronel passou a definhar, consumido por uma febre que nenhum médico conseguia curar.

Dois anos depois, em 1881, Ifigênia retornou, mas não era mais a menina de olhos verdes que partira. Era uma mulher endurecida, com corte longo no rosto que ia dar temppora ao queixo, cicatriz deixada por um cliente violento. Ela voltara para acertar contas. Encontrou o pai no leito de morte, delirando, chamando pelos nomes das filhas entre gemidos de dor.
E Figênia Cusei, ulo segurou sua mão trêmula e sussurrou: “Maria da Glória se enforcou. Bernardina foi internada num hospício e eu eu vim lhe dizer que sua linhagem morre comigo. Não haverá netos. Não haverá perdão. Sua memória será esquecida e o nome Sampaio de Albuquerque será sinônimo apenas de vergonha.
O Conel morreu naquela mesma noite e Figênia queimou todos os documentos da família. Libertou as sete escravas, incluindo Candy, que estava grávida de um filho do coronel, e partiu sem olhar para trás. O engenho Santa Efigênia foi tomado pelos credores, demolido e suas terras divididas. As sete mulheres libertas escravas se espalharam pelo recôncavo, levando consigo histórias que transmitiriam às filhas e netas.
Histórias sobre o coronel que trocara suas próprias filhas por carne escrava. Sobre a crueldade que corria nas veias dos senhores de engenho. Sobre um Brasil que precisava ser lavado com o sangue de suas próprias contradições. E assim termina mais uma história que a Bahia tentou esquecer. Mais um segredo enterrado sobre os canaviais que ainda hoje se estendem pelo recôncavo.
Mas os segredos não morrem menos. Eles apenas esperam o momento certo para ressurgir, para lembrar aos vivos que o passado nunca está tão distante quanto gostaríamos. Porque naquelas terras onde o engenho santifigênio um dia existiu, dizem que ainda se ouvem nas noites sem lua os choros de três meninas traídas pelo próprio sangue e os cânticos em ourubá de sete mulheres que transformaram sua dor em resistência.
E esta é apenas a primeira história. Quantos outros segredos ainda dormem sob a terra vermelha do Brasil? Volte para descobrir.