Mariana Crioula: A Mulher Que Gritou “A Liberdade É Um Direito Nosso” Antes de Morrer

23 de novembro de 1838, Praça da Constituição, Rio de Janeiro. Uma multidão se aglomera sob o sol escaldante para assistir à execução de uma mulher. Não é uma mulher qualquer, é Mariana Crioua, a escrava que ousou liderar uma revolta e desafiar o império. Suas mãos estão amarradas, seu corpo carrega as marcas de tortura, mas seus olhos brilham com algo que nenhum açoite conseguiu apagar.
Quando o carrasco se aproxima, ela ergue a cabeça e grita com uma voz que silencia a multidão. A liberdade é um direito nosso. São suas últimas palavras. Mas para entender como uma mulher escravizada teve a coragem de transformar sua morte em manifesto, precisamos voltar meses antes. Há uma fazenda no interior fluminense, onde a brutalidade era a única lei.


Fazenda freguesia patido alferes, interior do Rio de Janeiro. Janeiro de 1838. O calor é insuportável. Nos cafezais que se estendem pelas encostas da serra, dezenas de escravos trabalham sob o chicote do feitor. Entre eles está Mariana, uma mulher de aproximadamente 30 anos, de pele escura como a noite, braços fortes de quem conhece o trabalho pesado desde criança.
Ela nasceu naquela fazenda, filha de africanos trazidos da costa da mina. Sua mãe morreu no parto do quarto filho. Seu pai foi vendido quando ela tinha 12 anos. Mariana cresceu sem família, sem nome além daquele que o Senhor lhe deu, sem nada além da certeza de que viveria e morreria escrava. O fazendeiro, capitão Mor, Manuel Francisco Xavier era conhecido em toda a região por sua crueldade.
Seus escravos trabalhavam de sol a sol, recebiam rações mínimas de alimento e dormiam acorrentados na cenzala. Qualquer ato de desobediência era punido com açoites públicos no tronco que ficava no centro do terreiro. Mariana havia apanhado mais vezes do que conseguia contar. Seu corpo era um mapa de cicatrizes, cada uma contando a história de uma resistência pequena, um olhar atravessado, uma palavra mal interpretada, uma tarefa não cumprida a tempo.
Mas as cicatrizes no corpo eram nada comparadas às feridas na alma. Foi em fevereiro de 1838 que tudo começou a mudar. Um novo escravo chegou à fazenda. Seu nome era Manuel Congo, um homem alto e forte, com cerca de 40 anos, que fora comprado de uma fazenda vizinha. Manuel tinha algo diferente no olhar. Não era a resignação que Mariana via nos olhos da maioria.
Era raiva controlada, inteligência aguçada e algo mais perigoso ainda, esperança. Ele falava baixo, mas suas palavras circulavam pela cenzala como brasa sob a cinza. “Não nascemos para ser propriedade de ninguém”, dizia ele nas noites, quando os feitores dormiam. Aqui lombos nas matas, há lugares onde homens negros vivem livres.
Podemos chegar lá. Mariana o observava nas primeiras semanas. via como ele organizava discretamente grupos de trabalho, como ganhava o respeito dos outros escravos, como planejava cada movimento com cuidado de quem já havia tentado fugir antes e havia tentado. Manuel contava que escapara duas vezes de fazendas anteriores, sendo recapturado e marcado a ferro quente como fugitivo.
marcas em suas costas eram testemunho de sua teimosia em recusar a escravidão. “Prefiro morrer tentando ser livre do que viver como escravo”, ele disse certa noite, olhando diretamente para Mariana. Ela sentiu algo se mover dentro do peito. Aquelas palavras ecoaram em sua mente por dias. Marso chegou trazendo mais violência. O feitor Mor, um mulato chamado Bento, que era tão cruel quanto o próprio Senhor, chicoteou até a morte um escravo jovem chamado João.
O rapaz havia roubado uma rapadura da casa grande porque estava morrendo de fome, 50 chibatadas. João não resistiu à triésima. Seu corpo foi jogado numa cova rasa atrás da cenzala, sem cerimônia, sem oração. Apenas mais um número perdido no livro de registro da fazenda. Naquela noite, quando todos choravam baixinho na cenzala, Manuel Congo falou mais alto do que nunca.
Quantos mais vão morrer antes de decidirmos que basta? Quantos filhos vocês vão ver vendidos? Quantas mulheres vão ser estupradas? Quantos homens vão ser chicoteados até a morte? Chegou a hora de escolher morrer aqui como escravos ou arriscar tudo pela liberdade? Mariana foi a primeira a se levantar. “Eu vou”, disse ela com uma voz firme que surpreendeu até ela mesma.
Outros se levantaram também. Pedro Dias, um escravo alto e magro que havia perdido a esposa vendida para outra fazenda. Antônio Magro, um jovem de 20 anos que ainda carregava marcas recentes de açoite, Julião, um africano idoso que dizia lembrar da terra natal. No total, 13 escravos juraram naquela noite que fugiriam juntos.
Não seria uma fuga comum correndo mata dentro sem rumo. Seria uma revolta. Tomariam a fazenda, libertariam todos os escravos, se armariam e seguiriam para a serra, onde formariam um quilombo. Era um plano audacioso, talvez suicida, mas era um plano. O planejamento levou semanas. Manuel Congo era o estrategista. Ele conhecia as rotinas da fazenda, sabia quando os feitores dormiam, onde estavam guardadas as armas, quantos cavalos havia nos estábulos.
Mariana se tornou sua segunda no comando. Ela tinha algo que Manuel respeitava, uma capacidade de convencer as outras mulheres. Enquanto Manuel organizava os homens, Mariana reunia as escravas domésticas, as cozinheiras, as que trabalhavam na casa grande. “Nós somos muitas”, ela dizia. Se todas nos recusarmos a trabalhar no mesmo dia, eles não têm poder sobre nós.
Juntos, Manuel e Mariana construíram uma rede de lealdade que se estendia por toda a fazenda. A data escolhida foi 5 de novembro. Naquela noite haveria uma festa na Casagre. O capitão More receberia fazendeiros vizinhos e todos estariam bebendo cachaça e jogando cartas até tarde. Os feitores estariam relaxados, desatentos.
Seria o momento perfeito. Mariana mal conseguiu dormir nas noites que antecederam a revolta. Pela primeira vez em sua vida, sentia algo parecido com esperança. Imaginava como seria acordar sem correntes, trabalhar para si mesma. Talvez até ter uma família que não pudesse ser separada pela vontade de um senhor. Sonhava acordada com uma vida que parecia impossível apenas meses antes.
A noite de 5 de novembro de 1838 começou como qualquer outra. Os escravos voltaram dos cafezais ao pôr do sol, receberam suas magras rações de farinha e feijão, foram trancados na cenzala, mas desta vez havia algo diferente no ar, uma tensão elétrica que os mais atentos podiam sentir. Mariana estava deitada em sua esteira de palha, mas seus olhos estavam bem abertos, fixos no teto de sapê.
Ao seu lado, outras mulheres respiravam pesado, algumas fingindo dormir, outras realmente exaustas pelo trabalho. Ela esperou uma hora, duas horas, até ouvir o sinal combinado, o som de um berrante vindo dos fundos da cenzala. Manuel Congo foi o primeiro a se mover. Com um pedaço de ferro roubado da oficina, arrombou a porta da cenzala por dentro.
O rangido da madeira quebrando ecoou pela noite, mas a música e as risadas vindas da casa grande abafaram o som. Um por um, os escravos saíram na escuridão. Mariana liderava as mulheres, seu coração batendo tão forte que ela podia ouvi-lo nos ouvidos. Eles se dividiram em grupos como planejado. Manuel e cinco homens foram até a casa do feitor Bento.
Encontraram-no dormindo bêbado após ter roubado cachaça do Senhor. Não houve piedade. Bento foi o primeiro a morrer naquela noite, espancado com os mesmos instrumentos que usava para torturar. Mariana liderou outro grupo até a Casagre. entraram pela cozinha, onde as escravas domésticas já haviam deixado a porta destrancada.
Dentro a festa ainda acontecia. Seis fazendeiros, incluindo o capitão Mor Xavier, bebiam e riam alto, completamente alheios ao que acontecia do lado de fora. Quando Mariana e seu grupo invadiram a sala, o silêncio foi instantâneo. Durante alguns segundos, os senhores não conseguiram processar o que viam.
Escravos armados com foic, enchadas e facões invadindo sua festa. O capitão Mor foi o primeiro a reagir, puxando uma pistola que carregava no cinto. Mas antes que pudesse atirar, Mariana jogou uma panela de ferro em sua direção, acertando-o em cheio na cabeça. Ele caiu sangrando e os outros fazendeiros correram para as saídas. A fazenda explodiu em caos.
Os escravos que ainda estavam presos foram libertados. Gritos de liberdade ecoavam pela noite. Mariana subiu no alpendre da casa grande e gritou com toda a força de seus pulmões: “Somos livres! Ninguém mais é escravo nesta fazenda.” Foi um momento de êxtase coletivo. Homens e mulheres que haviam vivido toda a vida acorrentados dançavam, choravam, se abraçavam.
Pela primeira vez eram donos de si mesmos. Manuel Congo organizou rapidamente a fuga. Pegaram cavalos, armas, comida, tudo que puderam carregar. O capitão Mor Xavier ainda estava vivo, mas gravemente ferido. Deixaram-no lá, junto com os outros fazendeiros que haviam fugido para o mato. Ao amanhecer, o grupo já estava a léguas de distância, embrenhado nas matas da Serra da Estrela.
Eram mais de 80 pessoas agora. Escravos de fazendas vizinhas haviam se juntado à revolta quando souberam das notícias. Mariana cavalgava ao lado de Manuel Congo, sentindo o vento frio da serra bater em seu rosto. Sorria pela primeira vez na vida, sorria de verdade. Montaram um acampamento numa clareira protegida perto de uma cachoeira.


Ali, Manuel declarou que fundariam um quilombo. Ele foi aclamado como líder e rei do quilombo. Mariana foi escolhida como rainha. Não eram títulos vazios. Significavam responsabilidade, organização, proteção de todos. Durante três dias, viveram como pessoas livres. Construíram abrigos temporários, caçaram, plantaram as primeiras sementes, organizaram turnos de vigia.
Mariana nunca havia sido tão feliz. conversava com as outras mulheres sobre como criariam seus filhos em liberdade, sobre como ensinariam os mais jovens a ler e escrever, sobre como construiriam uma comunidade onde o chicote não existisse. Manuel falava sobre expandir o quilombo, libertar mais escravos, criar um território livre dentro do império.
Eram sonhos grandes, impossíveis talvez, mas eram sonhos. Mas o império não perdoava rebeliões. O capitão Mor Xavier, ainda se recuperando de seus ferimentos, enviou mensagens urgentes para as autoridades. A notícia da revolta chegou ao Rio de Janeiro em menos de dois dias. O presidente da província, Paulino José Soares de Souza, ficou furioso.
Uma revolta escrava bem-sucedida era o pesadelo de toda elite escravocrata. Se aquilo se espalhasse, se outros escravos se inspirassem, o sistema inteiro poderia ruir. Imediatamente ordenou que tropas do exército fossem mobilizadas. Mais de 200 soldados, incluindo capitães do mato profissionais, foram enviados para caçar os rebeldes.
No quarto dia de liberdade, os soldados chegaram, cercaram o quilombo ao amanhecer, atacando de surpresa. Muitos ainda dormiam quando os tiros começaram. Manuel Congo tentou organizar a defesa, mas estavam em desvantagem numérica e de armamento. Facões e foices contra mosquetes e espingardas. A batalha foi brutal e rápida.
Mariana lutou ao lado dos homens, segurando uma foice ensanguentada, gritando para que não se rendessem. Melhor morrer livres, ela berrava sua voz rouca de tanto gritar, mas era inútil. Um por um, os rebeldes foram sendo capturados ou mortos. Mariana foi uma das últimas a cair. Lutou até não ter mais forças, até um soldado acertá-la com a coronha do rifle, derrubando-a no chão.
Quando acordou, estava amarrada junto com outros sobreviventes. Manuel Congo estava ao seu lado, também amarrado, sangrando de um ferimento no braço. Eles se olharam, não disseram nada, mas ambos sabiam o que viria. Os prisioneiros foram levados de volta à fazenda primeiro, onde o capitão Mor Xavier exigiu que fossem chicoteados publicamente.
Cada um recebeu 50 chibatadas. Mariana suportou em silêncio, mordendo os lábios até sangrar para não dar ao Senhor a satisfação de ouvi-la gritar. Depois, foram levados para o Rio de Janeiro para serem julgados. O julgamento foi uma farsa, durou menos de um dia. Manuel Congo e Mariana foram considerados líderes da revolta e condenados à morte por enforcamento.
Outros rebeldes foram condenados a açoites públicos e marcação a ferro. Alguns foram vendidos para fazendas distantes, separados de todos que conheciam. A sentença seria executada em praça pública, como exemplo para qualquer escravo que pensasse em se rebelar. Mariana passou seus últimos dias numa cela escura e úmida. Não se arrependia de nada.
Preferia morrer livre por tr dias do que viver escrava por mais 30 anos. 23 de novembro de 1838. Praça da Constituição. A multidão já se aglomera desde cedo. Execuções públicas são eventos na cidade. Comerciantes fecham suas lojas. Famílias inteiras comparecem como se fosse uma festa macabra.


Duas forcas foram erguidas lado a lado. Uma para Manuel Congo, outra para Mariana. Eles são trazidos numa carroça, acorrentados. Mariana olha para o céu azul. É um dia bonito. O sol brilha forte. Ela pensa que é um bom dia para morrer. Manuel é enforcado primeiro. Ele grita antes de morrer: “Morro livre”. As palavras ecoam pela praça. Então é a vez de Mariana.
O carrasco a leva até a forca. Coloca a corda em seu pescoço. O padre se aproxima, oferecendo últimas bênçãos. Ela recusa. Olha para a multidão, vê rostos brancos. Curiosos, alguns horrorizados, outros indiferentes. Vê também rostos negros, escravos que foram trazidos por seus senhores para assistir e aprender a lição.
Para eles, ela fala, ergue a cabeça, enche os pulmões e grita com toda a força que ainda lhe resta. A liberdade é um direito nosso. O silêncio é absoluto. Aquelas palavras ficam suspensas no ar como uma profecia. Então o chão se abre sob seus pés. Mariana Criou-la morreu naquele dia de novembro de 1838, mas suas palavras não morreram.
Elas foram repetidas em cenzalas por todo o Brasil, foram sussurradas em quilombos, foram cantadas em canções de resistência. A liberdade é um direito nosso, não uma súplica, não um pedido, uma declaração, um grito de guerra que ecoaria por 50 anos até que finalmente, em 1888, a escravidão fosse abolida.
Mariana não viveu para ver esse dia. Manuel Congo não viveu para ver esse dia. Mas suas mortes não foram em vão. Cada rebelde que se levantou depois foi inspirado por eles. Cada escravo que fugiu, cada quilombo que resistiu, cada voz que gritou por liberdade carregava um pedaço daquele grito de Mariana. A história oficial tentou apagar Mariana Criou-la.
Seu nome quase desapareceu dos registros. Mas a memória popular aguardou. Em patido ao feres, conta-se que nas noites de novembro, quando o vento sopra forte pela serra, ainda é possível ouvir sua voz ecoando pelas matas. A liberdade é um direito nosso. Uma mulher que nasceu escrava, viveu como escrava, mas recusou-se a morrer como escrava.
Uma mulher que transformou sua execução em manifesto, que usou suas últimas palavras não para implorar piedade, mas para declarar uma verdade que o império tentava negar. Uma mulher cujo grito atravessou gerações e continua ecoando sempre que alguém se levanta contra a opressão. M. [Música]

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