ISABEL, A JUSTICEIRA DE CAMPINAS QUE ESQUARTEJOU 6 CAPATAZES APÓS MUTILAREM O CAVALO DA FAZENDA 1882

Era 1882 e o interior de São Paulo ardia sob um sol que não perdoava. As fazendas de café se estendiam como cicatrizes verdes sobre a terra vermelha e dentro delas homens exerciam um poder que não conhecia limites nem leis. Esta é a história de Isabel, uma mulher que o mundo quis apagar, mas cujo nome ainda assombra as noites de Campinas como um sussurro de justiça ensanguentada.
Isabel tinha 32 anos quando tudo aconteceu, mas seu rosto carregava a marca de quem vivera duas vidas inteiras. Filha de uma escrava liberta e de um capataz português que jamais a reconheceu. Ela cresceu nas bordas da fazenda Santa Eulalia. nem escrava, nem livre, nem branca, nem preta o suficiente para pertencer a qualquer mundo.


Sua pele era da cor do mel escuro. Seus olhos negros guardavam segredos que nenhuma confissão poderia absolver, e seu corpo trazia cicatrizes que ela escondia sob vestidos poídos de algodão grosso. Trabalhou desde os 7 anos, limpou Casa Grande, lavou roupa no rio, serviu refeições aos coronéis e seus filhos embriagados.
Suportou mãos que não deviam tocá-la, palavras que rasgavam mais fundo que chicotes, olhares que a despiam antes mesmo que qualquer violência física se consumasse. Aprendeu a andar rente às paredes, a baixar os olhos, a tornar-se invisível, mas dentro dela algo permanecia intacto, uma chama pequena, quase extinta, mas viva.
E essa chama encontrou forma no dia em que o coronel Augusto Ferreira da Silva trouxe para a fazenda um cavalo andaluz, branco como espuma de rio, alto e nervoso como um aristocrata europeu perdido nas terras bárbaras do Brasil. O animal era destinado ao filho mais velho do coronel, mas o rapaz tinha medo de cavalos.
Então Isabel, que desde menina demonstrara a habilidade com os animais, foi incumbida de domá-lo. Levou três meses, três meses em que Isabel acordava antes do sol nascer e caminhava até o curral, levando pedaços de rapadura escondidos no bolso. O cavalo que recebera o nome pomposo de arcanjo, a princípio recuava, bufava, martelava o chão com os cascos.
Mas Isabel tinha paciência. falava com ele em voz baixa, naquela língua feita de vogais arrastadas e consoantes sussurradas, que aprendera com a mãe mistura de português com dialetos africanos que ninguém mais falava. Contava-lhe sobre as estrelas que morriam ao amanhecer, sobre os pássaros que migravam para o norte, sobre a liberdade que ela nunca conhecera, mas que podia imaginar quando fechava os olhos. E arcanjo a escutava.
Aos poucos, o cavalo permitiu que ela se aproximasse, depois que tocasse seu focinho aveludado, então que escovasse sua crina. E, finalmente, numa manhã de neblina espessa, que transformava o mundo em fantasma, Isabel montou em arcanjo pela primeira vez. cavalgaram até a borda da fazenda, onde a cerca de madeira apodrecida separava a propriedade do coronel das terras devolutas que se perdiam em direção ao sertão.
E ali, por alguns minutos preciosos, Isabel conheceu algo que se aproximava da felicidade. Os anos seguintes foram os melhores de sua vida. Toda manhã, antes que os capatazes acordassem, ela e arcanjo galopavam pelas trilhas que cortavam os cafezais. O cavalo aprendera a reconhecer seus passos. Relinchava suavemente quando a ouvia se aproximar.
curvava o pescoço para que ela acariciasse suas orelhas. Isabel levava-lhe pedaços de cana, maçãs roubadas da dispensa, água fresca do poço. Conversava com ele sobre tudo, como se fala com Deus ou com os mortos, sabendo que não haverá resposta, mas precisando dizer mesmo assim: Arcanjo tornou-se sua fé, sua família, sua razão de acordar.
Nos dias em que os capatazes a humilhavam, quando as patroas da casa grande a tratavam como mobília, quando a solidão ameaçava consumi-la inteira, Isabel pensava no cavalo, pensava no calor de seu corpo, no cheiro de seu pelo, na força contida em seus músculos, que podia ser tanto violenta quanto terna, e seguia viva. Mas toda luz projeta sombra, e a felicidade de Isabel não passou despercebida.
Os seis capatazes da fazenda Santa Eulalia eram homens moldados pela violência. Jerônimo, o mais velho, tinha 50 anos e cicatrizes de varíula que transformavam seu rosto numa paisagem lunar. Trajava sempre de preto, mastigava fumo e cuspia nos cantos como quem marca território. Vicente e Sebastião eram irmãos, gêmeos idênticos, com cabelos cor de palha e olhos de um azul aguado, filhos de imigrantes italianos que haviam trocado a miséria de Nápolis pela crueldade dos cafezais paulistas.
Benedito era um mulato alto como uma árvore que compensava a humilhação de servir aos brancos, humilhando quem estivesse abaixo dele na hierarquia invisível da fazenda. Caetano era jovem, 20 e poucos anos, bonito, de um jeito cruel, com dentes perfeitos, que mostrava demais quando ria. E havia Inácio, magro e silencioso, que não falava muito, mas tinha olhos que pareciam sempre calcular, medir, planejar alguma maldade futura.
Esses homens exerciam sobre a fazenda um poder que o próprio coronel não contestava. Controlavam os trabalhadores, distribuíam punições, tomavam o que queriam. E o que eles queriam naquele início de 1882 era quebrar Isabel. Não por desejo necessariamente. A violência deles era mais profunda, mais visal. Era inveja. Inveja daquela mulher mestiça, sem nome nem família, que conseguira construir algo puro num mundo podre.
inveja da conexão que ela tinha com arcanjo, da ternura que demonstrava, da humanidade que ainda guardava. Eles queriam destruir isso porque sua própria humanidade há muito se perder. Começou com piadas, comentários sobre como Isabel preferia cavalos a homens, risadas quando ela passava. Depois vieram as ameaças veladas, as insinuações.
Diziam que arcanjo seria vendido ou castrado ou enviado para outra fazenda. Isabel ignorava tudo, mas o medo crescia dentro dela como erva daninha. Então veio o dia. Era uma terça-feira de março, calor de fazer a terra rachar. E Isabel terminara seus afazeres na casa grande mais cedo e correu para o estábulo, ansiosa para ver Arcanjo.
Mas quando chegou, encontrou a porta aberta e um silêncio errado, pesado, prenunciando horror. Arcanjo estava no chão. Os seis capatazes estavam ao redor dele, alguns segurando facões, outros cordas. O cavalo ainda vivia, mas seus olhos estavam arregalados de terror e dor. Haviam cortado suas orelhas, mutilado seus jarretes, marcado sua pele branca com ferro em brasa, desenhando obscenidades.
O sangue formava poças escuras na palha suja do chão. Isabel não gritou, não chorou, simplesmente ficou parada na entrada do estábulo, olhando. Os capatazes riram. Jerônimo cuspiu fumo aos seus pés e disse algo sobre ensinar respeito. Vicente ou Sebastião, ela nunca saberia qual, chutou as costelas de arcanjo.
O cavalo tentou se levantar e caiu novamente, um som que Isabel carregaria para sempre na memória. Ela se ajoelhou ao lado de Arcanjo e colocou a cabeça dele em seu colo. Acariciou seu focinho, agora coberto de sangue e lama. sussurrou palavras de consolo que não podiam consolar ninguém. O cavalo a olhou com aqueles olhos grandes e escuros, ainda confiando nela, ainda acreditando que ela poderia salvá-lo.
E Isabel compreendeu que não podia, pediu a Benedito seu facão. O capataz, surpreendido, entregou. Com mãos firmes, Isabel cortou a garganta de arcanjo. O sangue jorrou quente sobre suas mãos, seu vestido, seu rosto. O cavalo estremeceu uma vez, duas, e depois ficou imóvel. Isabel fechou seus olhos com dedos gentis, como quem fecha os olhos de uma criança que adormece.
Então se levantou, devolveu o facão a Benedito e caminhou para fora do estábulo. Os capatazes riram mais ainda, satisfeitos com sua crueldade. Não sabiam que haviam acabado de assinar suas próprias sentenças de morte. Isabel não dormiu naquela noite. Lavou-se no rio, esfregando a pele até quase sangrar.
Mas o cheiro de sangue de arcanjo parecia ter impregnado seus poros. queimou o vestido manchado e vestiu outro preto como luto e então começou a planejar. Ela conhecia a fazenda melhor que qualquer um. Sabia os caminhos que os capatazes percorriam, seus hábitos, suas fraquezas. Sabia que Caetano bebia cachaça todas as noites até desmaiar, que Inácio tinha o sono pesado, que Jerônimo roncava tão alto que acordava a si mesmo, que Vicente e Sebastião nunca se separavam, que Benedito tinha uma amante na cenzala e a visitava nas madrugadas de quinta-feira.
Isabel também sabia onde o coronel guardava sua coleção de armas. Pistolas inglesas, rifles alemães, facas de caça com cabo de marfim. sabia que a chave ficava escondida atrás de um quadro na biblioteca e que o coronel estava viajando para Santos. Não voltaria antes de um mês. A primeira morte aconteceu três dias depois do assassinato de arcanjo.
Caetano estava bêbado, como sempre, dormindo embaixo de uma jaqueira perto da tulha de café. Isabel aproximou-se silenciosa como cobra. Trazia uma corda grossa, daquelas usadas para amarrar bois. enrolou ao redor do pescoço de Caetano e apertou. O capataz acordou, tentou gritar, arranhou o próprio pescoço até sangrar, mas Isabel era forte, fortalecida por anos de trabalho pesado e por uma raiva que queimava mais que qualquer fogo.


Apertou até que os olhos de Caetano saltassem das órbitas, até que sua língua ficasse roxa e inchada, até que ele parasse de se debater. Deixou o corpo ali mesmo, sabendo que seria encontrado ao amanhecer. queria que soubessem. Inácio foi o segundo. E Isabel esperou que ele fosse ao depósito de ferramentas, um galpão isolado nos fundos da fazenda.
Trancou a porta por fora e atiou fogo. Ficou observando pelas frestas enquanto Inácio acordava com a fumaça. Tentava abrir a porta, gritava por socorro que não viria. As chamas consumiram o galpão em menos de 20 minutos. Quando os outros capatazes chegaram, encontraram apenas cinzas e ossos.
Benedito percebeu então que algo estava terrivelmente errado. Tentou fugir da fazenda, mas Isabel o esperava na estrada, escondida entre as samambaias. Disparou um tiro de rifle que acertou sua coluna, deixando-o paralisado da cintura para baixo. Arrastou-o até um formigueiro de saúvas, amarrou-o ali e foi embora. Seus gritos ecoaram pela noite toda, até que finalmente silenciaram ao amanhecer.
Vicente e Sebastião, apavorados, barricaram-se no estábulo, o mesmo onde arcanjo fora torturado. Achavam que estariam seguros ali e juntos armados. Mas Isabel conhecia cada tábua solta, cada buraco no telhado. Subiu pelo teto durante a madrugada e despejou o óleo de lamparina sobre eles enquanto dormiam. ateou fogo.
Os gêmeos acordaram em chamas, correram um em direção ao outro, abraçaram-se enquanto queimavam e morreram assim, fundidos pelo fogo e pelo medo. Restava apenas Jerônimo. O capataz mais velho sabia que ia morrer. Passou três dias sem dormir, tremendo, rezando terços que não rezava desde menino, mas o cansaço sempre vence. E numa tarde de chuva torrencial, ele cochilou sentado num banco da varanda da casa dos capatazes.
Isabel chegou sem fazer barulho. Trazia o facão que Benedito lhe emprestara, aquele mesmo que usara para libertar arcanjo de seu sofrimento. Jerônimo acordou e a viu parada à sua frente, encharcada de chuva, olhos vazios como os de uma santa nas procissões. Ele tentou pedir perdão, tentou dizer que estava apenas seguindo ordens, que não era nada pessoal, que ele tinha família.
Isabel não respondeu, simplesmente avançou e começou a cortar. Cortou devagar, metodicamente, todas as partes do corpo de Jerônimo que haviam tocado o arcanjo. As mãos primeiro, depois os pés, os braços, as pernas. Jerônimo gritou até perder a voz. E quando finalmente Isabel cortou sua garganta, foi quase um alívio. Quando terminaram de encontrar todos os corpos, a fazenda inteira estava em pânico.
O coronel retornou de Santos e trouxe a polícia milícias, até homens de outras fazendas. Procuraram por bandidos, por escravos revoltados, por inimigos do coronel. Nunca olharam para Isabel. Ela continuou trabalhando na casa grande, servindo café, lavando roupa, invisível como sempre fora.
Mas algo nela havia mudado. Não sorria mais, não falava mais. Movia-se como um fantasma entre os vivos, presente mais ausente ali, mas não. Dizem que numa noite de lua nova, Isabel simplesmente desapareceu. Alguns acreditam que fugiu para o quilombo do Jabaquara em Santos e viveu lá até a abolição. Outros juram que a viram caminhando pela estrada de Campinas, sempre para o norte, como se buscasse algo que deixara para trás.
a quem diga que enlouqueceu e morreu no hospício de Juquer amarrada a uma cama falando com um cavalo que só ela podia ver. Mas a verdade é que ninguém sabe. Isabel se tornou lenda, fantasma, memória incômoda, que as famílias tradicionais de Campinas preferem esquecer. Porque sua história faz perguntas que eles não querem responder.
Perguntas sobre justiça e vingança, sobre até onde pode ir a crueldade humana, sobre o preço que se paga quando se tira de alguém a única coisa que ainda lhe mantém humano. Os velhos da região ainda contam que em certas noites de lua cheia pode-se ouvir o som de cascos galopando pelos cafezais abandonados.
Dizem que é Isabel cavalgando seu arcanjo eterno, finalmente livre, finalmente em paz. E dizem também que quando esse som se aproxima, é melhor trancar as portas e rezar, porque Isabel ainda está julgando, ainda está pesando as almas na balança de sua justiça sangrenta, porque ela foi chamada de monstro, de assassina, de louca.


Mas antes de tudo isso, Isabel foi apenas uma mulher que amou e que perdeu e que decidiu que aqueles que destróem amor devem pagar com a própria carne. Esta é a história de Isabel, a justiceira de Campinas. Uma história que não está nos livros de história, que não é ensinada nas escolas, que as famílias aristocráticas tentaram apagar, mas as histórias verdadeiras nunca morrem completamente.
Elas se escondem nas sombras. esperam seu momento e retornam para assombrar aqueles que prefeririam esquecê-las. E talvez seja exatamente isso que devem fazer. Porque esquecer Isabel é esquecer milhares de outras mulheres cujos nomes se perderam, cujas histórias foram silenciadas, cujas vidas foram reduzidas a notas de rodapé nos relatos de homens importantes.
Isabel recusa-se a ser esquecida. Seu sangue misturado ao sangue de arcanjo e ao sangue dos seis capatazes, encharcou aquela terra vermelha de São Paulo e a tornou sagrada. Sagrada de uma santidade obscura, terrível, mas inegavelmente verdadeira. Porque no final Isabel não buscava redenção, não pedia perdão, nem oferecia desculpas.
Ela simplesmente fez o que sentiu que devia ser feito e aceitou as consequências. E tá algo de assustadoramente puro nessa certeza, nessa recusa, em se curvar as regras de um mundo que nunca lhe ofereceu nada além de dor. Por isso, sua história continua ecoando, século e meio depois, como um sussurro vindo de um passado que insiste em não passar.
Por isso ainda sentimos um arrepio quando o vento sopra pelos cafezais velhos, quando a lua cheia ilumina as fazendas decadentes, quando a noite se enche de sons que não conseguimos explicar. Porque Isabel ainda cavalga. Enquanto houver injustiça, enquanto houver crueldade, enquanto houver quem destrua o amor, apenas por poder fazê-lo, ela continuará cavalgando, julgando, cortando, sangrando o sangue que precisa ser sangrado. Esta é a sua história.
Uma história de amor, loucura, vingança e justiça. Uma história que o Brasil tentou esquecer, mas que recusa-se a morrer. Assim como Isabel, assim como seu cavalo branco, assim como a chama que nunca se apagou completamente, não importa quanta escuridão tentasse sufocá-la. M.

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