Ninguém esquece o choro de um bebê sendo consumido pelo fogo, especialmente quando esse bebê é seu filho, arrancado do seus braços e jogado nas chamas enquanto você assiste paralisada, sem poder fazer absolutamente nada. Esta é a história real de Joana, uma mulher que carregou essa dor por 47 anos, que jurou vingança todos os dias de sua vida, mas morreu sem nunca conseguir realizá-la.
O que você está prestes a ouvir aconteceu numa fazenda de café no Vale do Paraíba em 1843 e mudou para sempre não apenas a vida de Joana, mas de todos que testemunharam aquela noite. O ano era 1843. O Brasil vivia sob o reinado de Dom Pedro I e a escravidão funcionava com brutalidade total em todas as províncias do império.

No Vale do Paraíba, entre as montanhas cobertas de Cafezais, ficava a fazenda Santa Rita, uma das propriedades mais produtivas da região, com mais de 300 escravos trabalhando nas lavouras. O senhor da fazenda era o coronel Vicente Almeida Prado, um homem de 52 anos, conhecido por sua riqueza e sua crueldade.
Seus métodos de punição eram famosos, ou melhor, infames. O tronco em sua fazenda tinha pregos enferrujados. O açoite tinha pontas de metal que arrancavam pedaços de carne. Mas sua especialidade era a humilhação pública, fazer com que os escravos assistissem às punições uns dos outros. criando um terror coletivo que mantinha todos sob controle.
Joana tinha 23 anos quando tudo aconteceu. Nascida na própria fazenda Santa Rita, filha de Benedita e neta de africanos da costa da mina, ela cresceu conhecendo apenas o cativeiro. Trabalhava na Casagrande, fazendo limpeza e servindo as refeições da família do coronel. Aos 20 anos, Joana conheceu Tomás, um escravo carpinteiro de 25 anos, que tinha algo raro naquela propriedade, esperança.
Falava sobre um dia conseguir comprar sua alforria, sobre ter uma vida diferente. Eles se casaram na Capela da Fazenda em 1841, numa cerimônia simples permitida pelo coronel, porque escravos casados eram considerados mais estáveis. O bebê nasceu em março de 1843, num parto difícil que durou quase um dia inteiro.
Era um menino pequeno, mas saudável, com os olhos grandes do pai. Joana o chamou de Gabriel. Para ela, aquele bebê era uma mensagem de que ainda havia beleza possível naquele mundo de horrores. Os primeiros meses foram de uma felicidade que Joana nunca imaginara sentir, apesar de ter que voltar ao trabalho apenas três dias após o parto.
Apesar da exaustão constante, ela sentia alegria toda vez que olhava para o filho. Tomás trabalhava ainda mais, juntando cada moeda que conseguia. Vou comprar a alforria dele”, dizia. “Nosso filho vai ser livre”. Gabriel era um bebê tranquilo durante o dia, mas a noite acordava frequentemente chorando. Tinha cólicas que o faziam se contorcer de dor e não havia muito que Joana pudesse fazer além de embalá-lo e esperar que passasse.
A noite de 15 de agosto de 1843 começou como qualquer outra. Joana trabalhara desde antes do amanhecer até depois do anoitecer. Quando finalmente pôde se deitar na cenzala, Gabriel começou a chorar. Eram cólicas novamente. Ela o embalava, cantava baixinho, mas Gabriel não conseguia se acalmar. Uma hora se passou, duas horas.
O choro continuava, mas o coronel Vicente também ouviu o choro. Sua casa grande ficava a apenas 100 m da cenzala. E naquela noite quente de agosto, o som atravessava o ar com facilidade. Depois de duas horas aguentando, ele se levantou, vestiu-se, pegou o chicote que sempre mantinha ao lado da cama e saiu em direção à cenzala.
Eram quase 11 horas da noite quando o coronel entrou na cenzala. Todos os escravos imediatamente se encolheram, abaixando os olhos. Presença do Senhor naquele horário com o chicote na mão nunca significava nada bom. Que barulho é esse? Jugiu ele. Como é que alguém vai dormir com esse moleque berrando desse jeito? Joana se levantou rapidamente, segurando Gabriel contra o peito.
Desculpa, senhor. Ele tá com cólica. Já tá passando, senhor. Já tá passando? Faz duas horas que eu tô ouvindo esse choro! Gritou o coronel. Cala a boca desse moleque agora ou eu faço ele calar. Joana sentiu o sangue gelar. Conhecia o coronel o suficiente para saber que aquilo não era a ameaça vazia. Sim, senhor. Vou acalmar ele.
Ela começou a embalar Gabriel com urgência, cantando, fazendo tudo que podia. Gabriel continuava chorando, aquele choro agudo de bebê com dor, impossível de controlar. Os outros escravos estavam completamente imóveis. mal ousando respirar. 5 minutos se passaram, o choro não parava. O coronel dava passos impacientes, o chicote batendo contra sua perna.
“Eu avisei”, disse ele com uma calma assustadora. “Avisei para calar a boca desse moleque.” Ele caminhou até a porta e gritou para um feitor: “Acende a fogueira do terreiro agora!” Joana sentiu as pernas fraquejarem. havia uma fogueira sempre preparada no terreiro, usada para aquecer água e às vezes para iluminar punições noturnas.
Mas por que agora? Seu coração começou a bater tão forte que ela achava que ia desmaiar. O feitor apareceu minutos depois. Tá acesa, senhor? Ótimo, disse o coronel. Ele olhou para Joana. Vem cá e traz esse moleque barulhento. Senhor, por favor, ele é só um bebê. Por favor, eu mandei vir cá. Joana não tinha escolha. Com as pernas tremendo, seguiu o coronel para fora.
Todos os outros escravos a seguiram, sabendo que o coronel queria plateia. As punições eram sempre públicas. A fogueira ardia no centro do terreiro, as chamas dançando alto na noite escura. Gabriel continuava chorando nos braços de Joana. O coronel parou ao lado da fogueira. Última chance. Cala a boca dele. Ele tá com dor, senhor. Chorou Joana. É cólica.
Não consigo fazer parar, por favor. Ela embalava Gabriel freneticamente, mas o bebê chorava ainda mais alto. Joana caiu de joelhos. Por favor, senhor. Ele é só um bebê. Eu faço qualquer coisa. Por favor, não machuca meu filho. O coronel olhou para ela por um longo momento. Depois, com um movimento rápido, arrancou Gabriel dos braços de Joana.
O feitor assegurou, seus braços fortes a imobilizando. Eu avisei que ia fazer ele calar. E então, diante de mais de 50 escravos que assistiam paralisados, o coronel Vicente Almeida Prado caminhou até a fogueira e jogou Gabriel, o bebê de 5 meses, diretamente nas chamas. O grito que Joana soltou não era humano.
Era um som que vinha de um lugar tão profundo da alma que nem parecia possível. Ela lutou contra os braços do feitor com força desesperada, arranhando, mordendo, tentando se soltar para salvar seu filho. Gabriel chorou por talvez 10 segundos dentro do fogo. 10 segundos que pareceram uma eternidade. Depois, o choro parou.
O silêncio que se seguiu foi ainda mais terrível que o grito de Joana. Ela parou de lutar. Parou de gritar. ficou ali olhando para a fogueira onde seu filho havia acabado de morrer, e algo dentro dela morreu junto. Os outros escravos choravam silenciosamente. Alguns haviam vomitado de horror. O coronel limpou as mãos na camisa. Finalmente, silêncio.
Era só isso que eu queria. Ele olhou para os escravos. Que isso sirva de lição. Próximo que me desagradar vai ter o mesmo fim. Ele voltou para a casa grande, deixando Joana no terreiro. Quando o feitor finalmente a soltou, ela desabou no chão, mas não chorou. Apenas olhava para a fogueira, vendo as chamas consumirem seu filho.
Tomás chegou correndo. Estava trabalhando do outro lado da fazenda. Quando entendeu o que havia acontecido, também caiu de joelhos. abraçou Joana e os dois ficaram ali enquanto a fogueira continuava queimando. Naquela noite, algo quebrou dentro de Joana. Era a consciência absoluta de sua total impotência. Ela não pudera proteger seu filho, não pudera salvá-lo.
Tivera que assistir segurada à força enquanto Gabriel morria. Quando o sol nasceu, Joana estava sentada no mesmo lugar, olhando para os restos da fogueira. Tomás tentava fazer com que ela se movesse, que bebesse água. Ela não respondia. Joana sussurrou Tomás com lágrimas no rosto. Por favor, fala comigo. Foi só então que ela virou para ele.
Seus olhos estavam vazios, mas sua voz era firme e fria. Eu vou matar ele. Joana, não fala isso. Se alguém ouvir, eu vou matar ele. Repetiu. Não sei como, não sei quando, mas eu juro pela alma do meu filho, eu vou matar aquele homem. Aquele juramento se tornou a única coisa que mantinha Joana viva.
A dor era tão grande que ela achava que ia morrer. Todas as noites acordava achando que ouvia Gabriel chorando. Assim, ah, não demonstrou compaixão. No dia seguinte, mandou Joana voltar ao trabalho. Luto é luxo de branco. Escrava não tem tempo para ficar chorando. Mas Joana não chorava mais. trabalhava em silêncio, comia em silêncio, dormia em silêncio.
Os outros escravos diziam que ela estava assombrada, que seu espírito tinha morrido junto com o filho. Joana começou a observar o coronel obsessivamente, memorizava sua rotina, seus hábitos, suas fraquezas. Pensava constantemente em formas de matá-lo. Veneno não trabalhava na cozinha. Acidente, ele raramente ficava sozinho.
Ataque direto, seria morta imediatamente. Mesos passaram. 1843 terminou. 1844 começou. Joana continuava observando, planejando, esperando a oportunidade perfeita, mas essa oportunidade nunca chegava. Em 1845, Tomás adoeceu de tuberculose. Morreu em junho, aos 28 anos. Antes de morrer, segurou a mão de Joana. Esquece a vingança, por favor, vive.

Ela não respondeu, apenas ficou segurando a mão dele até sentir ficar fria. Agora Joana tinha perdido filho e marido. Estava completamente sozinha. Tinha 25 anos e sentia como se tivesse vivido sem. Ainda assim, o juramento permanecia. Todas as noites. Eu vou matar ele. Não sei como, não sei quando, mas eu vou. Os anos passaram, 1846, 1850, 1855. A oportunidade nunca chegava.
O coronel parecia invencível, protegido pela própria estrutura da sociedade escravocrata. Em 1854, o coronel caiu do cavalo e quebrou o braço. Ficou semanas vulnerável. Joana pensou que era sua chance. poderia entrar no quarto dele durante a noite, poderia sufocá-lo, mas não conseguiu. Quando chegou a hora, seu corpo não obedeceu.
Ficou parada no corredor, olhando para a porta, e percebeu tinha medo. Depois de anos imaginando vingança, quando teve a chance, o medo a paralisou. Joana voltou para a cenzá-la, odiando a si mesma. Perdoa eu, Gabriel. Perdoa eu por ser fraca. 860. 1865 1870 o coronel estava envelhecendo, mais frágil. Joana também, 45 anos, corpo gasto.
E o juramento continuava todas as noites, mas as palavras saíam mais fracas, mais resignadas. Ela já não acreditava mais. Em 1870, uma epidemia de febre amarela atingiu a região. Joana adoeceu. Ficou semanas entre a vida e a morte. Quando se recuperou, estava ainda mais quebrada. “Por que eu não morri?”, o perguntou a outra escrava.
“Porque ainda não é sua hora”. Mas Joana sentia que já deveria ter morrido havia muito tempo, que morrera naquela noite de agosto de 1843. O coronel Vicente morreu em março de 1885, aos 84 anos. morreu dormindo de causas naturais, sem dor, cercado por sua família. teve um funeral grandioso com discursos sobre seu legado. Joana assistiu o enterro de longe.
Sentiu apenas vazio imenso. Ele estava morto finalmente, mas não por suas mãos, não como vingança, simplesmente porque era velho. Perdoa eu, meu filho, sussurrou Joana. As primeiras lágrimas em mais de 40 anos descendo por seu rosto. Eu prometi que ia vingar você. Eu jurei toda a noite por mais de 40 anos, mas eu não consegui. Eu falhei.
A lei Áurea foi assinada em 1888. Joana tinha 68 anos. Era livre, oficialmente livre. Mas o que significava para uma mulher velha, sem família, sem nada? Continuou morando na fazenda, fazendo pequenos trabalhos. Joana morreu em janeiro de 1890, 2 anos após a abolição. Tinha 70 anos. Morreu sozinha na mesma fazenda onde nascera, onde vira seu filho morrer.
Suas últimas palavras foram: “Perdoa eu, Gabriel, eu tentei. Não houve funeral”. Joana foi enterrada numa cova rasa, sem nome, sem marcação, mais uma entre milhares que viveram e morreram sob o peso da escravidão. Mas a história de Joana não morreu. Foi passada de geração em geração pelas famílias descendentes dos escravos da fazenda Santa Rita.
A história da mulher que viu seu bebê ser queimado vivo e jurou vingança por 47 anos, mas nunca conseguiu realizá-la. É uma história sobre impotência, sobre como o sistema escravocrata não apenas escravizava corpos, mas destruía almas. Sobre como a injustiça pode ser tão absoluta que nem mesmo a vingança é possível.

Joana viveu 47 anos com o peso daquele juramento. 47 anos se odiando por não conseguir cumpri-lo. O coronel Vicente é lembrado nos registros históricos como um dos grandes fazendeiros do Vale do Paraíba. Seu nome está em placas, em ruas. A história oficial o trata com respeito. Joana não está em nenhum livro. Seu nome aparece apenas numa lista de escravos em 1843.
Com a anotação: Perdeu filho 5 meses, agosto. Quatro palavras para resumir a maior tragédia de uma vida. Esta é a história que não é contada. A história das vingaças que nunca aconteceram, dos juramentos que nunca foram cumpridos, das injustiças que nunca foram reparadas. Para cada ato de resistência heróica, houve milhares que falharam, milhares de pessoas que quiseram lutar.
Mas não puderam. Joana carregou seu ódio como outras pessoas carregam esperança. Foi a única coisa que a manteve viva. Mas no final nem mesmo o ódio foi suficiente. E talvez isso seja a verdade mais triste, que o sistema era tão opressor que nem a dor de uma mãe foi suficiente para quebrá-lo. Gabriel foi apenas um de milhares de bebês mortos nas mãos de senhores cruéis.
Joana foi apenas uma de milhões de mães que assistiram impotentes e o coronel Vicente foi apenas um de incontáveis homens que cometeram atrocidades e morreram tranquilos em suas camas. Essa é a verdadeira história da escravidão. Não apenas resistência e superação, mas dor que nunca foi aliviada, vingança que nunca aconteceu, justiça que nunca chegou.
Joana viveu e morreu, carregando uma promessa que não conseguiu cumprir. E talvez seja exatamente por isso que sua história precisa ser contada, para lembrarmos que nem todas as histórias têm finais satisfatórios, que nem toda a dor é vingada, que nem toda injustiça é reparada. Joana nunca conseguiu matar o coronel, mas sua história mata algo mais importante, a ilusão de que a escravidão era um sistema sustentável ou justo.
Cada história como a dela é mais um tijolo removido dessa fundação de mentiras. E talvez essa seja sua vingança final, não contra o coronel, que morreu sem saber de seu sofrimento, mas contra o esquecimento, contra a narrativa que tenta pintar a escravidão brasileira como branda, contra todos que preferem não ouvir essas histórias.
Gabriel tinha apenas 5 meses, não teve chance de viver. Joana viveu 70 anos, mas parte dela morreu naquela noite de agosto. E o coronel Vicente viveu 84 anos, rico, respeitado. Não há justiça nessa história. Não há redenção. Há apenas a verdade nua de como era viver sob a escravidão, de como era ser completamente impotente.
E às vezes contar essa verdade, manter viva essa memória, é a única forma de vingança possível. Oh.