Bahia, 1878. Em uma noite quente de março, o coronel Joaquim Ferreira da Silva agonizava em sua cama. Seus gritos euaavam pelo casarão do engenho São Miguel. O médico, chamado às pressas, nada podia fazer. era o décimo senhor de engenho ao morrer daquela forma naquele ano. Todos com os mesmos sintomas, dores abdominais lancinantes, vômitos incontroláveis, convulsões.
E todos tinham algo em comum. Uma mulher havia passado por suas cozinhas dias antes de suas mortes. Seu nome era felicidade, mas não havia nada de feliz em sua história. O Brasil, de 1878, vivia seus últimos suspiros como nação escravocrata. Faltavam apenas 10 anos para a abolição, mas nas fazendas do Recôncavo baiano o tempo parecia ter parado no século anterior.
Ali, mais de 200 engenhos de cana de açúcar mantinham milhares de pessoas escravizadas em condições desumanas. O recôncavo baiano era o coração econômico do império. Suas terras férteis produziam a riqueza que sustentava a elite imperial. Mas essa riqueza era construída sobre o sofrimento de homens, mulheres e crianças que eram tratados como propriedade, menos valiosos que o gado, mais descartáveis que as ferramentas.

Os senhores de engenho eram reis absolutos em seus domínios. Suas palavras eram lei, suas vontades inquestionáveis. O poder de vida e morte sobre centenas de seres humanos estava em suas mãos. E muitos exerciam esse poder com crueldade que desafiava qualquer noção de humanidade. As mulheres escravizadas enfrentavam um horror adicional.
Além do trabalho exenuante nos canaviais sobre o sol escaldante, além dos assotes públicos por qualquer deslize ou imaginário, elas viviam sob constante ameaça de violência sexual. Não havia proteção, não havia justiça. Seus corpos não lhes pertenciam. Era nesse cenário de brutalidade institucionalizada que felicidade havia crescido.
Nascida no Engenho Santa Rita em 1848, ela nunca conheceu outra realidade além da escravidão. Sua mãe morrera no parto, seu pai vendido para o sula tinha apenas 3 anos. Como tantas outras crianças escravizadas, felicidade cresceu órfão, mesmo tendo nascido. A infância de felicidade. Desde pequena, felicidade demonstrava uma inteligência incomum.
Aos 7 anos, já conhecia todas as plantas da cenzala. Observava atentamente quando as mais velhas preparavam chás para dores, cataplasmas para feridas, banhos para febres. Tinha memória prodigiosa e curiosidade insaciável. A velha Benedita, curandeira respeitada mesmo pelos brancos da Casagrande, tomou a menina sob sua proteção.
Durante anos, Benedita ensinou à felicidade tudo que sabia sobre as plantas do Brasil e da África. Mostrou-lhe quais curavam e quais matavam. Ensinou-lhe que a diferença entre remédio e veneno muitas vezes era apenas uma questão de quantidade. Conhecimento é poder, dizia Benedita. E para nós poder é sobrevivência.
Felicidade aprendeu sobre a jurubeba que curava o fígado doente, sobre a espinheira santa que acalmava o estômago, sobre a aeira que cicatrizava feridas. Mas também aprendeu sobre a mamona, cujas sementes em excesso causavam vômitos violentos. Sobre a comigo ninguém pode, cujo contato causava queimaduras terríveis sobre a trombeteira, que em pequenas doses era medicinal, mas em doses maiores causava alucinações, convulsões e morte.
Aos 15 anos, felicidade já era conhecida como curandeira em três engenhos vizinhos. Os senhores permitiam que ela circulasse porque seus remédios funcionavam e escravos saudáveis eram mais produtivos. Ela tratava desde cólicas infantis até febres misteriosas. Sua fama crescia. Mas em 1866 tudo mudou. O trauma que mudou tudo.
Felicidade tinha 18 anos quando foi levada a força para a casa grande do Engenho Santa Rita. O filho do Senhor João Carlos, havia retornado da capital. Jovem, mimado e cruel. Ele via escravizadas como objetos para seu prazer. O que aconteceu naquela noite marcou felicidade para sempre. Ela voltou para cenzá-la com o corpo ferido e algo quebrado dentro de si.
Durante semanas, mal falou, mal comeu, parecia uma sombra da mulher vibrante que era. Benedita cuidou de felicidade durante aquelas semanas terríveis. Aplicou suas ervas, seus banhos, suas orações, mas sabia que algumas feridas não eram do corpo, eram da alma, e essas não tinham cura simples.
“O que você vai fazer?”, perguntou Benedita certa noite, enquanto as duas preparavam remédios à luz de velas. Felicidade não respondeu imediatamente. Seus dedos trabalhavam mecanicamente, triturando folhas no pilão. Quando finalmente falou, sua voz era fria, controlada, assustadora em sua calma. Vou cobrar a dívida, Benedita, entendeu.
Não tentou dissadi-la. Ela mesma havia perdido duas filhas para a brutalidade dos senhores. Conhecia aquela dor, conhecia aquela sede de justiça que o mundo jamais ofereceria. Nos meses seguintes, felicidade voltou ao trabalho. Continuou preparando remédios, continuou curando os doentes, mas também começou a fazer experiências.
Testava combinações de plantas, observava efeitos, anotava resultados mentalmente, não podia escrever. Ensinar escravos a ler era crime, mas sua memória era seu caderno. Descobriu que certas combinações eram particularmente eficazes. A trombeteira misturada com mamona produzia sintomas que pareciam cólera.
A espirradeira combinada com o comigo ninguém pode causava um colapso que imitava ataque cardíaco. E o mais importante, em doses certas, os sintomas demoravam dias para aparecer, tempo suficiente para que ela já estivesse longe. A primeira morte, 1867. Um ano após seu trauma, felicidade teve sua oportunidade. O senhor do Engenho Boa Vista, o coronel Antônio Pereira, era conhecido por sua crueldade extrema.
Tinha o hábito de arrancar dentes de escravos como punição, marcava rostos com ferro quente. Separava mães de bebês recém-macidos por pura diversão, para ver o desespero delas. Felicidade foi chamada para tratar a esposa dele, dona Mariana, que sofria de enxaqueas constantes. Durante três semanas, ela visitou a Casa Grande diariamente, preparando chás e compressas para a senhora.
Ganhou a confiança da família, tinha acesso à cozinha, à dispensa, aos aposentos. Na última semana, ela preparou um chá especial para o coronel Antônio. Para os nervos, explicou. Para dormir melhor, o coronel, que andava irritado com problemas na moeda aceitou. Tomou o chá durante cinco noites consecutivas. Na manhã do sexto dia, o coronel Antônio Pereira não acordou.
Encontraram no frio em sua cama. O médico diagnosticou ataque do coração. Tinha apenas 42 anos. Mas isso não era incomum. O estresse da administração dos engenhos, diziam, cobrava seu preço. Felicidade estava a três léguas de distância quando a notícia chegou. Sentiu nada. Esperava sentir satisfação, talvez remorço, mas havia apenas um vazio e uma certeza.
O mundo estava um pouco menos cruel. O método se aperfeiçoa. Durante os anos seguintes, felicidade aperfeiçoou sua técnica. Aprendeu a ser ainda mais cuidadosa. Nunca dois senhores muito próximos, nunca em intervalo muito curto, sempre variando os sintomas, sempre variando os métodos. Ela começou a escolher suas vítimas com critério.
Não eram senhores aleatórios, eram os piores, os que estupravam meninas, os que separavam famílias por crueldade, os que marcavam corpos com ferro quente, os que açoitavam até a morte por infrações imaginárias. Entre 1867 e 1878, 40 senhores de engenho morreram em circunstâncias similares no recôncavo baiano.
As causas oficiais variavam: cólera, febre amarela, ataque cardíaco, derrame cerebral. Ninguém conectava as mortes, ninguém suspeitava de um padrão. Felicidade havia se tornado uma espécie de lenda silenciosa nas semzalas. Seu nome era sussurrado com reverência e medo. Quando ela chegava a um engenho para tratar dos doentes, os escravizados sabiam, observavam quem ela visitava na Casagrande e esperavam: A rede de proteção, o que tornava a felicidade verdadeiramente extraordinária.
Não era apenas sua habilidade com venenos, era sua inteligência estratégica. Ela havia construído uma rede de proteção ao longo dos anos. Primeiro, mantinha sua reputação como curandeira impecável. Para cada pessoa que ela matava, salvava 100 outras. Senhores brancos juravam por seus remédios. Suas esposas a requisitavam.
Seus filhos eram tratados por ela. Essa confiança era sua melhor camuflagem. Segundo, ela nunca falava sobre seus atos, nem para as pessoas mais próximas. nem para outras escravizadas que lhe imploravam vingança. Seu silêncio era absoluto. Não havia confissões, não havia gabações, não havia confidências que pudessem ser usadas contra ela.
E terceiro, ela sempre tinha álibe perfeito. Quando um senhor morria, ela estava tratando doentes em outro engenho, ou colhendo ervas na mata ou preparando remédios na cenzala cercada de testemunhas. Sua presença era tão comum, tão esperada, que ninguém prestava atenção especial. E quarto, mais importante, ela era paciente.
Às vezes esperava meses para agir, um ano inteiro em alguns casos. Nunca agia por impulso, nunca por raiva momentânea. Cada morte era planejada meticulosamente, executada com precisão cirúrgica. Em 1873, algo quase deu errado. E foi esse incidente que mostrou até onde ia astúcia de felicidade. O coronel Rodrigo Mendes, do Engênio Flor da Bahia, era particularmente cruel.
Tinha o hábito de obrigar mães escravizadas a presenciarem o açoitamento de seus filhos. considerava isso educativo. Venderam bebê de 3 meses, separando-o da mãe para ensinar-lhe a não se apegar demais. Felicidade foi chamada para tratar a gota do coronel. Durante duas semanas, aplicou com pressas e preparou tesas. Na terceira semana, o coronel começou a apresentar sintomas estranhos, náuseas, dores abdominais, fraqueza extrema, mas desta vez houve uma complicação.
O médico chamado era jovem, recém formado na Europa, cheio de ideias novas. Dr. Henrique Tavares desconfiou. Os sintomas não batiam exatamente com nenhuma doença conhecida. Havia algo fabricado naquele quadro. Ele começou a fazer perguntas, investigou o que o coronel havia comido, bebido, tomado como medicamento e descobriu que felicidade havia preparado um chá especial para a gota que o coronel vinha tomando religiosamente.
“Traga essa mulher”, ordenou o médico. “Quero examinar suas ervas”. Felicidade foi convocada à Casa Grande. Levou consigo seu saco de remédios. Estava calma, serena, havia se preparado para esse momento durante anos. Que ervas você usou no chá do coronel?, perguntou o Dr. Henrique. Guaco, doutor, respondeu felicidade prontamente, com cavalinha e quebra-pedra para a gota, como o senhor sabe, ervas aprovadas pela própria dona Teresa do Engenho São João, que as usa há anos. Ela não estava mentindo.
Aquelas eram exatamente as ervas que usava. O que não mencionou foi a minúscula quantidade de outra substância que adicionava, um extrato de espirradeira tão diluído que seria impossível detectar sem análise química sofisticada, tecnologia que simplesmente não existia no recôncavo baiano de 1873. O médico examinou as ervas, cheirou, provou uma pitada.
Eram exatamente o que felicidade dizia. Ele ficou frustrado, mas não podia provar nada. E por que então o coronel está piorando? Insistiu. Felicidade baixou os olhos, assumindo a postura submissa que os brancos esperavam dela. Peço perdão, doutor, mas não sei. Talvez meus conhecimentos sejam limitados. Talvez o senhor coronel precise de medicina mais forte, de médico de verdade como o senhor.
Sou apenas uma negra ignorante que aprendeu com as velhas. A humildade falsa era perfeita. O médico, satisfeito por ter sua superioridade reconhecida, dispensou-a. Muito bem. Vou tomar o caso daqui. Volte para suas funções. Felicidade saiu da Casagrande calmamente, mas internamente sabia que precisava mudar de estratégia.
Aquele médico era perigoso e lhe pensava demais, observava demais. Duas semanas depois, o coronel Rodrigo Mendes teve uma melhora milagrosa. Felicidade não havia mais preparado nenhum chá para ele. Ele se recuperou e o Dr. Henrique ficou convencido de que havia sido sua medicina europeia que salvara o coronel. Mas felicidade era paciente. Esperaria.
O coronel Rodrigo teria a sua hora. A sofisticação crescente. Após o incidente com o Dr. Henrique, felicidade tornou-se ainda mais cuidadosa. Começou a estudar padrões de morte natural. Observava quais doenças eram comuns, quais sintomas os médicos diagnosticavam mais facilmente.
Descobriu que febre amarela era conveniente, causava sintomas dramáticos que todos conheciam. Descobriu que derrame cerebral era um diagnóstico genérico para qualquer morte súbita. sem explicação clara, descobriu que parada cardíaca era aceita sem questionamento para homens acima dos 40 anos. Ela também começou a variar seus métodos.
Às vezes usava venenos de ação rápida, administrados em dose única fatal. Outras vezes, preferia o envenenamento lento, progressivo, que imitava a doença crônica. Dependia da situação, do alvo, da oportunidade. E aprendeu algo crucial. Os brancos nunca suspeitavam de escravos. Sua própria arrogância era a melhor proteção dela. Para eles, escravos eram incapazes de tal planejamento, tal execução, tal inteligência.

Eram vistos como animais domésticos, perigosos se maltratados, talvez, mas incapazes de estratégia sofisticada. Essa subestimação sistemática permitiu que felicidade operasse por mais de uma década sem despertar suspeitas reais. Os alvos mais notáveis. Entre suas vítimas mais notáveis estava o coronel Francisco Albuquerque, do Engenho Esperança.
Ele tinha o hábito de castigar escravos idosos até a morte, considerando-os improdutivos. Felicidade preparou para ele um remédio para reumatismo que tomou por três meses. Quando morreu, o diagnóstico foi falência múltipla dos órgãos por idade avançada. Tinha 51 anos. Também o capitão Bernardo Santos, conhecido por estuprar sistematicamente meninas escravizadas assim que completavam 12 anos.
Felicidade o tratou de uma infecção urinária com um chá especial. Ele morreu de septicemia duas semanas depois. E o major Augusto Ferreira, que separava casais escravizados por diversão, vendendo maridos para longe, só para ver o sofrimento das esposas. Felicidade preparou para ele um fortificante para o sangue.
Ele teve um ataque cardíaco fulminante durante o jantar aos 43 anos. Em 1878, algo começou a mudar no recôncavo baiano. As mortes haviam se tornado frequentes demais. Mesmo em uma época onde doenças tropicais matavam com regularidade, o número de senhores de engenho mortos começou a chamar atenção. Um jovem delegado vindo de Salvador, Dr.
Teixeira, assumiu o posto em Santo Amaro. Diferente de seus predecessores, ele não estava nas folhas de pagamento dos coronéis. tinha ideias próprias, métodos novos aprendidos em São Paulo. Ele começou a mapear as mortes, criou uma lista e percebeu um padrão. Em quase todos os casos, uma curandeira escrava chamada felicidade havia estado presente no engenho nas semanas anteriores à morte.
O delegado Teixeira quis investigar, convocou felicidade para interrogatório em abril de 1878. Era uma situação sem precedentes. Um delegado branco interrogando uma escrava sobre crimes contra senhores brancos. Felicidade compareceu calmamente. Respondeu a todas as perguntas com clareza e humildade. Sim, conhecia todos aqueles senhores. Sim, havia os tratado.
Sim, alguns morreram depois. Mas, Dr., disse ela com voz suave, eu trato centenas de pessoas. A maioria sobrevive e fica bem. Alguns morrem, é verdade, mas não será essa a natureza da vida? Mesmo os melhores médicos da Bahia perdem pacientes. O delegado não tinha provas, apenas coincidências. E mesmo que tivesse, o sistema legal da época dificilmente processaria um senhor de ingênio por morte de escravo, muito menos o contrário.
Mas o delegado Teixeira fez algo que assustou felicidade, avisou aos senhores de engenho. Circulou um comunicado recomendando extrema cautela ao contratar curandeiros escravos, especialmente uma negra chamada felicidade. Pela primeira vez em 11 anos, felicidade estava em perigo real, a fuga. Em maio de 1878, felicidade desapareceu.
Simplesmente sumiu do engenho Santa Rita durante a noite. Ninguém a viu sair, ninguém sabia para onde havia ido. O senhor do engenho, sucessor do falecido João Carlos, que morrera de febre em 1875, ficou furioso. Não pela perda da escrava em si. Ela já tinha 30 anos. Estava velha, mas pela afronta. Escravos não fugiam de suas propriedades impunemente.
Organizou expedições de captura. Os capitães do mato vasculharam a região. Interrogaram quilombolas e investigaram cada cenzala a cada canto da mata. Não encontraram nenhum rastro de felicidade. Era como se ela tivesse se dissolvido no ar. As teorias. Nas décadas seguintes, muitas teorias surgiram sobre o destino de felicidade.
Alguns diziam que ela havia morrido na mata. Devorada por animais selvagens, outros juravam tê-la visto em Salvador, trabalhando como quitandeira livre, sob outro nome. Havia quem afirmasse que ela fugira para o quilombo do urubu nas matas de cachoeira. Outros diziam que embarcara em um navio ca África, retornando à terra de seus ancestrais que nunca conhecera.
A versão mais popular nas czalas era diferente. Diziam que felicidade não havia fugido sozinha. Diziam que dezenas de escravos haviam desaparecido naquela mesma semana. Todos ao mesmo tempo, todos silenciosamente, diziam que ela liderara uma fuga em massa para um quilombo secreto nas profundezas da Chapada Diamantina, onde fundaram uma comunidade que existe até hoje.
Essa história, é claro, nunca foi confirmada, mas permaneceu viva na memória coletiva das comunidades negras da Bahia. Uma lenda de resistência e vingança. O que sabemos com certeza é isto: Após o desaparecimento de felicidade, as mortes misteriosas de senhores de engenho no Recôncavo baiano praticamente cessaram. De 40 mortes suspeitas entre 1878 e 1888, o número caiu para apenas três, entre 1878 e 1888.

Isso poderia ser coincidência ou poderia ser que, sem felicidade não havia ninguém com o conhecimento, a coragem e a frieza necessários para continuar aquele trabalho silencioso. Os registros oficiais nunca mencionam felicidade por nome. Ela não aparece em documentos da polícia, não há processos judiciais, não há registros de captura ou morte para a história oficial.
Ela simplesmente não existiu, mas nas comunidades quilombolas da Bahia, seu nome ainda é lembrado. Há cantigas que falam de uma curandeira que curou o mundo da crueldade. Há histórias contadas a sussurros sobre a mulher que cobrou a dívida que o mundo nunca pagaria. A questão moral. A história de felicidade levanta questões profundas sobre justiça, moralidade e resistência.
Ela era uma assassina em série, sem dúvida. Mas em um sistema onde não havia justiça para pessoas escravizadas, onde não havia proteção legal, onde não havia recurso contra violência sistemática, o que restava além da vingança? Os senhores que ela matou eram, pelos relatos, entre os mais cruéis de uma época cruel.
Homens que torturavam, estupravam, mutilavam e matavam os seres humanos que consideravam propriedade. Homens que separavam famílias, vendiam bebês, marcavam o corpos com fermo quente. Felicidade não matava aleatoriamente, não matava por prazer, não matava os senhores benévolos. E havia alguns. Ela escolhia os monstros e os eliminava com precisão cirúrgica.
Isso a torna heroína ou vila? A resposta depende de onde você está. Para os descendentes dos senhores de engenho, ela seria uma assassina perigosa. Para os descendentes dos escravizados, ela era uma guerreia da liberdade. Reflexão final. A história de felicidade nos lembra que a resistência à escravidão tomou muitas formas.
Não foram as grandes revoltas, os quilombos famosos, os heróis conhecidos. Foi a resistência silenciosa, cotidiana, invisível. Foi a curandeira que curava os seus irmãos durante o dia e punia os torturadores durante a noite. Foi a cozinheira que temperava a comida dos senhores com algo mais que sal.
Foi a parteira que sabia segredos que poderiam destruir famílias inteiras. Essas mulheres não entraram para os livros de história. Não há monumentos em sua honra. Não há ruas com seus nomes, mas elas existiram e sua resistência, sua coragem, sua vingança silenciosa foram tão importantes quanto qualquer revolta armada. Felicidade morreu, fugiu, continua viva em algum canto escondido do Brasil? Nunca saberemos. Mas seu legado permanece.
a lembrança de que mesmo no sistema mais opressor, mesmo na escravidão mais brutal, havia quem encontrasse formas de resistir. E às vezes essa resistência tinha gosto de vingança, lenta, paciente, meticulosa e absolutamente mortal. A última vez que o nome de felicidade aparece em algum registro é em uma carta de 1880, dois anos após o seu desaparecimento.
Um senhor de engenho em Sergipe escreveu para um colega em Bahia pedindo recomendação de uma curandeira competente. A resposta foi curta: “Tome cuidado com curandeiras competentes demais. Às vezes, a cura que trazem não é a que você espera.” O Recôncavo baiano nunca mais foi o mesmo após o 1878. E talvez, apenas talvez, isso fosse exatamente o que felicidade pretendia desde o início.
Esta é uma obra de ficção histórica baseada em eventos e contextos reais do período da escravidão no Brasil. Os personagens e eventos específicos são dramatizações criadas para fins educacionais e reflexivos.