Ninguém em Vila Rica imaginava que aquele homem negro curvado sob o peso de uma bateia cheia de cascalho havia sido um rei na África e muito menos que em 20 anos ele seria dono da própria mina de ouro, onde agora trabalhava como escravo, enquanto seu antigo senhor mendigava favores nas ruas empoeiradas de ouro preto.
Esta é a história real de Galanga, o homem que o Brasil conheceria. como Chico Rei. O ano era 1738. Na costa de Angola, um reino inteiro estava sendo destruído, não por guerras tribais ou disputas territoriais, mas por algo muito mais brutal, o tráfico de escravos que alimentava as minas de ouro do Brasil. Galanga era o rei do Congo.

Aos 42 anos, governava seu povo com sabedoria e justiça, vivendo em harmonia com os reinos vizinhos. Seu filho Muzinga, de apenas 20 anos, já era reconhecido como um líder promissor, destinado a continuar o legado de seu pai. Mas naquela manhã de março, tudo mudou. Os traficantes portugueses, apoiados por milícias locais corruptas, invadiram o reino durante uma cerimônia religiosa.
A estratégia era cruel e eficiente. Atacar quando todos estivessem reunidos, desarmados, em momento sagrado. Em poucas horas, centenas de pessoas foram capturadas, incluindo Galanga, seu filho Muzinga, a rainha e dezenas de membros da família real. O rei do Congo foi acorrentado como um animal. Suas vestes reais foram arrancadas, suas insígnias de poder pisoteadas na lama.
Em questão de dias, Galanga deixou de ser um soberano respeitado para se tornar mercadoria humana, com um número gravado a ferro quente em seu ombro. A travessia do Atlântico durou dois meses infernais. No porão fétido do navio negreiro, prisioneiros morriam diariamente de desenteria, desidratação e desespero. A rainha de Galim.
Ela morreu abraçada ao marido, sussurrando em sua língua nativa: “Não se curve! Um rei nunca se curva, mesmo quando o fazem ajoelhar. Das 300 pessoas que embarcaram na África, apenas 112 chegaram vivas ao porto do Rio de Janeiro. Entre elas, Galanga e seu filho, Muzinga, ambos desfigurados pela fome, mas com um brilho nos olhos que nem o oceano conseguira apagar.
No mercado de escravos do Valongo, pai e filho foram vendidos juntos a um comprador de Minas Gerais. O major Augusto Ferreira Pinto, proprietário da mina da encardideira, uma das mais produtivas lavras de ouro de Vila Rica. “Es dois são fortes”, disse o major, examinando os dentes de galanga, como se examinasse um cavalo.
Vão render bastante no fundo da mina. A viagem até Vila Rica levou três semanas. Eram 300 km de estradas precárias, atravessando montanhas, rios e a densa mata atlântica. Galanga observava tudo com atenção meticulosa. Cada curva do caminho, cada aldeia, cada acampamento de tropeiros, um rei em cativeiro continua sendo estrategista.
Vila Rica, em 1738, era o coração do Brasil colonial. A febre do ouro transformara aquele vilarejo nas montanhas de Minas Gerais, no lugar mais rico e violento da América Portuguesa. Ruas íngremmes de pedra irregular serpenteavam entre casarões de pedra e igrejas barrocas. Por todos os lados, o barulho ensurdecedor das bateias, o ranger das engrenagens de madeira que bombeavam água e os gritos dos feitores açoitando escravos que não atingiam suas cotas diárias.
A mina da encardideira ficava na encosta do morro de Santa Quitéria. Era uma operação grande, três túneis principais que penetravam 200 m dentro da montanha, além de dezenas de catas superficiais onde se lavava o cascalho em busca de pepitas. O major Augusto Ferreira Pinto era um homem de 56 anos, viúvo, sem filhos.
Toda sua vida girava em torno de uma obsessão. Extrair cada grama de ouro possível antes que as jaidas se esgotassem. Trabalhava seus 140 escravos até a exaustão, substituindo os mortos por novas peças compradas nos mercados do rio. Escutem bem, disse o feitor no primeiro dia de galanga na mina. A cota é de 3 ovas de ouro por semana.
Quem não atingir, leva 50 xibatadas no pelourinho. Quem tentar fugir morre lentamente. Quem esconder ouro é torturado até confessar e depois enforcado como exemplo. As 3/8 equivaliam a cerca de 10 g de ouro. Parecia pouco, mas extrair essa quantidade de toneladas de cascalho no fundo escuro de um túnel alagado, exigia trabalho sobre mano.
Aanga foi designado para o túnel mais profundo, o mais perigoso. Ali a água chegava à cintura. O ar era raro efeito. Desmoronamentos eram frequentes. Homens morriam soterrados todas as semanas. Mas foi justamente ali, no ventre escuro da montanha, que Galanga começou a tecer seu plano impossível. Nos primeiros meses, ele trabalhou em silêncio.
Observava, aprendia, entendia o sistema. descobriu que o Major Augusto, apesar de cruel, tinha uma fraqueza, a vaidade. Adorava ser elogiado. Gostava de se ver como um homem justo, um patrão que tratava bem seus escravos, desde que cumprissem suas obrigações. Galanga percebeu também que havia escravos em posições estratégicas.
O capataz, um mulato chamado Joaquim, era filho do antigo dono da mina. tinha algum poder de decisão sobre a distribuição de tarefas. A cozinheira da Casa Grande, tia Rosa, tinha acesso ao cofre onde o major guardava os registros de produção. E havia o padre Antônio, capelão da mina, que secretamente simpatizava com os cativos e fechava os olhos para certas práticas.
Mas o verdadeiro golpe de gênio de galanga estava em outro lugar. Uma tarde, Muzinga voltou do túnel com as mãos sangrando e os olhos cheios de desespero. “Pai, não aguento mais”, sussurrou em sua língua nativa, longe dos ouvidos dos feitores. “Prefiro morrer que viver assim.” Galanga segurou o rosto do filho com as mãos calejadas.
“Um rei não morre de joelhos, meu filho. Um rei conquista. E eu vou conquistar nossa liberdade, não apenas a nossa, a de todos que estão aqui. Como pai, somos escravos, não temos nada. Somos nada, não somos nada. Galanga sorriu pela primeira vez desde que chegar ao Brasil. Somos tudo.
Somos a força que move esta mina. Sem nós, o major não tem ouro. Sem ouro, ele não é nada. Quem realmente tem o poder aqui? Nas semanas seguintes, Galanga começou a executar um plano que levaria duas décadas para se completar, mas que mudaria o destino de centenas de pessoas. Primeiro conquistou o respeito dos outros escravos, não através de força ou imposição, mas através de generosidade.
Dividia sua comida, cuidava dos doentes, ensinava técnicas mais eficientes de garimpo que aprendera observando. Logo, todos o chamavam de rei. Não sabiam que ele realmente havia sido um. Segundo, começou a trabalhar o dobro. Sua cota semanal não era mais três oitavas, mas seis, às vezes oito. O major ficou impressionado.
Esse negro galanga é excepcional, comentou com o feitor. Trabalha como três homens juntos. O que o major não sabia é que Galanga estava aprendendo a reconhecer onde estava o ouro antes mesmo de cavar. Desenvolveu um instinto quase sobrenatural para as veias mais ricas. e descobriu algo que mudaria tudo.
O major tinha o hábito de pesar o ouro na frente dos escravos para que todos vissem que ele não roubava ninguém. Mas Galanga percebeu uma brecha no sistema. Ouro em pó fino, misturado ao cabelo molhado, passava despercebido na revista superficial dos feitores. Começou pequeno, uma pitada aqui, outra ali. Quantidades tão mínimas que nem a balança mais precisa detectaria.
Mas ao longo de meses, acumuladas por dezenas de escravos que aderiram ao plano discreto de Galanga, aquelas pitadas se transformaram em onças. Muzinga carregava o ouro escondido no cabelo crespo, escovado com uma mistura de barro que disfarçava o brilho dourado. Tia Rosa, a cozinheira, recebia o ouro e o escondia em potes de banha na despensa.
Padre Antônio levava os potes para fora da mina, entregando-os a um comerciante português, que por uma porcentagem vendia o ouro no mercado negro e depositava o dinheiro em nome de Manuel Francisco, identidade falsa criada para Gal. 5 anos depois, em 1743, Galanga tinha economizado 408 de ouro, o suficiente para comprar sua própria liberdade.
Foi numa manhã de domingo, após a missa na Capela da Mina, que Galanga se aproximou do Major Augusto. “Senhor, posso falar com o senhor em particular?” O major, surpreso com a ousadia, mas curioso, concordou. Senhor, eu gostaria de comprar minha liberdade. O major soltou uma gargalhada. Você com que dinheiro? Galanga colocou sobre a mesa um saco de couro, dentro 408 de ouro em pó e pepitas pequenas.

O major ficou em silêncio por longos segundos. Depois disse: “Como você conseguiu isso?” Trabalhei, senhor, durante 5 anos. Economizei cada oitava extra que o senhor me pagava como prêmio por exceder minha cota. Era mentira. O major nunca pagara prêmios, mas a história era conveniente para ambos. Se o major aceitasse, ganharia 408 sem esforço.
Se questionasse a origem do ouro, teria que admitir que seu sistema de controle era falho. 408. Não é suficiente para um escravo de seu porte”, disse o major finalmente. Vale pelo menos 600. Galanga esperava essa negociação. Então me dê do anos, Senhor. Em 2 anos trarei as 60. Mas me permita trabalhar como escravo de ganho.
Enquanto isso, eu trabalho na mina durante a semana e nos domingos trabalho para mim. Metade do que eu ganhar nos domingos entrego ao Senhor. O major pensou: “Era um bom negócio. Galanga continuaria produzindo na mina, mas agora motivado pela perspectiva de liberdade e ele ainda ganharia metade dos ganhos extras. Aceito. Mas se em dois anos você não tiver as 60 completas, o acordo está cancelado e você perde tudo que já pagou.
” Galanga concordou. sabia que tinha muito mais que 60 escondidas. Em 1745, exatos dois anos depois, Galanga comprou oficialmente sua liberdade. A carta de alforria foi registrada em cartório. Manuel Francisco Galanga, africano de nação Congo, estava livre, mas a história estava apenas começando. Livre, Galanga continuou trabalhando na mesma mina.
Agora, como homem livre, recebia um salário, um salário miserável, mas era seu, e continuou executando o mesmo esquema de esconder ouro nos cabelos, só que agora com muito mais liberdade de movimento. Um ano depois, em 1746, comprou a liberdade de seu filho Muzinga mais 2 anos e libertou outros 12 escravos que faziam parte de seu plano original.
O major Augusto começou a ficar desconfiado. Como aquele negro conseguia tanto dinheiro, mandou investigar, mas não encontrou provas. Galanga era meticuloso. Cada transação era legal. Cada oitava justificada. Em 1750 aconteceu o que o major temia. Um desmoronamento matou 17 escravos no túnel principal da mina da encardideira. A produção caiu drasticamente, os custos com reposição de escravos subiram e pela primeira vez em 20 anos de operação, a mina deu prejuízo.
O major, agora com 68 anos e 100 herdeiros, começou a considerar vender a propriedade. Foi quando Galanga fez sua jogada final. “Senhor”, disse ele numa tarde. “Eu gostaria de comprar a mina”. O major quase caiu da cadeira. Você enlouqueceu a mina vale 10 contos de réis. Eu sei, senhor. E eu tenho sete contos em ouro. Posso pagar cinco agora e o resto em dois anos com juros.
O major ficou em silêncio. Como um ex-escravo tinha sete contos de réis. Era impossível. A menos que Mas o major estava velho, cansado e sem perspectivas. A mina estava decadente. Ninguém mais queria comprá-la. E cinco contos de réis eram cinco contos de réis. Eu aceito, mas quero sete contos à vista. Galanga sabia que essa hora chegaria.
Durante 15 anos, sua rede de escravos e libertos tinha desviado o ouro sistematicamente, não apenas da encardideira, mas de outras cinco minas vizinhas, onde ele havia infiltrado pessoas de confiança. O esquema era perfeito, pequenas quantidades, muitas pessoas, longo prazo. Uma semana depois, Galanga voltou com sete contos de réis em ouro.

O major assinou a escritura. A mina da encardideira mudou de dono. O ex-escravo agora era patrão de seu antigo senhor, pois o major, sem ter para onde ir, pediu um emprego como administrador. Galanga aceitou, mas com condições. O Senhor pode continuar aqui, mas agora as regras são outras. Não haverá mais cotas impossíveis, não haverá mais shibata.
Todo escravo que trabalhar aqui poderá comprar sua liberdade em 5 anos de trabalho. E todo liberto que quiser continuar receberá um salário justo. O major não acreditou no que ouvia. Ou você vai falir em seis meses com essas ideias ridículas. Veremos, senhor, veremos. Galanga, agora oficialmente chamado de Chico Rei pelos moradores de Vila Rica, implementou um sistema revolucionário.
Os escravos que trabalhavam em sua mina tinham um dia livre por semana, recebiam alimentação decente, tinham acesso a cuidados médicos básicos e, mais importante, sabiam que em 5 anos estariam livres. O resultado foi surpreendente. A produtividade da mina da encardideira dobrou em do anos. Escravos de outras minas fugiam para tentar trabalhar para Chico Rei.
Ele passou a comprar escravos de outras propriedades pelo preço de mercado, libertando-os em seguida e oferecendo trabalho assalariado. Em 1755, Chico Rei era dono de três minas e havia libertado mais de 200 escravos. construiu a igreja de Santa Efigênia, toda decorada com ouro, primeira igreja de Vila Rica, financiada e administrada por negros libertos, tornou-se uma das pessoas mais ricas e respeitadas da cidade.
Enquanto isso, o Major Augusto Ferreira Pinto, que havia vendido a mina, achando que faria um bom negócio, viu toda sua fortuna evaporar em investimentos ruins e jogo. Em 1758, foi encontrado morto em um quarto alugado, sem um vintém no bolso, enquanto seu antigo escravo era recebido nas casas das famílias mais importantes de Minas Gerais.
A história de Chico Rei se espalhou por todo o Brasil colonial. Para os escravos, era um símbolo de esperança, a prova de que a liberdade era possível. Para os senhores era um aviso perturbador. Seus cativos eram muito mais inteligentes e organizados do que imaginavam. Chico Rei morreu em 1774, aos 78 anos, cercado por dezenas de pessoas que ele havia libertado.
Seu filho Muzinga assumiu os negócios continuando o legado do pai. A mina da encardideira operou até 1803, quando as jaidas finalmente se esgotaram. Mas o que Chico Rei deixou para trás foi muito mais valioso que ouro, a prova de que a dignidade humana não pode ser acorrentada, que a inteligência é mais poderosa que a força bruta e que um rei verdadeiro continua sendo rei, mesmo quando o fazem ajoelhar.
Hoje, em Ouro Preto, a Igreja de Santa Efigênia ainda está de pé, suas paredes cobertas com o ouro que um exescravo extraiu, não apenas da terra, mas de um sistema que insistia em dizer que ele não era nada. Aquele ouro brilha como testemunho de que Galanga, o rei do Congo, que o Brasil conheceu como Chico Rei, provou que mesmo nas correntes, a liberdade pode ser forjada uma oitava de cada vez.
[Música]