AS GÊMEAS CAFUZAS QUE FERVERAM O CORONEL VIVO NA CALDEIRA DE AÇÚCAR – BAHIA, 1868

A reportagem a seguir detalha um dos atos de vingança mais brutais e calculados do Brasil colonial. Em setembro de 1868, no Engenho São Francisco, duas escravizadas, as gêmeas Rosa e Rita, de 26 anos, executaram o coronel Augusto Mendes de Sá. Após 13 anos de planejamento silencioso, a escolha do método chocou a sociedade: fervê-lo vivo na caldeira de açúcar que ele comandava. Para compreender a origem deste ódio absoluto, é necessário retroceder ao ano de 1842, marco inicial desta tragédia.

O Engenho São Francisco ficava no Recôncavo baiano, às margens do rio Paraguaçu, uma das regiões mais produtivas de açúcar do Império. Era propriedade do coronel Augusto Mendes de Sá, herdeiro de uma das famílias mais tradicionais da Bahia, dono de três engenhos e mais de 500 escravos distribuídos por suas terras. A Casa Grande, um sobrado colonial de três andares com azulejos portugueses nas paredes, dominava a paisagem como um trono branco erguido sobre o sofrimento de centenas de pessoas. Rosa e Rita nasceram em março de 1842, filhas de Joana, uma escrava africana da nação Angola, e Antônio, um índio cariri que trabalhava como remador nas barcaças de transporte. Eram gêmeas idênticas, impossíveis de distinguir: mesma altura, mesmo rosto, mesma voz. Quando a parteira viu dois bebês ao invés de um, Joana desabou em lágrimas, não de alegria, mas de terror. Ser mulher escravizada já era carregar uma maldição pesada; ser duas mulheres escravizadas gêmeas era carregar o dobro desse peso.

O coronel Augusto tinha 40 anos quando as gêmeas nasceram. Era considerado um cavalheiro pela alta sociedade baiana, educado na Europa, fluente em francês e latim. Casado com Dona Gabriela, filha de um barão de Ilhéus, frequentava os melhores salões de Salvador, era amigo de políticos influentes, mantendo uma reputação impecável de homem culto e refinado. Mas, por trás dessa fachada aristocrática, escondia apetites que teriam horrorizado até mesmo os membros mais tolerantes de sua classe social. Joana, mãe das gêmeas, conhecia bem a verdadeira natureza do coronel. Tinha apenas 15 anos quando ele a escolheu pela primeira vez em 1834. Era prática comum entre os senhores de engenho selecionar as meninas mais jovens da senzala assim que começavam a se desenvolver, antes que qualquer outro homem as tocasse. O coronel Augusto levou essa prática a extremos que chocavam até mesmo outros proprietários de escravos. Durante dois anos, manteve Joana em seus aposentos particulares, submetendo-a a abusos que deixaram cicatrizes não apenas em seu corpo, mas em sua alma. Quando Joana engravidou dele em 1836, o coronel a expulsou imediatamente da Casa Grande. Não queria bastardos mestiços circulando onde sua esposa pudesse vê-los, manchando a pureza de sua linhagem familiar. O bebê, um menino, nasceu morto seis meses depois, e Joana quase morreu de hemorragia. Foi nesse período de recuperação que conheceu Antônio, o índio gentil que trabalhava no rio. Diferente de todos os outros homens que conhecera, Antônio a tratava com ternura, com respeito, e das poucas noites que passaram juntos nasceram Rosa e Rita.

As gêmeas cresceram na senzala do Engenho São Francisco, trabalhando desde os 6 anos de idade, primeiro na limpeza da Casa Grande, depois ajudando nas tarefas mais leves da cozinha. Eram crianças quietas, observadoras, que aprenderam cedo a se tornarem invisíveis quando necessário. Joana as protegia como podia, mantendo-as longe dos olhares do coronel, rezando todos os dias para que ele não notasse como estavam crescendo bonitas. Mas, em março de 1855, quando as gêmeas completaram 13 anos, o inevitável aconteceu. O coronel Augusto as chamou à Casa Grande numa tarde quente de verão. Estava sentado na varanda bebendo vinho do Porto quando elas chegaram, tremendo. Olhou-as de cima a baixo como um fazendeiro examinando gado no mercado, um sorriso lento se formando em seus lábios. “Vocês estão crescidas,” disse ele, sua voz educada carregando algo obsceno por baixo da superfície polida. “Ficaram bonitas. Idênticas. Vão começar a me servir aqui na casa, nas minhas câmaras particulares, a partir de amanhã.”

Joana estava presente porque trabalhava na cozinha. Quando ouviu aquelas palavras, seu rosto ficou branco. Tentou protestar, cair de joelhos, oferecer-se no lugar das filhas. O coronel apenas riu, aquela risada refinada de homem educado na Europa que não combinava com a crueldade em seus olhos. “Joana, você está velha. Tem 36 anos e parece ter 50. Não me serve mais. Mas suas filhas… ah, suas filhas são jovens, frescas, e são duas. Você me deu um presente precioso sem nem saber.” Naquela noite, Joana explicou às filhas o que ia acontecer. Chorou enquanto falava, pedindo perdão por ter trazido duas meninas ao mundo apenas para que sofressem o mesmo destino que ela. Rosa ficou em silêncio, os olhos fixos no chão de terra batida. Rita também não disse nada. Que diferença fariam palavras? Eram propriedade, seus corpos não lhes pertenciam. A única escolha era suportar ou morrer.

No dia seguinte, começou o inferno particular das gêmeas. O coronel Augusto as chamava aos seus aposentos três, quatro vezes por semana, às vezes juntas, às vezes separadas. Fazia coisas que não podem ser descritas em detalhes porque algumas crueldades são pesadas demais para transformar em palavras. O que se pode dizer é que durante 13 anos, de 1855 até 1868, Rosa e Rita viveram num estado de morte em vida. Seus corpos funcionavam, trabalhavam, obedeciam, mas suas almas estavam em algum lugar distante, num lugar frio e escuro onde a dor não podia mais alcançá-las completamente. O coronel adorava o sofrimento delas. Não era apenas o ato em si que o excitava, mas o desespero, as lágrimas silenciosas, a forma como tremiam quando ele as chamava. Era um homem que se alimentava de dor alheia como outros se alimentam de pão. E porque eram duas, idênticas, ele tinha o dobro do entretenimento perverso: comparava-as, forçava-as a fazer coisas uma com a outra enquanto ele assistia, transformando-as em objetos de sua depravação.

Em abril de 1863, quando tinham 21 anos, Rita engravidou. O coronel ficou furioso, não porque se importasse com ela, mas porque uma escrava grávida não podia servir aos seus propósitos imediatos. Mandou-a de volta para os canaviais, carregando pesos que nenhuma mulher grávida deveria carregar. Rita perdeu o bebê no sexto mês, sangrou durante três dias, delirando de febre na senzala enquanto Rosa segurava sua mão e implorava a todos os santos que a deixassem viver. Ela sobreviveu, mas algo dentro dela morreu junto com aquela criança. Duas semanas depois, Rosa também engravidou. Desta vez, o coronel teve uma ideia diferente. Disse que ia curá-la para que não gerasse bastardos inúteis. Chamou um médico de Salvador, um homem que falava francês e usava roupas caras, e mandou que ele fizesse um procedimento para garantir que Rosa nunca mais pudesse ter filhos. Tudo foi feito na Casa Grande, sem anestesia, porque escravos não sentiam dor da mesma forma que pessoas de verdade, segundo o médico. Rosa gritou até sua voz sumir, sangrou durante dias, e quando finalmente se recuperou o suficiente para voltar a trabalhar, sabia que uma parte dela havia sido arrancada para sempre. Rita nunca voltou a ser chamada à Casa Grande depois que perdeu o bebê. O coronel perdeu o interesse nela, dizendo que mulheres que abortavam ficavam “estragadas”, sem serventia. Mas Rosa continuou sendo chamada duas, três vezes por semana durante mais 5 anos, de 1863 até 1868, quando o coronel finalmente decidiu que ela também estava começando a envelhecer demais para satisfazer seus apetites. Ele havia encontrado novas vítimas, meninas mais jovens: o ciclo continuava.

Durante todos aqueles anos, as gêmeas nunca falaram abertamente sobre vingança, não porque não quisessem, mas porque parecia impossível. O coronel era protegido por feitores armados, por capitães do mato, pela própria estrutura da sociedade escravocrata. Como duas mulheres escravizadas poderiam fazer algo contra um homem tão poderoso? Mas guardavam o ódio silenciosamente, como brasas enterradas sob cinzas, esperando o momento certo para se transformar em fogo. Esse momento chegou em julho de 1868. Joana, mãe das gêmeas, morreu. Tinha apenas 49 anos, mas parecia ter 80, o corpo gasto por décadas de trabalho forçado, a alma destroçada por ter visto suas filhas sofrerem o mesmo que ela sofrera. Suas últimas palavras, sussurradas enquanto Rosa e Rita seguravam suas mãos trêmulas, foram claras e diretas: “Prometam que ele vai pagar. Prometam que não vão deixar que o demônio morra tranquilo na cama dele. Matem ele. Façam ele sofrer como nós sofremos.” Elas prometeram, e pela primeira vez em 13 anos sentiram algo além de dor e resignação. Sentiram propósito.

O plano levou dois meses para ser elaborado. Precisava ser perfeito. Uma tentativa falha significaria tortura e morte, não apenas para elas, mas para todos que o coronel suspeitasse de cumplicidade. Rosa e Rita estudaram suas rotinas meticulosamente: seus hábitos, suas fraquezas. Descobriram que toda quinta-feira à noite, depois que Dona Gabriela ia dormir, o coronel caminhava sozinho até a casa de caldeiras do engenho. Gostava de supervisionar pessoalmente a produção do açúcar, sentir o cheiro do caldo de cana fervendo, verificar que tudo estava funcionando adequadamente. Era um momento de solidão em que se sentia poderoso, senhor absoluto de seu domínio. A casa de caldeiras era um prédio grande de tijolos, sempre quente, sempre barulhenta, com três grandes caldeiras de cobre onde o caldo de cana fervia a temperaturas altíssimas antes de ser transformado em açúcar. Era um lugar perigoso. Acidentes aconteciam com certa frequência. Escravos caíam nas caldeiras ocasionalmente, queimando até a morte em questão de minutos. Ninguém questionava muito quando isso acontecia. Era apenas mais uma tragédia inevitável do processo de produção.

Na noite de 15 de setembro de 1868, uma quinta-feira de lua nova que tornava tudo ainda mais escuro, tudo estava preparado. Rosa e Rita estavam trabalhando na casa de caldeiras, como era comum naquela época da safra. O coronel Augusto apareceu pontualmente às 10 horas, como sempre fazia. Tinha 46 anos, ainda forte, ainda o mesmo homem que havia destruído suas vidas. Caminhou entre as caldeiras fumegantes, verificando temperaturas, dando ordens com aquela voz firme de quem nunca duvidou de seu poder absoluto. Foi quando ele passou perto da terceira caldeira, a maior delas, que as gêmeas se moveram. Rosa se aproximou por trás, Rita pela lateral.

Tudo aconteceu em questão de segundos. Rosa o empurrou com toda a força acumulada de 13 anos de ódio. Ele cambaleou, surpreendido, tentando se equilibrar. Rita pegou uma vara longa de madeira que usavam para mexer o caldo e bateu com força em suas pernas. O coronel caiu de joelhos, ainda não entendendo completamente o que estava acontecendo. “O que vocês estão fazendo?”, gritou ele, e pela primeira vez em sua vida privilegiada havia medo genuíno em sua voz. “Vocês enlouqueceram!” Nenhuma delas respondeu. Cada uma pegou um de seus braços e começaram a arrastá-lo em direção à caldeira. Ele era pesado, mas elas tinham a força de décadas de trabalho forçado, e tinham algo mais poderoso que força física: tinham 13 anos de dor, de humilhação, de ódio tão profundo que havia se transformado em algo sólido, palpável e irresistível.

“Vocês vão morrer por isso”, gritou o coronel, lutando, tentando se soltar. “Vão ser esquartejadas, queimadas vivas! Vou mandar matar toda a senzala!” “Coronel,” disse Rita, e foi a primeira vez que ela falou diretamente com ele em anos, sua voz surpreendentemente calma. “O Senhor já nos matou há muito tempo. Já não somos mais gente. O Senhor transformou nós nisso. Agora nós vamos transformar o Senhor em cinzas.”

Conseguiram erguer o corpo dele até a beira da caldeira. O caldo de cana fervia violentamente, a temperatura tão alta que elas podiam sentir na pele mesmo a meio metro de distância. O vapor subia em nuvens densas, carregando o cheiro doce e enjoativo do açúcar em formação. O coronel olhou para baixo, viu a morte líquida e escaldante esperando por ele e, pela primeira vez em sua vida, entendeu o que era sentir-se completamente impotente nas mãos de outra pessoa. “Por favor”, implorou ele. Era patético ver um homem tão poderoso reduzido àquilo. “Eu dou alforria para vocês, dou dinheiro. Podem ir embora. Podem ter o que quiserem! Mil contos de réis para cada uma! Podem morar em Salvador! Eu assino os papéis amanhã!”

“O que nós queremos,” disse Rosa, sua voz firme como nunca tinha sido, “o Senhor não pode mais devolver. O Senhor tirou nossa infância, nossa dignidade, nossa chance de ser mães, nossa humanidade. Não existe dinheiro que pague isso. Não existe alforria que apague o que o Senhor fez.” E então, juntas, num movimento sincronizado que parecia ensaiado, mas era apenas o resultado de serem gêmeas que pensavam como uma só, Rosa e Rita empurraram o coronel Augusto Mendes de Sá para dentro da caldeira de caldo de cana fervente.

O que aconteceu nos próximos 5 minutos foi simultaneamente a coisa mais terrível e mais satisfatória que as duas mulheres já haviam presenciado. O coronel não morreu imediatamente. A temperatura da caldeira era alta o suficiente para queimar terrivelmente, mas ele conseguiu se agarrar à borda por alguns segundos, metade do corpo submerso no líquido escaldante. Os gritos que saíram de sua boca não eram humanos. Era o som de dor pura, de sofrimento absoluto, de um homem que finalmente entendia uma fração do que havia causado durante décadas. Sua pele começou a se desprender dos ossos imediatamente, dissolvendo-se no caldo açucarado. O cheiro era horrível, uma mistura de carne queimada e açúcar caramelizado que nenhuma das duas jamais conseguiria esquecer. Rita pegou a vara longa e empurrou a cabeça dele para baixo toda vez que ele tentava emergir. Não iam deixar que morresse rápido, não iam dar a ele a misericórdia que ele nunca lhes dera. Durante 5 minutos que pareceram uma eternidade, aquele homem experimentou uma fração do sofrimento que havia causado, e quando finalmente parou de se mexer, quando seu corpo afundou completamente no caldo fervente e começou a se desfazer em pedaços irreconhecíveis, as duas irmãs se olharam e, pela primeira vez em 13 anos, sorriram.

O plano sempre foi assumir o que tinham feito. Não havia como esconder. Outros trabalhadores na casa de caldeiras tinham visto. Quando os feitores chegaram, chamados pelos gritos terríveis, encontraram Rosa e Rita paradas ao lado da caldeira, manchadas de sangue e caldo de cana, esperando calmamente. Não tentaram fugir, não negaram nada. Quando perguntadas por que haviam feito aquilo, Rita respondeu simplesmente: “Porque ele mereceu?” Foram presas imediatamente, levadas ao Tribunal de Salvador acorrentadas, julgadas em apenas dois dias. O juiz, um homem velho de barba branca e olhos frios chamado Desembargador Antônio José de Menezes, ouviu os testemunhos com expressão impassível. A defesa argumentou que eram loucas, que anos de abusos as haviam enlouquecido. A acusação argumentou que eram assassinas frias, que haviam cometido o crime mais hediondo: matar o próprio senhor.

As gêmeas foram condenadas à morte por assassinato. A sentença seria executada em praça pública como exemplo para todos os escravos da província. Mas algo estranho começou a acontecer nos dias entre a sentença e a execução marcada. A notícia do que tinham feito se espalhou rapidamente, e começaram a surgir outras histórias sobre o coronel Augusto. Mulheres escravizadas, algumas livres, algumas ainda em cativeiro, começaram a falar publicamente pela primeira vez sobre o que ele fazia, sobre as meninas que ele escolhia sistematicamente, sobre os bebês que nasciam e desapareciam misteriosamente, sobre os acidentes que aconteciam quando alguém resistia. Durante três décadas, aquele homem havia sido protegido pelo silêncio, pela estrutura social que permitia que senhores fizessem o que quisessem com suas propriedades humanas. Mas a ação brutal das gêmeas havia rompido aquele silêncio de forma irreversível.

O movimento abolicionista estava ganhando força em 1868. Intelectuais como José do Patrocínio e Luís Gama estavam pressionando pela libertação dos escravos. A história de Rosa e Rita se tornou um símbolo poderoso, não de heroísmo, porque o que fizeram foi inquestionavelmente brutal, mas de desespero, de até onde o sistema escravocrata havia levado seres humanos. Havia protestos em Salvador pedindo clemência, havia artigos nos jornais discutindo não a culpa das irmãs, mas a culpa de um sistema que criava monstros como o coronel Augusto e depois se horrorizava quando suas vítimas reagiam. A execução foi adiada uma vez, duas vezes, três vezes. Dona Gabriela, viúva do coronel, não queria mais publicidade, queria que tudo fosse esquecido rapidamente, que o nome de seu marido parasse de ser associado àquelas acusações terríveis que manchavam a reputação da família. Em janeiro de 1869, 4 meses após o assassinato, a sentença foi inesperadamente comutada. Não seriam executadas. Seriam vendidas para uma fazenda no interior de Minas Gerais, longe da Bahia, onde passariam o resto de suas vidas em trabalhos forçados, isoladas, esquecidas.

Mas o destino tinha outros planos. Em maio de 1888, 20 anos depois, a Lei Áurea foi finalmente assinada. Rosa e Rita eram livres. Oficialmente livres. Tinham 46 anos. Metade de suas vidas já havia passado, mas ainda tinham a outra metade pela frente. Voltaram para a Bahia em junho de 1888, estabeleceram-se numa pequena casa na cidade baixa de Salvador, ganhando a vida como lavadeiras e costureiras. Nunca se casaram, nunca tiveram filhos. Rosa porque não podia, Rita porque não quis. Viveram juntas como sempre viveram, duas metades do mesmo todo quebrado que haviam aprendido a sobreviver ao pior que a humanidade podia oferecer.

As pessoas que conheciam sua história as olhavam com uma mistura de medo, curiosidade e respeito hesitante. Alguns as chamavam de assassinas, outros de vítimas, alguns poucos de heroínas improváveis. Elas não eram nenhuma dessas coisas: eram apenas duas mulheres que fizeram o que precisava ser feito, que responderam a 13 anos de tortura sistemática com uma noite de vingança terrível e irreversível. Os anos passaram, a escravidão foi abolida, mas suas cicatrizes permaneceram. Rosa e Rita envelheceram juntas, trabalhando, sobrevivendo, carregando o peso daquela noite de setembro de 1868 como uma tatuagem invisível em suas almas. Nunca se arrependeram. Quando perguntadas, sempre respondiam a mesma coisa: “Fizemos o que tinha que ser feito.”

Rosa morreu em 1923, aos 81 anos. Rita morreu seis meses depois, na mesma idade. Foram enterradas lado a lado no Cemitério do Campo Santo em Salvador. Suas lápides simples traziam apenas nomes e datas, nenhuma menção ao evento que definiu suas vidas. Mas sua história não morreu com elas. Foi passada de geração em geração pelas famílias descendentes dos escravos do Engenho São Francisco, a história das gêmeas que ferveram o coronel vivo na caldeira de açúcar. Alguns a contavam como lenda, outros como fato histórico, mas todos concordavam num ponto: era uma história sobre justiça, mesmo que fosse uma justiça brutal e sangrenta.

O sistema escravocrata brasileiro foi oficialmente abolido em 1888, mas seus fantasmas permanecem até hoje. As cicatrizes permanecem, as injustiças estruturais permanecem, e histórias como a de Rosa e Rita, de mulheres que foram quebradas por aquele sistema e que reagiram da única forma que conseguiram, essas histórias precisam ser contadas e recontadas. Não para justificar o que fizeram, não para glorificar a vingança, mas para que ninguém esqueça o que foi feito a elas primeiro. Porque esquecer seria permitir que todo aquele sofrimento tivesse acontecido em vão. Seria apagar a humanidade daquelas duas meninas de 13 anos que foram transformadas em objetos de prazer de um homem poderoso, que sobreviveram ao impensável, que se recusaram a morrer em silêncio. Rosa e Rita não estão nos livros de história oficial, não há monumentos com seus nomes, não há placas comemorativas no local onde o Engenho São Francisco existiu. Mas nas rodas de conversa das comunidades negras da Bahia, nas histórias sussurradas entre avós e netas, seus nomes permanecem vivos como símbolo de resistência, de dor, de vingança, de tudo que o sistema escravocrata brasileiro foi e das formas desesperadas como suas vítimas tentaram sobreviver. A caldeira onde o coronel Augusto Mendes de Sá morreu foi destruída logo após o incidente. Dona Gabriela mandou demolir toda a casa de caldeiras e construir uma capela no local, tentando apagar fisicamente o lugar daquela morte terrível. Mas a memória não se apaga tão facilmente, e a história de duas irmãs gêmeas que transformaram o instrumento de produção de açúcar em instrumento de justiça final permanece, mais de um século depois, como um lembrete sombrio de que até mesmo os mais impotentes podem, num momento de coragem desesperada, tornar-se agentes de seu próprio destino.

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