O aroma de café recém torrado misturava-se ao cheiro de terra úmida que subia dos campos do engenho Santa Clara. Era uma manhã de dezembro de 1850 e o calor já prometia ser intenso quando o sol se erguesse completamente sobre as plantações de cana de açúcar que se estendiam até onde a vista alcançava.

No casarão colonial, com suas paredes caiadas e varandas amplas, a rotina começava antes mesmo dos primeiros raios de sol. tocarem as telhas vermelhas do telhado. Sinuzia, a Carolina caminhava pelos corredores da Casa Grande com passos firmes, seus sapatos ecoando contra o piso de madeira encerada. Aos 32 anos, ela comandava o engenho Santa Clara com mão de ferro desde que enviara há 3 anos.
Seus dois filhos, Pedro de 8 anos, e Maria Antônia de seis, eram sua maior preocupação e também sua maior alegria naqueles tempos difíceis de administrar sozinha uma propriedade tão vasta. A escrava Balbina, uma mulher de cerca de 25 anos, havia chegado ao engenho apenas se meses antes, trazida de uma fazenda no interior da Bahia. Diferentemente das outras escravas, Balbina sabia ler e escrever habilidades que havia aprendido secretamente com um antigo senhor mais benevolente.
Essa particularidade não passou despercebida por Sinal Luzia, que inicialmente a designou para trabalhar na Casa Grande, auxiliando nos cuidados com as crianças. Naquela manhã, enquanto Sinaluzia verificava os livros de contas na biblioteca, ouviu risadas vindas do quarto das crianças. eram gargalhadas genuínas, do tipo que aquece o coração de qualquer mãe.
Curiosa, dirigiu-se até lá e encontrou uma cena que a deixou perturbada. Balbina estava sentada no chão, cercada por Pedro e Maria Antônia, contando-lhes uma história sobre terras distantes e aventuras marítimas. E então o navio navegou por mares azuis como o céu, levando o jovem capitão para descobrir ilhas cheias de tesouros.
narrava balbina com voz doce e expressiva, gesticulando de forma teatral. As crianças estavam completamente envolvidas na narrativa, seus olhos brilhando de encantamento. Pedro segurava um pequeno barquinho de madeira que havia esculpido, fingindo navegar pelos mares imaginários descritos por Balbina.
Maria Antônia aplaudia a cada revira-volta da história, pedindo mais detalhes sobre as aventuras do capitão. Sim, a Luzia, observou a cena por alguns minutos, sentindo uma mistura de emoções contraditórias. Por um lado, via como seus filhos estavam felizes e engajados. Por outro, uma inquietação crescia em seu peito. Havia algo na forma como Balbina se expressava, na riqueza de seu vocabulário e na criatividade de suas histórias, que a incomodava profundamente.
Balbina chamou-se em Aluzia, interrompendo a narrativa. A escrava levantou-se imediatamente, baixando os olhos em sinal de respeito. Sim, sim. Ah, preciso falar com você. Crianças vão brincar na varanda. Pedro e Maria Antônia protestaram, querendo ouvir o final da história, mas obedeceram a mãe após um olhar severo dela.
Quando ficaram sozinhas, sinal Luzia fechou a porta do quarto e encarou Balbina com expressão séria. “Onde aprendeu a contar histórias assim?”, perguntou, cruzando os braços. “Minha mãe me contava quando eu era pequena, Sá, e depois aprendi algumas coisas aqui e ali. Que tipo de coisas?” Balbina hesitou, percebendo que estava pisando em terreno perigoso.
Histórias que ouvia dos viajantes que passavam pela fazenda onde eu trabalhava antes, sin a Luzia, não estava convencida. Havia algo mais ali, algo que Balbina não estava revelando. A forma como ela articulava as palavras, como construía as frases, sugeria uma educação que ia muito além do que seria esperado de uma escrava. A partir de hoje, você trabalhará apenas na cozinha e na limpeza da casa. Não quero mais você perto das crianças sem minha supervisão direta.
O rosto de Balbina demonstrou uma tristeza profunda, mas ela apenas a sentiu. Sim, sim. Há nos dias que se seguiram, Sim, a Luzia observou atentamente o comportamento de seus filhos. Pedro e Maria Antônia perguntavam constantemente por Balbina, pedindo para ouvir mais de suas histórias. Durante as refeições, eles falavam sobre os personagens que ela havia criado, inventando continuações para as aventuras que haviam ouvido.
“Mamãe, por que Balbina não pode mais nos contar histórias?”, perguntou Maria Antônia numa tarde, enquanto brincavam no jardim. “Porque ela tem outros afazeres importantes?”, respondeu sim a Luzia, tentando manter a voz firme, mas ela contava histórias tão bonitas e ela nos ensinou a fazer barquinhos de papel que realmente flutuam na bacia d’água”, insistiu Pedro. Essa informação alarmou ainda mais sem a Luzia.
Fazer barquinhos de papel era uma habilidade que requeria conhecimento de dobraduras e técnicas que ela mesma havia aprendido apenas através de livros europeus em sua educação formal. Naquela noite, depois de colocar as crianças para dormir, Sin Luzia decidiu investigar mais profundamente.
Dirigiu-se aos aposentos dos escravos, uma fileira de pequenas casas de taipa nos fundos da propriedade. Encontrou Balbina sentada em frente à sua pequena habitação, olhando para as estrelas. Balbina, preciso da verdade. Quem realmente ensinou você a ler e escrever? A escrava levantou-se rapidamente, claramente surpresa pela visita noturna de sua senhora. Sim.
Ah, eu a verdade, Balbina, não minta para mim. Após um longo silêncio, Balbina suspirou profundamente. Meu antigo senhor, Sr. Joaquim, era um homem letrado que vinha de Portugal. Ele acreditava que todos deveriam saber ler, mesmo os escravos. Ensinou-me em segredo, junto com alguns outros. disse que o conhecimento era a única coisa que ninguém poderia nos tirar.
E por vendida quando o Senhor Joaquim morreu, sua esposa descobriu que ele havia nos ensinado. Ela ficou furiosa e nos vendeu imediatamente, dizendo que escravos letrados eram perigosos. Sim, a Luzia sentiu um arrepio percorrer sua espinha. A história de Balbina confirmava seus piores temores. Uma escrava educada representava uma ameaça à ordem estabelecida, especialmente quando tinha contato próximo com suas crianças.
A partir de amanhã, você ficará trancada no depósito durante o dia. Só sairá para as refeições e necessidades básicas. Os olhos de Balbina se encheram de lágrimas, mas ela não protestou. Sim, Siná. Enquanto voltava para a Casagrande, Sinal Luzia sentia o peso de sua decisão. Sabia que estava sendo severa, mas acreditava estar protegendo sua família e mantendo a ordem em sua propriedade. Os dias seguintes trouxeram uma atenção palpável ao engenho Santa Clara.
Pedro e Maria Antônia notaram imediatamente a ausência de Balbina e questionavam constantemente sobre seu paradeiro. Sim, a Luzia inventava desculpas vagas, dizendo que ela estava ocupada com tarefas especiais, mas as crianças não se convenciam facilmente. “Mamãe, posso levar um pouco de doce para Balbina?”, perguntou Maria Antônia durante o almoço, segurando um pedaço de rapadura que havia guardado especialmente. “Ela muito ocupada agora, minha filha. Coma seu doce.
Pedro, mais observador que a irmã, havia notado que Balbina não aparecia mais em lugar nenhum da casa. Durante suas brincadeiras exploratórias pelo engenho, ele começou a procurá-la discretamente. Foi assim que, numa tarde quente de janeiro, ele a encontrou. O depósito ficava nos fundos da propriedade, próximo aos estábulos.
Era uma construção pequena e abafada, usada para guardar ferramentas e equipamentos agrícolas. Pedro ouviu um som baixo vindo de lá e, curioso, aproximou-se da janela pequena que dava ventilação ao local. Através das grades de madeira, viu balbina sentada no chão de terra batida, desenhando com um graveto na poeira.
Ela estava criando formas geométricas complexas e escrevendo palavras que Pedro reconhecia como sendo de suas lições de leitura. Balbina, sussurrou ele, pressionando o rosto contra as grades. Ela levantou a cabeça surpresa e seus olhos se iluminaram ao ver o menino. Pedro, o que você está fazendo aqui? Eu estava te procurando. Por que você está trancada aí? Balbina aproximou-se da janela, mantendo a voz baixa. Sua mãe achou melhor assim.

Mas por quê? Você não fez nada de errado. A pergunta inocente da criança tocou profundamente o coração de Balbina. Como explicar a um menino de 8 anos as complexidades de um mundo onde o conhecimento podia ser visto como uma ameaça. Às vezes os adultos tomam decisões que as crianças não entendem, respondeu ela com carinho. Eu sinto sua falta e Maria Antônia também.
Ela chora à noite pedindo por suas histórias. Essas palavras partiram o coração de Balbina. Durante os meses em que cuidara das crianças, havia desenvolvido um afeto genuíno por elas. Ver Pedro ali procurando por ela, demonstrava que o sentimento era múo. “Você pode me contar uma história rápida?”, pediu Pedro, olhando ao redor para ter certeza de que ninguém os via.
Balbina hesitou, mas a expressão esperançosa do menino a convenceu. “Está bem, mas tem que ser rápida. Era uma vez um pequeno passarinho que vivia numa gaiola dourada”, começou ela falando baixo. A gaiola era bonita e confortável, mas o passarinho sonhava em voar pelos céus azuis e conhecer outros pássaros. Um dia, uma criança bondosa abriu a porta da gaiola, não para libertar o passarinho, mas para conversar com ele e ouvir suas canções.
Pedro escutava atentamente, imaginando o passarinho e sua gaiola dourada. O passarinho ficou muito feliz com a visita da criança e cantou as mais belas melodias que conhecia. E mesmo estando na gaiola, ele se sentia menos sozinho, sabendo que alguém se importava com ele. “E o que aconteceu depois?”, perguntou Pedro ansioso. “Ah, isso é uma história para outro dia”, disse Balbina com um sorriso triste.
Naquela noite, Pedro contou para Maria Antônia sobre seu encontro com Balbina. A menina ficou animada e insistiu em acompanhar o irmão no dia seguinte. Assim começou uma rotina secreta. Todas as tardes, quando sinalia estava ocupada com os negócios do engenho, as crianças escapavam para visitar Balbina na janela do depósito. Durante essas visitas furtivas, Balbina continuava contando histórias, sempre em voz baixa, e sempre de olho nos arredores.
Ela falava sobre aventuras marítimas, florestas encantadas povoadas apenas por animais reais e viajantes corajosos que descobriam novas terras. As crianças traziam pequenos presentes, frutas, doces, desenhos que haviam feito. “Balbina, você pode nos ensinar a escrever nossos nomes como você faz na Terra?”, perguntou Maria Antônia numa dessas tardes.
Balbina olhou ao redor nervosamente. Ensinar as crianças a escrever seria cruzar uma linha perigosa, mas a curiosidade genuína delas era difícil de resistir. “Só se vocês prometerem que será nosso segredo”, disse ela finalmente. As crianças prometeram solenemente e Balbina começou a ensinar-lhes as letras, desenhando na terra através das grades e pedindo para que elas repetissem os movimentos com gravetos do lado de fora.
Enquanto isso, Sin Luzia começou a notar mudanças sutis no comportamento de seus filhos. Eles pareciam mais reservados durante as refeições e muitas vezes chegavam para o jantar com roupas ligeiramente sujas de terra. quando questionados davam respostas evasivas sobre suas brincadeiras. Uma tarde, Gabriel Teixeira da Cunha, um comerciante de escravos que fazia negócios regulares com vários engenhos da região, visitou Santa Clara. Ele era um homem de meia idade, experiente no trato com proprietários rurais e conhecido por sua
habilidade em avaliar o valor e o potencial de problemas de cada escravo. “Dona Luzia, ouvi dizer que a senhora adquiriu uma escrava letrada recentemente”, comentou ele durante o café que lhe foi servido na varanda da Casagre. Sim, Balbina, mas ela está causando alguns inconvenientes. Gabriel assentiu compreensivamente. Escravos letrados são sempre problemáticos.
Eles influenciam os outros e podem causar inquietação. Tenho um comprador em Recife que está procurando especificamente por escravos com essas características. Ele os manda para trabalhar em plantações isoladas no interior, longe de qualquer influência. Sim, a Luzia considerou a proposta.
Vender balbina resolveria definitivamente o problema, mas algo a fazia hesitar. “Deixe-me pensar sobre isso”, respondeu ela. Naquela noite, enquanto colocava as crianças para dormir, Pedro fez uma pergunta que a pegou desprevenida. “Mamãe, por que algumas pessoas não podem aprender a ler?” A pergunta era inocente, mas carregada de implicações que alarmaram-se em aluzia.
“Onde você ouviu falar sobre isso? Só estava pensando, você nos ensina a ler, mas outros não aprendem. Por quê? Sim. A Luzia percebeu que precisava agir rapidamente antes que a influência de Balbina se espalhasse ainda mais. A decisão de Sinal Luzia estava tomada. Na manhã seguinte, ela procuraria Gabriel Teixeira da Cunha para finalizar a venda de Balbina.
A escrava seria enviada para longe, onde sua educação não poderia mais influenciar suas crianças ou causar problemas em sua propriedade. Porém, o destino tinha outros planos. Naquela madrugada, um incêndio começou nos campos de cana de açúcar mais distantes da Casagre.
O fogo havia sido causado por uma fogueira mal apagada pelos trabalhadores na noite anterior e agora, alimentado pelo vento seco e pela vegetação ressecada do verão, espalhou-se rapidamente, criando uma cortina de fumaça que cobriu parte do engenho como um manto sinistro. Sin a Luzia foi acordada pelos gritos desesperados dos escravos que trabalhavam nos campos. O sino da propriedade tocava incessantemente, alertando todos sobre o perigo iminente.
Vestiu-se rapidamente, ainda atordoada pelo sono, e correu para organizar o combate ao incêndio. A situação era mais grave do que imaginara inicialmente. As chamas já haviam consumido uma área considerável e ameaçavam se alastrar para os campos mais próximos da Casagre. Todos os braços disponíveis foram mobilizados numa operação de emergência.
escravos, feitores e até mesmo alguns vizinhos que vieram ajudar formaram uma corrente humana para transportar água dos açudes até as chamas. Baldes, portes e qualquer recipiente disponível eram usados na tentativa desesperada de conter o avanço do fogo. O ar estava espesso, carregado de fumaça e cinzas que ardiam nos olhos e dificultavam a respiração.
Sin Luzia coordenava os esforços com autoridade, gritando ordens e reorganizando as equipes conforme a necessidade. Sua mente estava completamente focada na preservação de sua propriedade e, por isso, não percebeu que havia deixado a casa grande desprotegida. Na confusão da madrugada, ninguém percebeu que Pedro e Maria Antônia haviam acordado com o barulho ensurdecedor e assustados com a fumaça que começava a entrar pelos quartos e os gritos que ecoavam pela propriedade saíram de seus quartos para procurar a mãe.
Não a encontrando na casa e vendo as chamas alaranjadas dançando ao longe contra o céu escuro, as crianças ficaram apavoradas. Pedro, onde está a mamãe? chorou Maria Antônia, agarrando-se ao irmão com força, seus pequenos dedos cravados no tecido da camisa dele. “Ela deve estar lá fora ajudando com o fogo”, respondeu Pedro, tentando manter a calma, apesar de também estar assustado.
Seus 8 anos de idade pareciam insuficientes para lidar com tamanha responsabilidade. A fumaça estava ficando mais densa a cada minuto, entrando pelas janelas abertas da casa grande como dedos fantasmagóricos. As crianças começaram a tcir violentamente, seus pulmões pequenos, não conseguindo filtrar adequadamente o ar contaminado.
Pedro sentiu os olhos lacrimejarem e percebeu que Maria Antônia estava ficando cada vez mais pálida. “Vamos para fora, Maria. Vamos procurar a mamãe”, decidiu ele, pegando a mão da irmã. Eles saíram da casa, mas a cena que encontraram era absolutamente caótica. Pessoas correndo em todas as direções, como formigas em pânico, gritos de comando misturados com exclamações de desespero, o barulho aterrorizante do fogo creptando ao longe e uma fumaça espessa, que transformava o familiar engenho num labirinto confuso e ameaçador. As crianças, pequenas e assustadas, logo se perderam na confusão. Maria Antônia, tentando

acompanhar o irmão, tropeçou numa pedra e caiu pesadamente, machucando o joelho e rasgando a pele delicada. Ela começou a chorar copiosamente, tanto de dor quanto de medo. Pedro tentou ajudá-la a se levantar, mas ela estava em pânico e se recusava a andar, tremendo incontrolavelmente.
A fumaça estava ficando mais intensa e Pedro, apesar de sua pouca idade, percebeu instintivamente que estavam em perigo real. Sua mente infantil buscou desesperadamente uma solução, alguém que pudesse ajudá-los naquele momento terrível. Foi então que ele se lembrou de Balbina no depósito.
Mesmo trancada, ela poderia ajudá-los de alguma forma, ou pelo menos oferecer o conforto de uma presença adulta conhecida. Reunindo toda a força que conseguia, Pedro carregou a irmã nos braços, cambaleando sob o peso dela, e dirigiu-se na direção do depósito. “Balbina, balbina!”, gritou ele ao chegar perto da construção, sua voz rouca pela fumaça.
Balbina, que havia sido acordada pelo barulho e estava preocupada com o incêndio, pressionando o rosto contra as grades da janela para tentar entender o que estava acontecendo, ouviu os gritos desesperados das crianças. Através da pequena abertura, viu Pedro carregando Maria Antônia, ambos tcindo violentamente por causa da fumaça, seus rostos manchados de cinzas.
Pedro, Maria Antônia, o que vocês estão fazendo aqui?”, gritou ela, seu coração se apertando ao ver o estado das crianças. Não conseguimos encontrar a mamãe e Maria se machucou”, gritou Pedro de volta desesperado, suas forças se esgotando rapidamente. Balbina não hesitou nem por um segundo. A porta do depósito estava trancada por fora com um cadeado pesado, mas a construção era antiga e as madeiras estavam ressecadas pelo tempo e pelo calor constante.
Usando uma enchada velha que havia no depósito, ela conseguiu forçar as dobradiças enferrujadas e quebrar parte da estrutura da porta, criando uma abertura suficiente para sair. Imediatamente pegou as duas crianças nos braços e as levou para longe da fumaça, correndo em direção ao açude mais próximo.
lá molhou um pano na água fresca e limpou cuidadosamente os rostos das crianças, ajudando-as a respirar melhor e removendo as cinzas que grudavam em sua pele. “Vocês estão bem agora?”, disse ela, abraçando-as com todo o carinho maternal que possuía. “Fiquem aqui comigo, longe da fumaça.” Maria Antônia parou de chorar gradualmente e se aconchegou nos braços seguros de Balbina, sentindo-se finalmente protegida.
Pedro, exausto do esforço de carregar a irmã e do medo que havia sentido, também se aproximou dela, buscando o conforto que apenas ela parecia capaz de oferecer naquele momento. “Baina, eu estava com tanto medo”, murmurou Maria Antônia, sua voz ainda trêmula. Eu sei, minha pequena, mas agora vocês estão seguros comigo.
Balbina ficou com as crianças durante toda a madrugada interminável, protegendo-as não apenas da fumaça e do caos que tomara conta do engenho, mas também do medo que ameaçava consumi-las. Ela cantou baixinho canções de Ninar que havia aprendido com sua própria mãe. Contou histórias sussurradas para distraí-las do terror da noite e cuidou do joelho machucado de Maria Antônia com a delicadeza e o conhecimento de alguém que havia aprendido sobre plantas medicinais.
Durante as longas horas que se seguiram, enquanto o fogo era combatido ao longe, Balbina manteve as crianças calmas e seguras, demonstrando uma dedicação que ia muito além de qualquer obrigação. Ela havia arriscado sua própria segurança para protegê-las e agora permanecia vigilante, garantindo que nenhum mal lhes acontecesse.
Quando o sol nasceu, pintando o céu de tons rosados e dourados, o incêndio estava finalmente controlado. Os danos foram significativos. Várias hectares de cana haviam sido perdidas, representando um prejuízo considerável. Mas não houve feridos graves entre os trabalhadores. A propriedade havia sobrevivido, embora marcada pelas cicatrizes do fogo.
Sim, a Luzia, exausta após uma noite inteira combatendo as chamas, com roupas sujas de fuligem e mãos machucadas pelo trabalho árduo, voltou para a casa grande, procurando pelos filhos. Sua primeira preocupação, agora que o perigo imediato havia passado, era garantir que Pedro e Maria Antônia estivessem bem. Não os encontrando em seus quartos, ela entrou em pânico absoluto.
Começou a procurá-los desesperadamente, gritando seus nomes por toda a propriedade, com uma angústia que cortava o coração. Outros escravos, percebendo seu desespero, se juntaram à busca, vasculhando cada canto do engenho, cada esconderijo possível onde as crianças poderiam estar. Foi um dos feitores quem finalmente os encontrou. Dona Luzia, as crianças estão aqui perto do açude.
Sim, a Luzia correu na direção indicada, o coração disparando de ansiedade e medo, suas pernas tremendo de exaustão e tensão emocional. Quando chegou ao local, depou-se com uma cena que jamais esqueceria pelo resto de sua vida. Balbina estava sentada debaixo de uma árvore frondosa com Pedro e Maria Antônia dormindo tranquilamente em seus braços, protegidos e seguros, como se fossem seus próprios filhos. A escrava levantou os olhos ao ver sua senhora se aproximando.
Não havia desafio em seu olhar, nem ressentimento pela forma como havia sido tratada, apenas o cansaço profundo de quem havia passado a noite inteira cuidando de crianças assustadas e uma preocupação genuína pelo bem-estar delas. Eles vieram me procurar durante o incêndio”, explicou Balbina baixinho para não acordar as crianças que dormiam peacificamente. Estavam perdidos e com medo.
A pequena Maria se machucou, mas já cuidei do ferimento. Sei se aluzia, olhou para seus filhos, dormindo pacificamente nos braços da mulher, que ela havia trancado no depósito por considerá-la uma ameaça. A culpa e a gratidão batalhavam ferozmente em seu peito, criando uma tempestade de emoções contraditórias que ela não sabia como processar ou compreender.
Os dias que se seguiram ao incêndio trouxeram uma mudança sutil, mas perceptível na atmosfera do engenho Santa Clara. Sim, a Luzia cancelou o encontro com Gabriel Teixeira da Cunha, alegando que precisava se concentrar na recuperação dos campos queimados e na reorganização da propriedade, mas a verdade era muito mais complexa do que ela estava disposta a admitir, mesmo para si mesma.
A imagem de seus filhos dormindo seguros nos braços de Balbina havia se gravado profundamente em sua mente, questionando todas as certezas que ela havia construído sobre hierarquias sociais, sobre o que era certo e errado, sobre o que realmente importava na vida. Pela primeira vez, ela se viu forçada a confrontar a humanidade plena de alguém que o sistema a havia ensinado a ver apenas como propriedade.
Balbina voltou a trabalhar na Casagre. mas desta vez com uma liberdade significativamente maior. Sim, a Luzia não a proibiu mais de interagir com as crianças, embora ainda mantivesse uma supervisão discreta, mais por hábito do que por desconfiança real.
observa de longe as interações entre a escrava e seus filhos, notando com crescente admiração como Pedro e Maria Antônia floresciam sob sua influência educativa e carinhosa. As crianças, por sua vez, pareciam ter desenvolvido uma ligação ainda mais forte com Balbina após a noite do incêndio. Elas a procuravam constantemente, não apenas para ouvir suas histórias, mas para compartilhar suas descobertas diárias, seus pequenos problemas e suas alegrias infantis.

Balbina havia se tornado uma confidente, uma segunda mãe, alguém em quem podiam confiar completamente. Uma tarde particularmente quente de fevereiro, enquanto organizava os livros da biblioteca e calculava os prejuízos causados pelo incêndio, sem aluzia, ouviu vozes animadas vindas do jardim.
aproximou-se da janela e viu balbina ensinando as crianças sobre as plantas medicinais que cresciam nos canteiros cuidadosamente cultivados. Ela explicava com paciência e conhecimento profundo como cada erva podia ser usada para diferentes males, compartilhando sabedoria que havia adquirido ao longo dos anos através da observação cuidadosa e da tradição oral.
Esta aqui é a erva cidreira”, dizia balbina, segurando delicadamente uma folhinha verde entre os dedos. Quando alguém está nervoso ou não consegue dormir, fazemos um chá com ela que acalma o coração e traz paz para a mente. “E esta daqui com as folhas mais pontudas?”, perguntou Pedro, apontando para uma planta de aspecto diferente, genuinamente interessado em aprender.
Essa é hortelã, muito boa para dor de barriga e para deixar o hálito cheiroso. Também ajuda quando alguém está enjoado ou com má digestão. Maria Antônia riu deliciada, cheirando a folha que Balbina lhe ofereceu com cuidado. Cheira igualzinho aos doces que a cozinheira faz nas festas. Exatamente. A cozinheira usa hortelã em muitas receitas.
As plantas não servem apenas como remédio, mas também para dar sabor especial à comida. Sin a Luzia percebeu que havia algo profundamente valioso naqueles ensinamentos. Balbina não estava apenas entretendo as crianças com conhecimentos aleatórios, estava educando-as de uma forma prática, útil e profundamente conectada com a realidade da vida rural.
O conhecimento que ela possuía sobre plantas medicinais, sobre histórias que ensinavam valores morais importantes, sobre técnicas simples, mas eficazes de resolução de problemas cotidianos, tudo isso era um tesouro genuíno que poderia beneficiar imensamente seus filhos. Mais do que isso, sim, a Luzia começou a perceber que Balbina ensinava com uma metodologia natural e eficaz.
Ela não simplesmente despejava informações sobre as crianças, mas as engajava ativamente, fazia perguntas, estimulava a curiosidade, conectava novos conhecimentos com experiências que elas já possuíam. Era uma educadora nata, alguém que compreendia instintivamente como a mente infantil funcionava.
Durante os dias seguintes, Sinal Luzia começou a observar mais atentamente as lições informais que aconteciam pelo engenho. Viu Balbina ensinando Pedro a identificar diferentes tipos de solo e explicando como isso afetava o crescimento das plantas. presenciou uma conversa onde ela ajudava Maria Antônia a entender conceitos matemáticos básicos através de brincadeiras com pedrinhas e sementes.
Mais impressionante ainda era a forma como Balbina abordava questões morais e éticas através de suas histórias. Ela nunca pregava diretamente, mas criava narrativas onde os personagens enfrentavam dilemas similares aos que as crianças poderiam encontrar em suas próprias vidas. permitindo que elas mesmas chegassem às conclusões sobre o que era certo ou errado.
Naquela noite, após colocar Pedro e Maria Antônia para dormir, um processo que agora incluía uma história contada por Balbina, Sin Luzia procurou a escrava na cozinha, onde ela estava terminando de limpar meticulosamente os utensílios do jantar. Balbina, preciso conversar com você sobre algo importante. A escrava parou imediatamente o que estava fazendo e se virou, esperando nervosamente pelo que sua senhora tinha a dizer.
Apesar das mudanças recentes, ela ainda mantinha a cautela de quem havia aprendido que a situação podia mudar rapidamente. Quero que você saiba que que sou profundamente grata pelo que fez durante o incêndio. Você poderia ter fugido durante toda aquela confusão, mas escolheu proteger meus filhos. Balbina baixou os olhos respeitosamente. Eles são crianças boas, Sim.
Crianças inocentes que não têm culpa dos problemas do mundo dos adultos. não conseguiria abandoná-los quando precisavam de ajuda e proteção. Eu sei que você tem conhecimentos que vão muito além do que é comum ou esperado. E eu sei que isso me assustou profundamente no início, porque eu não compreendia o que isso significava. Houve um silêncio longo e pesado entre as duas mulheres.
Sim, a Luzia lutava para encontrar as palavras certas, para expressar sentimentos complexos que ela mesma não compreendia completamente. Emoções que desafiavam tudo o que havia aprendido sobre como o mundo deveria funcionar. “Eu gostaria de fazer um acordo diferente com você”, continuou ela finalmente, sua voz ganhando firmeza conforme organizava seus pensamentos.
Você pode continuar ensinando meus filhos, mas dentro de certos limites que precisamos estabelecer juntas. Histórias edificantes, plantas medicinais, conhecimentos práticos que os ajudem a se tornarem pessoas melhores e mais preparadas para a vida. Mas nada que possa causar problemas com as autoridades ou com outros proprietários. Balbina levantou os olhos lentamente, surpresa pela proposta inesperada. Sim.
Ah, em troca eu garantirei que você nunca será vendida enquanto eu for a dona deste engenho. E quando meus filhos crescerem e se tornarem adultos capazes, se você ainda desejar, eu lhe darei a alforria. Você terá sua liberdade. A promessa de liberdade futura era algo que Balbina jamais havia ousado sonhar, nem mesmo em seus momentos mais otimistas.
Lágrimas se formaram em seus olhos, mas ela as conteve com esforço, tentando processar a magnitude do que estava sendo oferecido. “Por que está fazendo isso?”, perguntou ela, genuinamente curiosa e ainda um pouco desconfiada. S Luzia pensou cuidadosamente por um longo momento antes de responder, buscando honestidade em suas próprias motivações, porque percebi que o conhecimento não é uma ameaça quando é usado com sabedoria e boas intenções. E porque meus filhos são claramente pessoas melhores, mais felizes e mais completas quando estão
perto de você. Você os ensina não apenas fatos, mas valores, não apenas informações, mas sabedoria. Nos meses que se seguiram a essa conversa transformadora, uma rotina completamente nova se estabeleceu no Engenho Santa Clara.
Balbina tornou-se oficialmente a tutora das crianças, com responsabilidades claramente definidas e respeitadas por todos na propriedade. Ela ensinava Pedro e Maria Antônia não apenas a ler e escrever com maior fluência e elegância, mas também sobre o mundo natural que o cercava, sobre valores morais através de suas histórias cuidadosamente escolhidas e sobre a importância fundamental da compaixão e do respeito por todos os seres humanos.
Independentemente de sua condição social, Pedro desenvolveu um interesse especial e apaixonado por botânica, criando um pequeno jardim experimental, onde cultiva as plantas medicinais que Balbina lhe ensinara a identificar e cuidar. Ele mantinha um diário detalhado sobre o crescimento de cada planta, suas propriedades e usos, demonstrando uma metodologia científica impressionante para sua idade.
Maria Antônia, por sua vez, descobriu o amor profundo pela leitura e pela arte de contar histórias. Ela começou a inventar suas próprias narrativas, inspirada pelas histórias que ouvia, mas adicionando sua própria criatividade e perspectiva infantil. Suas histórias eram cheias de aventuras. mas sempre com lições morais claras sobre bondade, justiça e coragem.
Sin a Luzia observa essas transformações com uma mistura crescente de orgulho maternal e reflexão pessoal profunda. Seus filhos estavam se tornando pessoas mais cultas, mais sensíveis às necessidades dos outros e mais conscientes da complexidade do mundo ao seu redor. E ela própria estava mudando gradualmente, questionando crenças e preconceitos que havia aceito sem questionamentos durante toda sua vida adulta.
Um dia de março, Gabriel Teixeira da Cunha retornou inesperadamente ao engenho, ainda interessado em comprar balbina e curioso sobre por a negociação havia sido cancelada. Sim, a Luzia o recebeu educadamente na varanda, oferecendo-lhe café e doces, mas desta vez sua resposta foi firme e absolutamente definitiva. Balbina não está à venda, Sr. Gabriel. Ela se tornou uma parte importante e valiosa desta família.
Seus serviços são indispensáveis para a educação de meus filhos. O comerciante ficou visivelmente surpreso pela mudança de atitude, mas conhecia assim a Luzia há anos suficientes para saber que quando ela tomava uma decisão com essa firmeza, raramente mudava de ideia. Ele aceitou a recusa com elegância profissional e partiu em busca de outras oportunidades.
Após sua partida, Sin Luzia encontrou Balbina no jardim, ensinando as crianças a fazer barquinhos de papel mais elaborados e sofisticados, com velas funcionais e detalhes decorativos. Desta vez, em vez de se incomodar com a atividade ou questionar sua adequação, ela se aproximou do grupo e pediu para aprender também.
Você pode me ensinar como fazer?”, perguntou ela, surpreendendo a todos com seu interesse genuíno. Balbina sorriu amplamente. A primeira vez que se aluzia havia sorrir com tanta liberdade e alegria desde que chegara ao engenho. Claro, sim, há. é mais fácil do que parece, mas requer paciência e atenção aos detalhes. Enquanto aprendia cuidadosamente a dobrar o papel, seguindo as instruções pacientes e detalhadas de Balbina, Sinaluzia refletia profundamente sobre como sua vida e sua perspectiva de mundo haviam mudado de forma tão radical em tão pouco tempo.
O engenho Santa Clara continuava sendo uma propriedade escravista inserida em um sistema econômico e social que ela não tinha poder para mudar sozinha. Mas dentro dos limites de sua propriedade, ela havia criado um pequeno espaço onde o conhecimento era valorizado acima da ignorância, onde a humanidade de cada pessoa era reconhecida e respeitada, e onde suas crianças aprendiam através do exemplo diário que a verdadeira nobreza vinha do caráter, da bondade e da sabedoria, não da cor da pele ou da condição social em que alguém havia nascido. Anos mais tarde, quando Pedro e
Maria Antônia já eram adultos, educados e sensíveis, eles ainda se lembrariam com carinho e gratidão daquelas tardes transformadoras no jardim, aprendendo sobre o mundo através dos olhos sábios e do coração generoso de Balbina. E quando finalmente chegou o dia prometido, em que sim a Luzia cumpriu sua palavra e concedeu a alforria à mulher que havia se tornado muito mais do que uma escrava, havia se tornado uma educadora respeitada, uma amiga querida e uma segunda mãe para seus filhos. Todos sabiam que aquela decisão tomada numa manhã após um incêndio devastador havia
mudado suas vidas para sempre, criando laços que transcendiam as barreiras sociais da época. Balbina, agora uma mulher livre, escolheu conscientemente permanecer no engenho mesmo após receber sua liberdade, continuando a ensinar e a cuidar da família que havia aprendido a amar como sua própria família.
E assim, o engenho Santa Clara tornou-se conhecido em toda a região, não apenas pela qualidade excepcional de sua cana de açúcar, mas também pela educação exemplar e humanitária de seus jovens senhores, que cresceram com uma compreensão única e profunda sobre justiça, compaixão e o valor imensurável do conhecimento compartilhado entre todos os seres humanos.
A história de como Massiná trancou uma escrava educada por medo e preconceito, apenas para descobrir que havia aprisionado um tesouro humano que transformaria sua família para sempre, tornou-se uma lenda sussurrada com esperança entre os escravos de toda a região. uma história inspiradora que provava que, mesmo nos tempos mais sombrios e injustos, a humanidade genuína e a sabedoria compartilhada podiam prevalecer sobre o medo, o preconceito e a ignorância.
Esperamos que você tenha gostado desta história emocionante do Engenho Santa Clara. Se você chegou até aqui, deixe um comentário nos contando de qual cidade você está nos acompanhando. Adoramos saber onde estão nossos ouvintes espalhados pelo Brasil e pelo mundo. Não se esqueça de deixar seu like se a história tocou seu coração e se inscreva no canal para não perder nenhuma das nossas narrativas diárias.
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