A Mulher que Teve o Bebê Arrancado dos Braços na Noite de Natal — 1837, Rio de Janeiro

Eu nunca vou esquecer o som, o choro dele ecoando pelo corredor da Casa Grande enquanto me seguravam no chão da cozinha. Meus braços estendidos tentando alcançá-lo, minhas unhas arranhando as tábuas de madeira. Era véspera de Natal de 1837 e eu acabava de perder a única coisa que me mantinha viva neste mundo.


Meu nome é Isabel, tenho 26 anos e esta é a história de como me arrancaram meu filho nos braços e de tudo o que fiz para tentar encontrá-lo novamente. Deixa eu começar do princípio porque você precisa entender como cheguei até aquela noite maldita. Nasci escrava na fazenda São José, no interior do Rio de Janeiro, filha de Maria e de um pai que nunca conheci.
Minha mãe morreu quando eu tinha 12 anos de febre e fui vendida para uma família na cidade. Foi assim que cheguei à casa do senor Augusto Pereira da Silva, um comerciante de tecidos que morava num sobrado grande na rua do ouvidor, bem no coração do Rio de Janeiro. A casa era imponente, com três andares e janelas altas que davam para a rua movimentada.
Eu trabalhava na cozinha e nos serviços domésticos junto com outras seis escravas. Assim, a Mariana, esposa do Senhor Augusto, era uma mulher magra e de rosto azedo, sempre reclamando de algo. Eles tinham três filhos, todos homens. E o mais velho, Gabriel, tinha 22 anos quando cheguei lá. Vivi 8 anos naquela casa antes que minha vida mudasse completamente.
Eu era apenas mais uma entre, invisível na maioria dos dias, acordando antes do sol nascer para acender o fogão e dormindo tarde depois de lavar a louça do jantar. Aprendi a me tornar pequena, a não chamar atenção, a manter os olhos baixos quando os senhores passavam, mas nem isso foi suficiente. Foi numa noite quente de janeiro de 1836 que Gabriel entrou na dispensa onde eu estava guardando os potes de conserva.
Ele trancou a porta atrás de si. Eu tinha 25 anos e sabia exatamente o que aquilo significava. Tentei sair, mas ele me segurou pelo braço. “Fica quieta”, ele disse com aquela voz que não admitia desobediência. “Você sabe que não pode me negar.” E ele estava certo. Eu não podia negar. Eu era propriedade dele, da família dele.
Meu corpo não era meu. Então, fechei os olhos e deixei acontecer, porque não havia escolha. Quando terminou, ele saiu como se nada tivesse acontecido e eu fiquei ali encostada nos sacos de farinha, tentando não chorar porque ainda tinha trabalho a fazer. Aquilo se repetiu mais vezes nas semanas seguintes, sempre quando ninguém estava olhando, sempre rápido e brutal.
Eu aprendi a me desligar, a mandar minha mente para outro lugar enquanto meu corpo permanecia ali. Pensava na minha mãe, nas histórias que ela contava sobre a África, sobre um lugar onde éramos livres. Eu nunca acreditei nessas histórias, mas naqueles momentos eu precisava acreditar em alguma coisa. Dois meses depois, percebi que minha menstruação não tinha vindo.
Senti meu estômago gelar. Esperei mais um mês, depois mais outro. E quando finalmente não havia mais dúvida, fui até a velha Joaquina, a escrava mais antiga da casa, que entendia dessas coisas. Ela colocou a mão na minha barriga, fechou os olhos e assentiu. “Você está esperando criança?”, ela disse baixinho. “Uns 3 meses, pelo que parece.
Eu quis morrer naquele momento. Quis simplesmente deitar e deixar a vida escapar de mim. Uma criança, uma criança escrava que nasceria para o mesmo destino que eu. Uma criança que seria propriedade da família Pereira da Silva antes mesmo de respirar pela primeira vez. Chorei durante dias escondida, sempre à noite quando as outras já dormiam.
Mas algo estranho começou a acontecer. Conforme os meses passavam, senti a criança se mexer dentro de mim pela primeira vez em maio, um movimento suave, como asa de borboleta. E apesar de tudo, apesar do horror de como aquela vida foi gerada, eu comecei a amá-la. Era a única coisa no mundo que era minha, mesmo que legalmente não fosse.
Era um pedaço de mim crescendo, uma vida que dependia de mim. Assim, a Mariana descobriu minha gravidez em junho. Ela me chamou na sala e me olhou de cima a baixo com nojo. “Quem é o pai?”, ela perguntou. Eu mantive os olhos no chão. “Não sei, senh!” Ela deu um tapa no meu rosto. Vagabunda. Você vai ter esse filho e vai continuar trabalhando.
E quando nascer, a gente decide o que fazer com ele. Meu sangue gelou com aquelas últimas palavras. Continuei trabalhando até o último dia. Mesmo com a barriga enorme, eu carregava baldes de água, lavava roupa, cozinhava. As outras escravas me ajudavam quando podiam, pegando os fardos mais pesados, me dando um pedaço extra de comida.
Joaquina me dizia para ter esperança. Às vezes os senhores deixam as mães ficarem com os filhos pequenos ela disse. Mas eu via em seus olhos que ela não acreditava nisso. Meu filho nasceu numa madrugada fria de setembro de 1836. As dores começaram durante a noite e Joaquina me ajudou no parto ali mesmo no quartinho que eu dividia com outras três escravas.
Foi um parto difícil, demorado, e houve momentos em que achei que não sobreviveria. Mas quando ouvi o primeiro choro dele, quando Joaquina colocou aquele serzinho minúsculo e perfeito nos meus braços, tudo mais deixou de importar. Ele era lindo, tinha a pele mais clara que a minha, olhos grandes e escuros e aquele cheiro que só bebê tem.
Eu o chamei de Miguel, o nome do meu avô, um nome que minha mãe tinha me contado antes de morrer. Miguel, eu sussurrei, beijando sua testa. Você é meu Miguel. Os primeiros meses foram os mais felizes da minha vida, apesar de tudo. Eu acordava antes da aurora como sempre, mas agora tinha Miguel dormindo numa cesta ao meu lado enquanto eu trabalhava.
Amamentava ele escondida durante o dia, roubando minutos preciosos entre uma tarefa e outra. À noite eu o embalava cantando baixinho, inventando canções, prometendo coisas que sabia que não podia cumprir. Gabriel nunca reconheceu o menino, nunca olhou para ele, nunca perguntou nada. Para ele, Miguel simplesmente não existia.
Assim, a Mariana, por outro lado, olhava para meu filho com uma expressão que eu não conseguia decifrar. Às vezes parecia raiva, às vezes algo pior. Eu tentava mantê-lo longe dos olhos dela o máximo possível. Miguel cresceu rápido. Com três meses já sorria. Com seis já tentava sentar. Com 9 meses falou mamãe pela primeira vez. Eu chorei tanto que Joaquina pensou que algo estava errado.
“Nada está errado”, eu disse, segurando meu filho contra o peito. “Pela primeira vez na vida, algo está certo, mas eu deveria saber que felicidade não era permitida para pessoas como eu. Deveria saber que tudo o que amamos pode ser arrancado a qualquer momento.” Em dezembro de 1837, ouvi conversas na sala de jantar que fizeram meu sangue gelar.
O senhor Augusto estava falando sobre dívidas, sobre a necessidade de levantar dinheiro rápido. E então ouvi assim a Mariana dizer: “E aquele filho da Isabel já tem mais de um ano, pode ser vendido”. Senti meu mundo desabar. Naquela noite abracei Miguel tão forte que ele reclamou: “Mamãe vai te proteger”, eu prometi, sabendo que era uma mentira.
Ninguém vai te levar de mim. Mas mesmo enquanto dizia isso, eu sabia que não havia nada que eu pudesse fazer. Eu era escrava. Ele era escravo. Nós não tínhamos direitos, nós não tínhamos escolha. Tentei implorar. No dia seguinte me ajoelhei aos pés da Sinha Mariana. Por favor, Senhá, não venda meu filho. Eu faço qualquer coisa.


Trabalho mais, durmo menos, faço o que a senhora quiser, mas não leve meu filho de mim. Ela me olhou com frieza. Levanta daí, Isabel. A decisão já está tomada. Já tem um comprador, um fazendeiro de vassouras que precisa de crianças para treinar para o trabalho. Vassouras, uma cidade há dias de viagem daqui. Eu nunca mais veria meu filho.
Ele cresceria sem saber quem era sua mãe, trabalhando em alguma fazenda, quebrando as costas nos cafezais. E não havia nada, absolutamente nada que eu pudesse fazer para impedir. Os dias que se seguiram foram um pesadelo. Eu sabia que a qualquer momento viriam buscar Miguel. Cada vez que ouvia passos, meu coração parava.
Cada vez que alguém entrava na cozinha, eu agarrava meu filho com mais força. Joaquina tentava me consolar. “Talvez eles mudem de ideia”, ela dizia. Mas as duas sabíamos que não. Chegou a véspera de Natal. A casa estava em preparativos para a ceia, com a senha Mariana dando ordens para lá e para cá. Eu estava na cozinha com Miguel no colo, preparando os pratos para a noite.
Ele brincava com um pedaço de pano, fazendo aqueles barulhinhos de bebê que me derretiam o coração. Eu o beijei na cabeça mil vezes naquele dia, como se pudesse guardar cada momento. Por volta das 7 da noite, um homem entrou pela porta da cozinha. Era alto de barba grisalha, chapéu de couro. Atrás dele vinha o Senr. Augusto.
Meu coração disparou. Eu sabia. Eu sabia quem era aquele homem e por estava ali. É esse? O homem perguntou, apontando para Miguel. O Senr. Augusto assentiu. Tem um ano e três meses. Saudável, forte. Vai dar um bom trabalhador em alguns anos. Eles falavam do meu filho como se ele fosse gado, como se fosse uma ferramenta, não como um ser humano, não como uma criança que sorria e chamava mamãe.
Não eu disse levantando. Minha voz saiu mais alta do que pretendia. Não, por favor, ele é muito pequeno ainda. Deixa ele ficar mais um pouco, por favor. O Sr. Augusto me olhou com irritação. Cala a boca, Isabel. Isso não é da sua conta. O fazendeiro estendeu os braços. Passa o menino para cá. Eu recuei apertando Miguel contra meu peito.
Ele começou a chorar, sentindo minha tensão. Não disse de novo. Vocês não vão levar meu filho. Vocês não vão. Ouvi passos atrás de mim e de repente mãos fortes me seguraram pelos braços. Era José, um dos escravos que trabalhava no armazém do Senr. Augusto. Desculpa, Isabel. Ele sussurrou enquanto me segurava.
Tentei me debater, gritar, chutar, tentei tudo, mas era inútil. O fazendeiro arrancou Miguel dos meus braços. Meu filho começou a berrar, estendendo os bracinhos para mim, chorando. Mamãe, mamãe, esse som, esse maldito som que nunca vai sair da minha cabeça. Miguel! Eu gritei tentando me soltar. Meu filho, deixa meu filho. O Senr.
Augusto deu um tapa no meu rosto que fez minha visão escurecer por um momento. “Controla essa negra”, ele ordenou. Me jogaram no chão da cozinha e eu fiquei ali com três pessoas me segurando enquanto o fazendeiro saía pela porta com meu filho nos braços. Eu consegui me soltar por um segundo e corri atrás deles. Cheguei até a porta da rua e vi o homem colocando Miguel numa carruagem.
Meu filho chorava desesperado, o rostinho vermelho, as mãozinhas estendidas. Mamãe, mamãe! Nossos olhos se encontraram por um último momento, um único momento que eu guardo como o tesouro mais precioso e a maldição mais terrível da minha vida. Então me puxaram de volta para dentro, me arrastaram até a cozinha, me trancaram no quartinho dos fundos e eu fiquei ali no chão ouvindo o som da carruagem se afastando, levando meu filho, levando minha razão de viver, levando tudo.
Eu não sei quanto tempo fiquei naquele quarto, horas, talvez dias. Não comi, não bebi, apenas fiquei ali olhando para o nada, sentindo um vazio tão grande dentro de mim que parecia que ia me engolir. Joaquina tentou me fazer comer, mas eu recusava tudo. Deixa eu morrer, eu pedia. Por favor, deixa eu morrer. Mas eu não morri.
Por mais que quisesse, meu corpo continuou funcionando, meu coração continuou batendo e aos poucos o vazio foi sendo substituído por outra coisa, raiva. Uma raiva tão profunda, tão ardente, que me assustava. Raiva do Senhor Augusto, raiva da Siná Mariana, raiva de Gabriel, raiva de José, que me segurou enquanto levavam meu filho, raiva do mundo inteiro que permitia que isso acontecesse.
Me obrigaram a voltar ao trabalho três dias depois eu voltei, mas era como se minha alma tivesse morrido. Fazia tudo mecanicamente. Não falava com ninguém, não olhava para ninguém. À noite, quando deitava, eu ainda podia sentir o peso de Miguel nos meus braços. Ainda podia ouvir seu choro. Meus seios ainda produziam leite, manchando minha roupa, uma lembrança física constante do filho que me arrancaram.
Passei semanas assim em algum tipo de transe, mas então algo mudou. Comecei a fazer perguntas: onde ficava vassouras? Qual era o nome do fazendeiro? para qual fazenda Miguel tinha sido levado? Joaquina me olhava com pena, sabendo o que eu estava pensando. Isabel, não faz isso. Você não pode ir atrás dele.
Eles vão te pegar e vai ser pior. Mas eu não me importava. Comecei a juntar informações em segredos. Descobri que o fazendeiro se chamava Capitão José Rodrigues. Descobri que a fazenda dele era a fazenda Boa Vista em Vassouras. Descobri que levava cerca de dois dias de viagem para chegar lá e comecei a fazer planos.
Em fevereiro de 1838, exatamente dois meses depois de perder Miguel, eu fugi. Esperei uma noite sem lua, peguei um pouco de comida que consegui esconder, coloquei meu chale mais quente e simplesmente saí pela porta dos fundos. Meu plano era simples, chegar a Vassouras, encontrar a Fazenda Boa Vista, ver meu filho, nem que fosse de longe.
Eu não tinha ideia de quão impossível era o que estava tentando fazer. Não conhecia o caminho, não tinha documentos, não tinha dinheiro, era uma escrava fugida e qualquer pessoa podia me prender e me devolver. Mas nada disso importava. Eu precisava ver meu filho. Caminhei durante toda aquela primeira noite, seguindo a estrada que saía do rio em direção ao interior.
Quando o sol começou a nascer, me escondi no mato com medo de ser vista. Fiquei ali o dia todo, tremendo de frio, com fome, mas determinada. Quando a noite caiu de novo, continuei caminhando. No segundo dia, encontrei um grupo de escravos trabalhando numa roça à beira da estrada. Me aproximei com cuidado e uma mulher mais velha me viu.
Ela olhou para mim e entendeu imediatamente que eu era fugida. “Você está procurando alguém?”, ela perguntou baixinho. “Meu filho?”, eu respondi. “Levaram ele para vassouras?” Ela apontou na direção. Continua por essa estrada. Mais dois dias de caminhada, mas cuidado, tem capitães do mato por toda parte. Ela me deu um pedaço de pão e um pouco de água.
Que Deus te proteja, irmã, continuei. Meus pés sangravam dentro dos sapatos velhos. Minha barriga doía de fome. Mas continuei. Durante o dia me escondia. Durante a noite caminhava. Bebia água de riachos, comia frutas que encontrava pelo caminho e pensava em Miguel, no seu sorriso, no jeito que ele segurava meu dedo, no som da sua risada.
No quarto dia, finalmente vi a placa. Vassouras. Tinha conseguido, estava lá. Agora só precisava encontrar a fazenda Boa Vista. Perguntei a um escravo que estava indo para o mercado. Ele me olhou desconfiado, mas apontou: “Segue essa estrada por mais uma légua. É uma fazenda grande, não tem como errar. Portão de ferro.
Quando vi o portão, meu coração começou a bater tão rápido que achei que ia desmaiar. Estava ali. Meu filho estava ali em algum lugar dentro daquela fazenda. Esperei o anoitecer e pulei o muro nos fundos. A propriedade era enorme, com um casarão grande e várias cenzalas atrás. Andei pelas sombras, procurando, procurando, e então finalmente ouvi um choro de criança vindo de uma das cenzalas.
Meu coração parou. Era ele? Corri até a porta e espiei por uma fresta na madeira. E lá estava ele, Miguel, meu Miguel. Estava deitado numa esteira suja, chorando com o rosto sujo de lágrimas e terra. Tentei abrir a porta, mas estava trancada. Miguel, eu chamei baixinho. Miguel, é a mamãe. Hum.
Ele parou de chorar por um momento e olhou na direção da porta, mas ele não me reconheceu. Como poderia? tinha apenas um ano e três meses quando me tiraram dele. E eu tentei, eu tentei tanto abrir aquela porta, arrancar a madeira com as próprias mãos. Então, ouvi gritos. Tem alguém ali? Vozes de homens, cachorros latindo, vi luzes de tochas se aproximando.
Corri, corri com toda a força que tinha. Pulei o muro de novo e continuei correndo pela estrada com lágrimas descendo pelo meu rosto. Tinha visto meu filho, mas não consegui chegar até ele. Não consegui pegá-lo no colo. Não consegui levá-lo embora. Me esconderam no mato por horas, ouvindo os cães e os homens me procurando.
Quando finalmente silenciou, continuei caminhando, mas não de volta ao rio. Não conseguia voltar para lá. Não conseguia voltar para aquela casa onde me arrancaram meu filho. Então, simplesmente continuei andando sem destino, sem plano. Fui capturada três dias depois por capitães do mato. Me levaram acorrentada de volta ao Rio de Janeiro. O Senr.
Augusto estava furioso. Me mandou açoitar na frente dos outros escravos como exemplo. 20 chibatadas que rasgaram minhas costas e me deixaram sangrando no chão. Mas eu mal sentia a dor física. A dor de ter visto meu filho e não poder trazê-lo comigo era muito maior. Voltei ao trabalho, mas agora como escrava vigiada. Não me deixavam sair da casa.
Alguém sempre estava de olho em mim. Os meses passaram. O ano de 1838 virou 1839. Eu continuava viva, mas não era vida, era só existência. acordar, trabalhar, dormir, repetir. E então, numa manhã de abril de 1839, algo aconteceu. Assim, a Mariana me chamou na sala. Isabel, eu vendi você, ela disse sem rodeios.
Você vai para outra casa. O novo dono vem te buscar amanhã. Eu não senti nada, nem alívio, nem tristeza, apenas aceitei. O novo dono era um senhor mais velho, viúvo, que morava sozinho com seus escravos numa casa menor na Tijuca. Ele não era gentil, mas também não era cruel como o Senr. Augusto. E lá, naquela casa nova, algo estranho aconteceu.
Conheci outro escravo, um homem chamado Tomás, que havia perdido sua família também. Não nos apaixonamos, mas nos reconhecemos. Reconhecemos a dor um no outro. Tomás me contou que existiam grupos que ajudavam escravos a fugir para os quilombos. me disse que talvez, se tivéssemos sorte pudéssemos encontrar uma forma de conseguir documentos falsos de alforria.
Pela primeira vez, em mais de um ano, senti algo parecido com esperança. Hoje, enquanto escrevo estas palavras em segredo, já se passaram 7 anos desde aquela véspera de Natal de 1837. Miguel deve ter 8 anos agora. Eu me pergunto se ele se lembra de mim. Me pergunto se ele está bem, se está saudável, se alguém é gentil com ele.


Me pergunto se ele sabe que tem uma mãe que nunca parou de pensar nele, nem por um único dia. Tomás e eu estamos planejando nossa fuga, não para voltar ao rio ou para vassouras, mas para um quilombo nas montanhas, onde dizem que vivem centenas de fugitivos. E meu sonho, meu único sonho é que um dia, de alguma forma, por algum milagre, eu possa encontrar Miguel novamente.
Que eu possa olhar nos seus olhos e dizer: “Eu nunca te esqueci. Eu nunca parei de te procurar. Você sempre foi meu filho e eu sempre fui sua mãe. Mas mesmo se isso nunca acontecer, mesmo se eu morrer sem nunca mais vê-lo, eu quero que alguém saiba a nossa história. Quero que alguém saiba que existiu uma mulher chamada Isabel, que teve seu bebê arrancado dos braços na noite de Natal de 1837, que ela gritou, lutou, sangrou, que ela fugiu e foi capturada, que ela nunca se rendeu, nunca parou de amar, nunca esqueceu. Porque em algum lugar, nesta
terra brutal, onde pessoas são tratadas como coisas, onde mães são separadas de filhos, onde famílias são despedaçadas por ganância, ainda existe amor, ainda existe esperança, ainda existe luta. E enquanto eu respirar, eu vou continuar lutando, vou continuar procurando, vou continuar amando meu filho onde quer que ele esteja, porque ele é Miguel.
Ele é meu e nada, nem todas as correntes deste mundo vai mudar isso.

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