A escrava Roberta viu o médico da fazenda sair correndo — e a senhora sabia exatamente o motivo

O vento soprava forte pelos canaviais da fazenda Ventos do Campo, carregando consigo o aroma doce da cana-de-açúcar, misturado ao suor e ao sofrimento de centenas de almas que trabalhavam sob o sol escaldante do interior brasileiro. Era o ano de 1850 e as tensões sobre a abolição da escravatura começavam a ecoar pelos salões das casas grandes, enquanto nas senzalas os sonhos de liberdade sussurravam baixinho entre as palhas dos colchões. Naquela manhã de dezembro, quando o calor já prometia ser sufocante antes mesmo do sol atingir o meio do céu, algo perturbou a rotina da fazenda de uma forma que ninguém poderia imaginar. O que começou como mais um dia comum de trabalho forçado se transformaria em uma sequência de eventos que mudaria para sempre o destino de todos os envolvidos.

A fazenda Ventos do Campo era uma das propriedades mais prósperas da região, com suas extensas plantações de cana-de-açúcar e café que se estendiam até onde os olhos podiam alcançar. O Coronel Evangelina havia herdado a propriedade de seu pai e a expandido consideravelmente ao longo dos anos, tornando-se um dos homens mais influentes da província. Sua esposa, Sinhá Vitória, era conhecida tanto por sua beleza quanto por seu temperamento volátil e sua crueldade para com os escravos. Roberta limpava os vidros da janela da biblioteca quando viu o Doutor Manuel Rocha Seródio, saindo pela porta dos fundos da Casa Grande, com uma pressa que jamais havia presenciado. O médico da fazenda, homem sempre composto e de gestos medidos, corria como se fugisse do próprio diabo, carregando sua maleta de couro com uma das mãos e segurando o chapéu com a outra. A escrava de 22 anos, que havia aprendido a ler escondido com o antigo capelão da fazenda, sabia observar detalhes que passavam despercebidos pelos outros. E naquele momento, algo no semblante do doutor a inquietou profundamente.

Não era apenas pressa, era terror puro estampado em seu rosto normalmente sereno. Roberta havia chegado à fazenda Ventos do Campo ainda criança, trazida de uma propriedade menor no interior da Bahia após a morte de seus pais. Durante anos trabalhou nas plantações sob o sol escaldante, mas sua inteligência aguçada e sua habilidade para aprender rapidamente chamaram a atenção do antigo capelão, Padre Antônio, que secretamente lhe ensinou a ler e escrever. Quando o padre morreu, dois anos antes, Roberta foi transferida para o serviço doméstico da Casa Grande, onde sua educação clandestina se tornou tanto uma bênção quanto uma maldição. Ela podia compreender as conversas dos senhores, ler os jornais que chegavam da capital, mas também sabia que esse conhecimento a colocava em perigo constante. Sinhá Vitória apareceu na varanda superior da Casa Grande poucos minutos depois, seus olhos seguindo a figura do médico, que já desaparecia entre as árvores que levavam à estrada principal.

A senhora da fazenda, mulher de 40 anos conhecida por sua beleza e por sua crueldade em igual medida, tinha uma expressão que Roberta nunca havia visto antes, uma mistura de satisfação e preocupação que fazia seus olhos brilharem de forma perturbadora. A relação entre Sinhá Vitória e o Dr. Manuel sempre havia sido peculiar. O médico visitava a fazenda regularmente, não apenas para cuidar da saúde dos senhores, mas também para atender os escravos feridos. Uma prática incomum que gerava comentários sussurrados entre os trabalhadores. Alguns diziam que o doutor tinha um coração muito mole para um homem branco. Outros suspeitavam que havia algo mais por trás de sua gentileza. Roberta, a voz cortante da Sinhá ecoou pelo pátio, fazendo vários escravos que trabalhavam nos jardins se encolherem instintivamente. “Venha aqui imediatamente.” A escrava desceu rapidamente as escadas de serviço, mantendo os olhos baixos, como havia aprendido desde criança. O som de seus pés descalços sobre o mármore frio ecoava pelos corredores ornamentados da Casa Grande, onde quadros de ancestrais europeus olhavam com desprezo para qualquer um que ousasse pisar naquele espaço sagrado da família. Sinhá Vitória estava parada no centro do salão principal, suas mãos tremendo ligeiramente enquanto segurava um lenço bordado. O ambiente ao seu redor refletia a opulência da família. Móveis importados da França, tapetes persas, cristais que brilhavam mesmo na luz difusa que entrava pelas janelas. Tudo aquilo havia sido construído com o suor e o sangue de gerações de escravos.

Você viu o doutor sair?“, perguntou a senhora, tentando manter a voz controlada. Mas Roberta podia perceber a tensão que se escondia por trás das palavras cuidadosamente escolhidas. “Sim, Sinhá! Ele parecia ter muita pressa.” “E você não viu mais nada? Não ouviu nada estranho vindo do escritório do meu marido?” Roberta hesitou. Na verdade, havia ouvido vozes alteradas vindo do escritório cerca de uma hora antes, gritos abafados e o som de algo pesado caindo no chão. Mas sabia que admitir isso poderia trazer consequências terríveis. A curiosidade de um escravo era sempre punida com severidade na fazenda Ventos do Campo. “Não, Sinhá. Estava ocupada com a limpeza da biblioteca.” Sinhá Vitória a estudou por um longo momento, seus olhos azuis perfurando a alma da escrava, como se pudesse ler seus pensamentos mais íntimos. A senhora tinha essa habilidade perturbadora de fazer qualquer pessoa se sentir completamente exposta, como se todos os segredos estivessem escritos claramente no rosto. “Muito bem. Quero que você limpe o escritório do Coronel agora.” “E Roberta,” ela se aproximou, sua voz se tornando um sussurro ameaçador que fez a temperatura do ambiente parecer cair alguns graus. “Se você encontrar algo incomum, você me traz imediatamente, entendeu?” “Sim, Sinhá.”

O escritório do Coronel Evangelina ficava no segundo andar da Casa Grande, um ambiente imponente, com estantes repletas de livros sobre agricultura, política e filosofia. Era o local onde ele conduzia os negócios da fazenda e recebia visitantes importantes. Roberta sempre havia sentido uma atmosfera pesada naquele cômodo, como se as paredes guardassem segredos sombrios. Quando Roberta entrou no escritório, o cheiro de pólvora ainda pairava no ar, misturado com o aroma habitual de charutos e couro dos móveis antigos. Suas mãos tremeram ao ver as manchas escuras no tapete persa e os papéis espalhados pela mesa de mogno. Havia sinais claros de luta, uma cadeira derrubada, livros no chão e mais perturbador ainda, gotas de sangue que formavam um rastro até a janela. A escrivaninha estava em desordem total, com gavetas abertas e documentos espalhados, como se alguém tivesse procurado desesperadamente por algo específico. Tinteiros haviam sido derrubados, criando manchas escuras sobre papéis importantes e havia marcas de dedos ensanguentados em alguns documentos. Ela sabia que estava diante de algo muito maior do que uma simples discussão entre o Coronel e o médico.

Enquanto limpava cuidadosamente cada evidência, tentando não alterar demais a cena, mas removendo os sinais mais óbvios de violência, Roberta encontrou uma carta meio queimada na lareira. As palavras que conseguiu decifrar fizeram seu coração disparar. “A abolição é inevitável. Devemos nos preparar para. Os escravos sabem mais do que imaginamos. A liberdade virá, quer queiramos ou não.” Havia também fragmentos de outros documentos que mencionavam reuniões secretas, contatos com abolicionistas do Rio de Janeiro e planos para a libertação gradual dos escravos da fazenda. Roberta percebeu que estava lendo evidências de uma transformação radical que o Coronel planejava implementar, algo que explicaria a reação violenta que havia presenciado. Naquele momento, ela compreendeu que não estava apenas limpando um escritório, estava apagando as evidências de uma conspiração que poderia mudar o destino de todos na fazenda. Mas conspiração de quem contra quem? E onde estava o Coronel Evangelina?

Três dias se passaram desde o incidente no escritório e o Coronel Evangelina não havia retornado à fazenda. Sinhá Vitória mantinha uma fachada de normalidade durante o dia, recebendo visitas e supervisionando o trabalho, como sempre fazia. Mas Roberta a havia visto caminhando pelos corredores durante a madrugada, sussurrando orações ou talvez maldições em uma língua que não conseguia identificar. A ausência do Coronel começava a gerar comentários entre os escravos e os trabalhadores livres da fazenda. Alguns diziam que ele havia viajado para a capital em negócios urgentes. Outros sussurravam que havia fugido com uma amante. Mas Roberta sabia que algo muito mais sinistro havia acontecido naquele escritório. Durante esses três dias, ela observou mudanças sutis, mas significativas na rotina da fazenda.

João Batista, o feitor mais cruel e temido pelos escravos, havia assumido responsabilidades que normalmente cabiam apenas ao Coronel. Ele agora carregava as chaves dos depósitos de armas e supervisionava pessoalmente as reuniões com os capatazes. João Batista era um homem brutal, filho de um antigo escravo que havia comprado sua própria liberdade e depois se tornado ainda mais cruel com seus antigos companheiros de sofrimento. Sua lealdade a Sinhá Vitória era absoluta e Roberta sempre suspeitara que havia algo mais do que uma relação profissional entre eles. Foi durante uma dessas noites de insônia que Roberta descobriu a verdade que mudaria tudo. Ela havia descido à cozinha para buscar água quando ouviu vozes vindas da despensa. A cozinha da Casa Grande era um ambiente amplo, com um grande fogão à lenha e prateleiras repletas de mantimentos importados. Durante a noite, o local se transformava em um espaço sombrio, iluminado apenas pela luz fraca que entrava pelas pequenas janelas. Roberta se escondeu atrás das grandes panelas de ferro e viu Sinhá Vitória conversando com João Batista. A senhora estava diferente da mulher elegante que se apresentava durante o dia. Seus cabelos estavam desalinhados e havia uma intensidade selvagem em seus olhos que fazia Roberta tremer.

O corpo está bem escondido?“, perguntou a senhora, sua voz fria como gelo, cortando o ar quente da noite. “Sim, Sinhá. Ninguém vai encontrar o Coronel onde ele está. O poço abandonado no limite da propriedade é profundo e cobri tudo com pedras. Mas e o doutor? Ele viu tudo.” Roberta sentiu o mundo girar ao seu redor. O Coronel Evangelina estava morto e sua própria esposa era a responsável. As mãos da escrava tremeram tanto que ela quase derrubou uma das panelas, mas conseguiu se controlar a tempo. “Manuel não vai falar. Ele tem segredos próprios que não quer expostos. Além disso, quem acreditaria na palavra de um médico contra a minha?Sinhá Vitória riu baixinho, um som que não tinha nada de humano. “Ele estava envolvido com aquela escrava da fazenda vizinha, a mulata que morreu no parto ano passado. Se ele abrir a boca, eu conto para todos que o filho era dele.” A revelação sobre o Doutor Manuel explicava muita coisa sobre seu comportamento estranho e sua dedicação excessiva ao cuidado dos escravos. Roberta lembrava vagamente da mulher mencionada, uma escrava jovem e bonita que havia morrido em circunstâncias misteriosas.

Os escravos estão fazendo perguntas sobre o sumiço do Coronel, principalmente aqueles que sabem ler.” “Deixe-os perguntar, logo eles terão outras preocupações.” Sinhá Vitória sorriu de forma sinistra, seus dentes brancos brilhando na penumbra como os de um predador. “Amanhã começaremos a vender alguns deles. Preciso de dinheiro para manter as aparências e os mais espertos… Bem, eles podem se tornar um problema.” O coração de Roberta quase parou. Ela sabia que estava na lista dos espertos. Havia notado os olhares suspeitos da Sinhá nos últimos dias. A forma como a senhora a observava quando pensava que não estava sendo vista. “Qual deles vai primeiro?“, perguntou o feitor. “A Roberta. Ela sabe ler e sempre foi muito observadora. Já tenho um comprador interessado, um fazendeiro de Minas Gerais que gosta de escravas educadas.” O tom de voz da Sinhá ao pronunciar a última palavra fez Roberta sentir náusea. “E os outros? O velho Tomás, que trabalha na carpintaria, ele ouviu demais ao longo dos anos. A Maria que cozinha, ela sempre soube mais do que deveria sobre os negócios da família. E aquele menino, o Pedro, que carrega as cartas, ele pode ter lido algo que não deveria.” Roberta percebeu que Sinhá Vitória estava planejando se livrar de todos os escravos que poderiam representar uma ameaça, seja por seu conhecimento ou por sua capacidade de compreender o que havia acontecido. Era um plano meticuloso para apagar todas as evidências e testemunhas.

Quando conseguiu voltar silenciosamente ao seu quarto na senzala, Roberta encontrou uma surpresa esperando por ela. Sobre seu colchão de palha havia um bilhete escrito com letra elegante: “Se você quer salvar a si mesma e aos outros, encontre-me na capela abandonada ao amanhecer. Venha sozinha. Dr. Manuel Rocha Seródio.” O médico queria encontrá-la. O resto da noite passou lentamente com Roberta alternando entre o medo e a esperança. Ela sabia que confiar no Doutor era arriscado. Afinal, ele havia sido o cúmplice silencioso do assassinato do Coronel, mas também sabia que não tinha outras opções. Se não agisse rapidamente, seria vendida para um destino pior que a morte.

Quando os primeiros raios de sol começaram a iluminar o horizonte, pintando o céu de tons dourados e rosados, ela saiu silenciosamente da senzala. Os outros escravos ainda dormiam, exaustos após mais um dia de trabalho brutal. Roberta caminhou cuidadosamente entre as fileiras de casebres, evitando os cães que guardavam a propriedade e os vigias noturnos que patrulhavam os limites da fazenda. A antiga capela ficava a cerca de 15 minutos de caminhada da senzala, escondida entre árvores centenárias que formavam uma pequena clareira. O local havia sido construído pelo avô do Coronel, mas foi abandonado após a morte do Padre Antônio. Agora, as paredes de pedra estavam cobertas de musgo e trepadeiras, e o teto havia parcialmente desabado, deixando entrar a luz do sol nascente. Dr. Manuel estava lá parado diante do altar destruído, sua aparência muito diferente do homem composto que ela conhecia. Seus olhos estavam vermelhos de cansaço e suas mãos tremiam visivelmente. O médico parecia ter envelhecido anos em apenas alguns dias.

Roberta,” ele disse quando a viu entrar, sua voz rouca e carregada de emoção. “Eu sei que você sabe. Vi em seus olhos no dia em que no dia em que tudo aconteceu.” “Doutor, eu não sei de nada,” ela respondeu cautelosamente, ainda não confiando completamente nele. “Não minta para mim. Não temos tempo para isso.” Ele se aproximou, sua voz urgente e desesperada. “Vitória matou o marido. Eu vi tudo. Ela descobriu que ele estava planejando libertar todos os escravos da fazenda e doar as terras para a igreja. O Coronel havia se convertido secretamente ao abolicionismo após uma viagem ao Rio de Janeiro.” Dr. Manuel revelou a Roberta detalhes perturbadores sobre os últimos meses na fazenda. O Coronel Evangelina havia retornado de uma viagem à capital completamente transformado. Durante sua estadia no Rio de Janeiro, ele havia se encontrado com abolicionistas influentes, visitado escolas para ex-escravos e presenciado debates acalorados sobre o futuro da escravidão no Brasil.

Ele voltou como um homem diferente,” explicou o médico, sentando-se em um dos bancos de madeira deteriorados da capela. “Começou a questionar tudo. A moralidade da escravidão, o destino de sua alma, o legado que deixaria para os filhos. Passou semanas trancado no escritório, escrevendo cartas e fazendo planos.” Roberta ouviu atentamente enquanto Dr. Manuel descrevia como o Coronel havia começado a implementar mudanças sutis na fazenda: melhores condições de vida para os escravos, redução das horas de trabalho, permissão para que alguns aprendessem ofícios especializados, mudanças que Sinhá Vitória via como sinais de fraqueza perigosa. “Vitória descobriu os planos dele por acaso,” continuou o médico. “Ela encontrou uma carta que ele estava escrevendo para um advogado abolicionista, detalhando como pretendia libertar gradualmente todos os escravos e transformar a fazenda em uma cooperativa. Ela ficou furiosa, não apenas pela perda da propriedade, mas pela humilhação social que isso representaria.”

O médico revelou que havia documentos escondidos no consultório médico da fazenda, papéis que provavam as intenções abolicionistas do Coronel e que também continham evidências de outros crimes cometidos por Sinhá Vitória ao longo dos anos. “Mas recuperar esses documentos seria extremamente perigoso. Ela planeja vender você e mais 10 escravos amanhã para um fazendeiro do interior de Minas Gerais,” disse o médico, seus olhos cheios de remorço. “Um homem conhecido por sua crueldade extrema. Você não sobreviveria um mês lá.” Roberta sentiu o desespero tomar conta de seu peito, mas também uma determinação férrea que nunca havia experimentado antes. “O que podemos fazer?” “Existe uma rede de pessoas que ajudam escravos fugitivos a chegarem até os quilombos ou até mesmo ao Rio de Janeiro, onde há abolicionistas que podem oferecer proteção. Mas primeiro precisamos desses documentos. Sem eles, será apenas a palavra de um médico covarde e uma escrava fugitiva contra uma senhora respeitada da sociedade.”

Dr. Manuel explicou que os documentos incluíam não apenas os planos abolicionistas do Coronel, mas também registros de assassinatos anteriores cometidos por Sinhá Vitória. Aparentemente, ela havia envenenado lentamente o primeiro marido para se casar com o Coronel e havia mandado matar pelo menos três escravos que sabiam demais sobre seus segredos. Eles elaboraram um plano arriscado durante a festa de Natal que aconteceria naquela noite. Uma tradição que Sinhá Vitória manteria para preservar as aparências e evitar suspeitas sobre o desaparecimento do marido. Roberta se infiltraria no consultório enquanto Dr. Manuel distraía a senhora e os convidados. “A festa será a nossa única oportunidade,” explicou ele. “Vitória estará ocupada, representando o papel da esposa preocupada, e a maioria dos capatazes estará bebendo. Mas temos que ser extremamente cuidadosos. Se formos descobertos, ela nos matará sem hesitar.” O médico também revelou detalhes sobre a rede de apoio que poderia ajudá-los. Havia um padre abolicionista em uma cidade vizinha que mantinha contatos com quilombolas e com abolicionistas urbanos. Existiam rotas secretas através das montanhas e códigos específicos que identificavam pessoas dispostas a ajudar escravos fugitivos. “Meu próprio envolvimento com essa rede começou por culpa,” admitiu Dr. Manuel. “Quando a escrava da fazenda vizinha morreu no parto, eu soube que o filho era meu. A culpa me consumiu e comecei a ajudar outros escravos como uma forma de penitência.”

Quando a noite chegou, a Casa Grande se encheu de fazendeiros vizinhos e suas famílias. O som de música e risos contrastava cruelmente com a tensão que Roberta sentia em cada fibra de seu ser. Ela serviu os convidados durante a primeira parte da festa, observando cada movimento de Sinhá Vitória. A senhora da fazenda estava radiante, representando perfeitamente o papel da esposa dedicada, que aguardava ansiosamente o retorno do marido de sua viagem de negócios. Ela circulava entre os convidados com elegância, aceitando condolências pela ausência do Coronel e garantindo a todos que ele retornaria em breve. Por volta das 10 horas, quando o álcool já havia relaxado a vigilância dos presentes, Dr. Manuel deu o sinal combinado.

Ele começou a contar uma longa história sobre suas experiências médicas na capital, capturando completamente a atenção dos presentes com detalhes fascinantes sobre novos tratamentos e descobertas científicas. Roberta se esgueirou pelos corredores escuros até o consultório, seu coração batendo tão forte que temia que alguém pudesse ouvi-lo. O consultório ficava em uma ala separada da Casa Grande, conectada por uma passagem coberta que o Coronel havia mandado construir para garantir privacidade durante os tratamentos médicos. O local estava exatamente como o médico havia descrito. Atrás de uma estante de livros médicos, havia um compartimento secreto onde estavam guardados os documentos. Suas mãos tremeram ao tocar os papéis que poderiam significar liberdade ou morte, não apenas para ela, mas para dezenas de outras pessoas. Os documentos eram ainda mais explosivos do que ela havia imaginado. Além dos planos abolicionistas do Coronel, havia cartas detalhando uma rede de corrupção que envolvia autoridades locais, registros de assassinatos e até mesmo evidências de tráfico ilegal de escravos após a proibição oficial.

Mas quando se virou para sair, encontrou-se com Sinhá Vitória parada na porta, seus olhos brilhando com uma fúria assassina que fez o sangue de Roberta gelar nas veias. “Eu sabia que você estava envolvida nisso,” disse a senhora. Sua voz baixa e perigosa, como o sibilo de uma serpente. “Uma escrava que sabe ler é sempre um problema. Deveria ter me livrado de você há muito tempo.” Roberta tentou esconder os papéis atrás das costas, mas era tarde demais. Sinhá Vitória havia visto tudo e seu sorriso cruel revelava que ela estava saboreando aquele momento de triunfo. “João Batista!” gritou a senhora. “Venha aqui imediatamente.” O som de passos pesados ecoou pelo corredor, acompanhado por vozes de outros homens. Roberta percebeu que não era apenas o feitor que estava vindo, Sinhá Vitória havia preparado uma emboscada. Roberta sabia que tinha apenas segundos antes que os homens chegassem.

Em um movimento desesperado, ela jogou os documentos pela janela aberta, esperando que Dr. Manuel pudesse recuperá-los mais tarde, e gritou o mais alto que pôde: “Assassina! Ela matou o Coronel, sua maldita!Sinhá Vitória avançou sobre ela com as mãos estendidas como garras, mas Roberta foi mais rápida. Ela empurrou a senhora, que caiu sobre uma mesa cheia de instrumentos médicos, criando um estrondo que ecoou por toda a ala médica. Roberta correu em direção à janela exatamente quando João Batista e dois outros homens entravam no consultório. Podia ouvir os gritos de Sinhá Vitória, ordenando que a capturassem viva, seguidos por maldições que fariam um marinheiro corar. Ela saltou para o jardim, sentindo a dor aguda quando seus pés descalços tocaram o chão pedregoso. Atrás dela, o som de cães latindo começou a ecoar pela noite. A caçada havia começado e ela sabia que não teria uma segunda chance.

Roberta correu pela mata fechada que cercava a fazenda, guiada apenas pela luz da lua e pelo conhecimento que havia adquirido durante anos, explorando secretamente aquelas terras. Os cães estavam se aproximando, seus latidos ficando cada vez mais altos e ameaçadores, ecoando pela floresta como gritos de demônios. A escrava conhecia cada trilha, cada pedra, cada árvore daquela mata. Durante sua infância, quando ainda trabalhava nas plantações, ela havia descoberto passagens secretas e esconderijos que agora se tornavam sua salvação. Mas os cães conheciam seu cheiro e ela sabia que precisava de algo mais do que conhecimento do terreno para escapar. Atrás dela podia ouvir as vozes dos perseguidores se organizando.

João Batista gritava ordens, dividindo os homens em grupos para cobrir todas as possíveis rotas de fuga. Sinhá Vitória havia mobilizado não apenas os capatazes da fazenda, mas também vizinhos e até mesmo alguns escravos que foram forçados a participar da caçada sob ameaça de morte. Roberta sabia que tinha apenas uma chance: chegar ao rio que marcava a divisa com a fazenda vizinha. Se conseguisse atravessá-lo, poderia confundir o rastro e ganhar tempo precioso. Mas o rio ficava a mais de duas léguas de distância, através de um terreno acidentado e perigoso.

Enquanto corria, ela pensava nos outros escravos que seriam vendidos no dia seguinte. O velho Tomás, que havia lhe ensinado a talhar madeira quando era criança. A Maria, que sempre dividia sua comida quando Roberta estava doente. O jovem Pedro, que sonhava em aprender a escrever. Todos eles pagariam o preço por sua tentativa de fuga. Mas ela também sabia que se fosse capturada, não apenas morreria, mas levaria consigo a única esperança de justiça para o Coronel Evangelina e para todos os outros que haviam sofrido nas mãos de Sinhá Vitória.

A mata se tornava mais densa à medida que ela se afastava da fazenda. Galhos baixos rasgavam sua pele e raízes expostas faziam com que tropeçasse constantemente. Mas ela continuou correndo, impulsionada por uma determinação que vinha de décadas de sofrimento acumulado. Quando finalmente avistou as águas escuras do rio, Roberta não hesitou. O rio estava cheio devido às chuvas recentes e a correnteza era forte o suficiente para arrastar um adulto. Mas ela havia aprendido a nadar naquelas águas quando era criança, em momentos roubados quando os feitores não estavam olhando. Mergulhou na correnteza gelada, lutando contra a força da água, enquanto os gritos dos perseguidores ecoavam atrás dela. A água estava mais fria do que ela lembrava e a correnteza mais forte.

Por um momento, ela pensou que seria arrastada para o fundo, mas conseguiu se agarrar a um galho que pendia sobre a água. Do outro lado, uma figura familiar a esperava. Dr. Manuel havia conseguido escapar da festa e recuperar os documentos. O médico estava molhado e sujo, obviamente tendo corrido pela mata para chegar ali antes dela. “Rápido!” ele gritou, ajudando-a a sair da água. “Tenho cavalos esperando na estrada, mas eles não vão demorar a descobrir que atravessamos o rio.”

Eles correram através de uma plantação abandonada até chegarem a uma estrada secundária, onde dois cavalos estavam amarrados a uma árvore. Dr. Manuel havia planejado cuidadosamente a fuga, incluindo roupas secas e mantimentos para a jornada. “Para onde vamos?” perguntou Roberta enquanto montava, ainda tremendo de frio e adrenalina. “Para a cidade de São Bento do Sul. Há um padre lá que nos ajudará, mas primeiro precisamos chegar à Serra da Mantiqueira. Lá temos aliados que podem nos esconder até que seja seguro continuar.” Eles cavalgaram durante toda a madrugada, parando apenas para descansar os cavalos e verificar se não estavam sendo seguidos.

Dr. Manuel revelou mais detalhes sobre a rede abolicionista durante a viagem, uma organização secreta que incluía padres, médicos, advogados e até mesmo alguns fazendeiros que haviam se convertido à causa da liberdade. “Não somos muitos, mas somos determinados,” explicou ele. “E temos contatos em todo o país. Se conseguirmos chegar ao Rio de Janeiro, você estará segura.” Quando o sol nasceu, eles estavam nas montanhas, seguindo trilhas que poucos conheciam. A paisagem era espetacular. Vales verdes se estendiam até o horizonte e cachoeiras cristalinas despencavam de penhascos rochosos. Era um mundo completamente diferente da fazenda, um lugar onde a liberdade parecia possível.

Por volta do meio-dia, chegaram a uma pequena capela escondida entre as árvores, onde um padre abolicionista os esperava. O homem, de cabelos grisalhos e olhos bondosos, ofereceu-lhes abrigo e prometeu ajudá-los a chegar até o Rio de Janeiro. “Os documentos que vocês trouxeram são explosivos,” disse o padre após examinar os papéis. “Não apenas provam o assassinato do Coronel, mas também revelam uma rede de corrupção que envolve várias autoridades locais. Isso pode mudar muita coisa.” Padre Miguel, como se apresentou, explicou que havia outros casos similares acontecendo por todo o país. Fazendeiros que tentavam libertar seus escravos, sendo assassinados por familiares gananciosos, autoridades corrompidas protegendo criminosos e uma resistência crescente contra qualquer mudança no sistema escravocrata. “Mas também há esperança,” acrescentou ele. “Cada caso que conseguimos expor, cada pessoa que conseguimos libertar, cada documento que preservamos é um passo em direção ao fim dessa abominação.”

Durante os três dias que passaram na capela, Roberta aprendeu mais sobre o movimento abolicionista do que jamais havia imaginado possível. Havia escolas secretas para ex-escravos, jornais clandestinos que denunciavam os horrores da escravidão e uma rede de casas seguras que se estendia do Rio Grande do Sul até o Amazonas. Dr. Manuel usou seus contatos para enviar cópias dos documentos para abolicionistas influentes na capital, enquanto o Padre Miguel organizava a próxima etapa da jornada. Roberta seria levada para o Rio de Janeiro, onde poderia testemunhar contra Sinhá Vitória e ajudar a expor toda a rede de corrupção.

Três meses depois, Roberta estava em uma pequena casa no bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro, trabalhando como professora para filhos de escravos libertos. A cidade era um mundo completamente novo. Ruas pavimentadas, edifícios altos, pessoas de todas as cores vivendo com relativa liberdade. Dr. Manuel havia usado sua influência e os documentos para expor os crimes de Sinhá Vitória. O caso causou escândalo em toda a província, especialmente quando outros fazendeiros começaram a ser investigados com base nas evidências encontradas. Sinhá Vitória foi presa e julgada. Um evento raro para a época, mas que se tornou possível devido à pressão da opinião pública e ao apoio de abolicionistas influentes. O julgamento durou semanas e atraiu atenção nacional.

Roberta testemunhou por carta, já que sua presença física no tribunal seria perigosa demais. Mas seu testemunho, combinado com as evidências documentais e o depoimento de Dr. Manuel, foi suficiente para condenar Sinhá Vitória por assassinato. Mais importante ainda, a fazenda Ventos do Campo foi confiscada pelo governo e suas terras distribuídas entre os antigos escravos, cumprindo finalmente o desejo do falecido Coronel. Foi um dos primeiros casos no Brasil, onde ex-escravos receberam terras como reparação, estabelecendo um precedente importante para o futuro. João Batista e os outros capatazes também foram presos e várias autoridades locais que estavam envolvidas na rede de corrupção foram removidas de seus cargos. O caso se tornou um símbolo da luta contra a escravidão e inspirou outros a se manifestarem contra o sistema.

Roberta nunca esqueceu a noite em que viu o médico sair correndo da Casa Grande. Aquele momento de terror se transformou no primeiro passo de uma jornada que a levou da escravidão à liberdade, provando que às vezes o destino se esconde nos detalhes mais inesperados. Em sua nova vida no Rio de Janeiro, ela se dedicou à educação de ex-escravos e à luta abolicionista. Sua experiência na fazenda Ventos do Campo a havia ensinado que o conhecimento era a arma mais poderosa contra a opressão e ela estava determinada a compartilhar essa arma com quantas pessoas pudesse. Anos mais tarde, quando a abolição finalmente chegou ao Brasil em 1888, Roberta já havia ajudado centenas de outras pessoas a encontrarem o caminho da liberdade. Ela estabeleceu uma escola para ex-escravos que se tornou modelo para outras instituições similares e escreveu um livro sobre suas experiências que inspirou uma geração de abolicionistas. Dr. Manuel também continuou sua luta, usando sua posição médica para ajudar escravos fugitivos.

Related Posts

Our Privacy policy

https://abc24times.com - © 2025 News