27 de abril de 1858, na elegante rua do ouvidor, no coração do Rio de Janeiro imperial, os vizinhos da casa número 43 começavam a ouvir gritos que não cessavam há dois dias. Não eram gritos comuns de castigos domésticos tão frequentes naquela época. Eram gritos de agonia pura de alguém sendo destruído lentamente.

“É a mucama da dona Gabriela”, comentavam as outras escravas em voz baixa. Dizem que ela usou o sabonete da Sá sem permissão. O que ninguém imaginava é que aqueles gritos pertenciam a Marcelina, uma menina de 17 anos que em 48 horas seria transformada de ser humano em cadáver mutilado. Tudo por causa de um pedaço de sabonete francês que cheirava rosas.
Esta é uma história que a elite brasileira tentou enterrar, mas que os registros judiciais preservaram como testemunho da crueldade sem limites do sistema escravocrata. Marcelina havia nascido na própria casa dos Almeida em 1841. Filha de Benedita, a cozinheira da família, cresceu brincando nos corredores daquele sobrado colonial.
sempre alegre, apesar de sua condição. Tinha olhos grandes e expressivos, cabelos crespos que tentava domar com tranças apertadas e uma voz suave que usava para cantar enquanto trabalhava. Aos 12 anos, foi designada como mucama pessoal da Sá Gabriela de Almeida, esposa do comerciante português Francisco de Almeida e Silva.
A escolha parecia um privilégio. Mucamas geralmente recebiam melhor tratamento que escravas da roça ou mesmo da cozinha. Trabalhavam dentro da casa, cuidavam das roupas e da higiene das senhoras. Às vezes até dormiam no mesmo quarto. Mas Marcelina logo descobriria que servir diretamente aá Gabriela era destino pior que qualquer trabalho nos canaviais.
Gabriela de Almeida tinha 32 anos em 1858. Era considerada uma das mulheres mais elegantes da rua do ouvidor, sempre vestida com os melhores tecidos importados de Paris, usando joias caras que o marido lhe presenteava para compensar sua ausência constante em viagens comerciais. Mas por trás da fachada de dama refinada, Gabriela escondia uma crueldade que chocava até mesmo outras senhoras de escravos.
tinha ciúmes doentios de qualquer beleza que não fosse a sua, mesmo em uma escrava adolescente. Inventava faltas imaginárias para justificar castigos cada vez mais sádicos e tinha uma obsessão particular com limpeza e ordem que beirava a insanidade. Seus sabonetes importados da França eram organizados por cor e perfume em sua cômoda de mogno.
Ninguém podia tocá-los sem sua expressa permissão. Nem mesmo para limpar o móvel, as escravas podiam movê-los de lugar. 25 de abril de 1858, era uma quinta-feira quente e úmida, típica do outono carioca. Francisco de Almeida estava viajando para Santos havia uma semana, negociando a compra de café para exportar para Portugal. Gabriela ficara sozinha no sobrado com seis escravas domésticas.
Benedita na cozinha, duas lavadeiras, uma mucama mais velha e Marcelina e sua irmã mais nova Joana. Naquela manhã, Gabriela havia saído para fazer compras nas lojas elegantes da rua do ouvidor, deixando ordens estritas para que a casa fosse limpa da sala aos quartos. Marcelina trabalhou durante horas, lavando o chão de tábuas, espanando os móveis, organizando as roupas de suava suada, suja, exausta.
Suas mãos sangravam de tanto esfregar e torcer panos molhados. O calor era sufocante dentro daquele sobrado, sem ventilação adequada. Foi quando Marcelina viu o pedaço pequeno de sabonete sobre a bacia de porcelana no quarto da Sinh. Era um resto, não maior que uma moeda esquecido ali, provavelmente há dias. O perfume de rosas subia suave no ar quente.
Marcelina olhou para suas mãos machucadas, para seus braços cobertos de sujeira. Pensou que um pedaço tão pequeno, claramente esquecido, não faria falta. Assim tinha dezenas de sabonetes novos guardados. Aquele era apenas um resto que seria jogado fora de qualquer forma. olhou ao redor para certificar-se de que estava sozinha.
Com mãos trêmulas, pegou o pedaço de sabonete, despejou um pouco de água da jarra na bacia e começou a se lavar. Pela primeira vez em meses, sentiu o prazer simples de água limpa e sabão perfumado em sua pele. Fechou os olhos por um momento, permitindo-se imaginar que era uma pessoa normal, que tinha direito àquela pequena dignidade.
Não ouviu os passos na escada. não percebeu quando a porta se abriu silenciosamente. O que você está fazendo? A voz de Gabriela era baixa, perigosamente calma. Marcelina se virou tão rápido que derrubou a bacia, a água se espalhando pelo chão de madeira. O pedaço de sabonete escorregou de suas mãos molhadas.
Sim, eu estava apenas Gabriela entrou no quarto devagar, seus olhos fixos no sabonete caído no chão. Você estava usando meu sabonete. Meu sabonete francês sem minha permissão. Marcelina sentiu o medo subir por sua garganta como Billy. Sinzinha, perdão. Era só um pedacinho que estava sobrando. Pensei que não ia fazer falta.
Gabriela a interrompeu com um tapa violento que lançou a menina contra a parede. Não ia fazer falta. Você acha que tem direito de decidir o que faz ou não falta para mim? Você acha que tem direito de tocar nas minhas coisas, de cheirar como eu, de ter a pele perfumada como uma senhora? Assim, pegou o sabonete do chão, olhou para ele com nojo, depois o jogou pela janela.
Agora você destruiu completamente. Está contaminado pelas suas mãos sujas de negra. O que aconteceu nas horas seguintes seria documentado depois no processo judicial, através dos testemunhos das outras escravas, que ouviram tudo, mas não puderam fazer nada. Gabriela arrastou Marcelina pelos cabelos até o porão da casa, um espaço úmido e escuro onde guardavam ferramentas e provisões.
“Você vai aprender que negra não tem direito a luxos de branca”, disse enquanto amarrava as mãos da menina em um gancho de ferro preso no teto. Marcelina já estava chorando, implorando perdão. “Sim, ah, por favor, nunca mais faço isso. Prometo, por favor.” Gabriela não respondeu. Saiu do porão e voltou minutos depois com um chicote de couro cru, daqueles usados em animais de carga.
O primeiro golpe arrancou um grito que ecoou por toda a casa. Benedita, na cozinha largou a panela que segurava. As outras escravas se entreolharam horrorizadas, mas nenhuma ousou intervir. Interferir significaria sofrer o mesmo castigo. Gabriela chicoteou Marcelina até seus braços doerem de cansaço. Eram mais de 50 golpes.

As costas da menina se transformaram em carne viva, o vestido rasgado, grudado no sangue. Quando finalmente parou, Marcelina estava semiconsciente, pendurada pelos pulsos, gemendo baixinho. “Ainda não acabou”, disse Gabriela com uma calma terrível. “Você queria se lavar?” “Então vai ter água.” Mandou buscar baldes de água gelada do poço e jogou sobre as feridas abertas de Marcelina.
A menina gritou com uma intensidade que fez os vizinhos fecharem as janelas, fingindo não ouvir. Água salgada penetrando nas feridas causava uma dor inimaginável. Mas Gabriela não tinha terminado. Foi até a cozinha, mandou Benedita esquentar uma panela de água até ferver e voltou ao porão. Mãe, não! E gritou Joana, a irmã mais nova de Marcelina, que havia presenciado tudo escondida atrás de Barris.
Gabriela a ignorou completamente. O que se seguiu foi tão horrível que Benedita, ao testemunhar no julgamento meses depois, desmoronou chorando antes de conseguir descrever. Gabriela derramou parte da água fervente sobre as costas já destroçadas de Marcelina. Os gritos da menina naquele momento não eram mais humanos, eram sons de animal sendo abatido.
A pele se soltou em tiras, o cheiro de carne queimada se espalhou pelo porão. Marcelina perdeu a consciência, o corpo pendurado inerte pelas cordas. Ainda não acabou”, repetiu Gabriela, agora com os olhos brilhando de uma loucura evidente. Esperou Marcelina recobrar os sentidos, jogou mais água fria, depois mais água quente.
O ciclo de tortura se repetiu durante horas. Quando anoiteceu, Marcelina não conseguia mais gritar, apenas emitia gemidos fracos e descontínuos. Gabriela finalmente deixou a menina pendurada no porão e subiu para jantar. como se nada tivesse acontecido. Comeu tranquilamente, tomou o vinho, depois foi dormir. Marcelina passou a noite pendurada no escuro, delirando de dor e febre.
Benedita tentou descer para ajudá-la, mas Gabriela havia trancado a porta e levado a chave. Durante toda a noite, os gemidos fracos de Marcelina ecoavam pela casa. Joana chorou em silêncio, abraçada às outras escravas, todas impotentes diante da monstruosidade de sua senhora. Na manhã seguinte, 26 de abril, Gabriela desceu ao porão e encontrou Marcelina ainda viva, embora mal conseguisse manter os olhos abertos.
As feridas haviam infeccionado durante a noite, pous escorria, misturado ao sangue seco. Assim não demonstrou piedade. Ainda não aprendeu a lição? Perguntou. Marcelina não conseguiu responder, apenas moveu a cabeça levemente. O segundo dia de tortura foi pior que o primeiro. Gabriela trouxe sal grosso e esfregou nas feridas abertas.
Marcelina voltou a gritar, um som rouco e quebrado de quem não tinha mais forças. Negra atrevida! Murmurava Gabriela enquanto trabalhava metodicamente. Acha que pode usar o que é meu? Acha que pode ter luxos? Vou te ensinar teu lugar. Depois do sal veio o vinagre. Depois do vinagre veio ferro em brasa, encostado nas solas dos pés.
A cada novo tormento, Marcelina se afastava um pouco mais da vida, seu corpo desistindo pedaço por pedaço. Durante todo aquele dia, nenhum vizinho chamou as autoridades. Todos ouviram os gritos. Mas numa sociedade onde escravos eram propriedade absoluta de seus senhores, ninguém ousava interferir nos métodos disciplinares de outra família.
Foi apenas na tarde do dia 26 que algo mudou. Dr. Antônio Pereira, médico que morava três casas adiante, estava voltando de uma visita quando ouviu os gritos vindos do sobrado dos Almeida. Eram gritos diferentes dos castigos usuais, gritos de alguém morrendo devagar, movido mais por curiosidade médica que por compaixão bateu a porta.
Gabriela a atendeu com a aparência impecável de sempre. vestido limpo, cabelos arrumados. Dr. Pereira, que surpresa. Em que posso ajudá-lo? O médico hesitou, depois disse: “Desculpe incomodar, dona Gabriela, mas estou ouvindo gritos vindos de sua casa há dois dias. Alguém está doente?” Gabriela sorriu friamente.
É apenas uma escrava sendo corrigida por um furto. Questões domésticas, doutor. Nada que deva preocupá-lo. Um médico deveria ter ido embora naquele momento, como a etiqueta social exigia, mas algo no sorriso de Gabriela, na frieza de sua voz, o perturbou profundamente. “Mesmo assim”, insistiu ele. “Se alguém está ferido, posso oferecer assistência médica. É meu dever profissional.
Gabriela ficou tensa. Não é necessário, doutor. A situação está sob controle. Mas naquele exato momento, um gemido particularmente horrível ecoou das profundezas da casa. O Dr. Pereira reconheceu aquele som. Era o som da morte che dona Gabriela. Insisto em examinar essa pessoa. Se ela morrer sem cuidados médicos adequados, isso pode trazer problemas legais mesmo para a senhora. A ameaça velada funcionou.

Gabriela, percebendo que recusar poderia parecer ainda mais suspeito, finalmente concordou. Levou o médico até o porão. O que ele viu ao entrar naquele espaço escuro mudaria sua vida para sempre. Marcelina estava pendurada pelos pulsos, o corpo uma massa irreconhecível de feridas, queimaduras, inchaços e infecções.
Sangue seco cobria suas pernas. Suas costas não tinham mais pele intacta, os pés estavam pretos de queimaduras. O cheiro de carne podre era insuportável, mas o pior era que ela ainda estava viva. Seus olhos abertos, fixos em algum ponto distante, a respiração superficial e irregular. O Dr. Pereira ficou paralisado por segundos que pareceram eternos.
Ele tinha visto muitas coisas horríveis em sua carreira médica, mas aquilo ultrapassava tudo. “Meu Deus”, murmurou. Isso não é correção, isso é assassinato. Gabriela manteve sua compostura. Ela roubou de mim, doutor. Um sabonete francês caro. Precisa aprender que não pode. O médico a interrompeu. Sua voz tremendo de raiva contida.
Ela precisa de um hospital imediatamente. Se não for tratada, morrerá em horas. Gabriela hesitou. Se a escrava morresse ali, talvez pudesse esconder o corpo, inventar uma história de doença súbita. Mas com o médico já sabendo, as coisas se complicavam. “Faça o que achar necessário, doutor”, disse. Finalmente. O Dr.
Pereira ordenou que descessem Marcelina imediatamente. Quando cortaram as cordas, o corpo desmoronou no chão como um saco de farinha. Não tinha mais forças nem para se sustentar. O médico a examinou rapidamente e sua expressão escureceu ainda mais. Múltiplas fraturas nas costelas, provavelmente de chutes. Sinais de hemorragia interna, queimaduras de segundo e terceiro grau cobrindo 40% do corpo.
Infecção generalizada já em estágio avançado. Desidratação severa. “Essa menina vai morrer”, disse ele, olhando diretamente para Gabriela. “E quando morrer, eu vou testemunhar sobre o que vi aqui. Prepare-se para as consequências”. Marcelina foi levada às pressas. para a Santa Casa de Misericórdia, o hospital público mais próximo.
Os médicos que a receberam ficaram horrorizados. Nunca tinham visto tortura tão sistemática e prolongada. Tentaram tudo que a medicina de 1858 permitia. Limparam as feridas, aplicaram unuentos, ministraram lá no parador. Mas o corpo de Marcelina já estava desistindo. A infecção havia se espalhado pelo sangue. Os órgãos internos começavam a falhar um a um.
Benedita, que conseguiu permissão para ficar ao lado da filha, segurou sua mão durante toda a noite. “Perdoa sua mãe por não terte protegido”, sussurrava chorando. “Perdoa, minha filha, perdoa”. Marcelina não conseguia mais falar, mas apertou levemente a mão da mãe. Um último gesto de amor antes do fim.
28 de abril de 1858, às 6 horas da manhã, Marcelina Maria dos Santos morreu. Tinha 17 anos, 3 meses e 12 dias. A causa oficial da morte registrada foi infecção generalizada, decorrente de ferimentos por castigos físicos extremos. Mas, na verdade, Marcelina morreu porque ousou usar um pedaço de sabonete para lavar suas mãos cansadas.
morreu porque nasceu escrava em uma sociedade que não reconhecia sua humanidade. Morreu porque uma mulher branca da elite considerava que a vida de uma menina negra valia menos que um resto de sabão perfumado. O Dr. Antônio Pereira cumpriu sua promessa e imediatamente após a morte de Marcelina, procurou as autoridades policiais e apresentou denúncia formal contra a Gabriela de Almeida por homicídio doloso de escrava.
Foi o primeiro caso na história do Rio de Janeiro em que um médico denunciou uma senhora da elite por assassinato de propriedade escrava. O caso causou comoção na cidade. Os jornais, inicialmente relutantes, foram forçados a cobrir o julgamento quando grupos abolicionistas transformaram Marcelina em símbolo da crueldade extrema da escravidão.
O advogado abolicionista Luiz Gama, ainda jovem, mas já conhecido por sua retórica poderosa, ofereceu-se para representar a acusação gratuitamente. Esta menina não pode falar mais, disse ele em seu discurso de abertura do julgamento. Mas seu corpo massacrado grita por justiça mesmo da cova e nós seremos sua voz.
O julgamento durou três meses. Benedita testemunhou, descrevendo em detalhes horríveis tudo que sua filha sofrera. As outras escravas da casa confirmaram cada palavra. O Dr. Pereira apresentou o relatório médico meticuloso, documentando cada ferimento, cada queimadura, cada evidência de tortura sistemática. Gabriela de Almeida se defendeu alegando que estava apenas exercendo seu direito legal de disciplinar sua propriedade.
Escravos precisam ser controlados com mão firme”, argumentou seu advogado. “Ou a ordem social entra em colapso. Minha cliente apenas foi rigorosa demais. mas não tinha a intenção de matar. Foi quando Luís Gama apresentou sua peça mais devastadora, o testemunho de Joana, irmã mais nova de Marcelina, apenas 11 anos. A menina subiu ao estrado tremendo de medo.
Com voz quebrada contou tudo que vira. Os chicoteamentos, a água fervente, o sal nas feridas, os dois dias de agonia. Assim a ria enquanto fazia”, disse Joana, lágrimas escorrendo. Ela dizia que negra tinha que saber seu lugar. Minha irmã só queria ficar limpa, só isso. Só queria não federo. Depois de trabalhar o dia todo.
Isso era crime? O silêncio no tribunal foi absoluto. Alguns dos jurados, homens da elite acostumados a ver escravos como propriedade, pareceram genuinamente perturbados. A sentença, quando finalmente veio em agosto de 1858, surpreendeu a todos. Gabriela de Almeida foi considerada culpada de homicídio qualificado por crueldade extrema.
Foi condenada a 20 anos de prisão, uma sentença sem precedentes para uma mulher branca da elite que matara uma escrava. Mas a sentença nunca foi cumprida. Através de conexões políticas e muito dinheiro, o processo foi revertido em segunda instância, seis meses depois, os juízes do Tribunal Superior argumentaram que, embora lamentáveis os excessos, a senhora estava exercendo direitos legais sobre sua propriedade e não pode ser criminalizada por isso.
Gabriela foi libertada em março de 1859, menos de um ano após a morte de Marcelina. Francisco de Almeida, o marido, divorciou-se dela silenciosamente, não por indignação moral, mas porque o escândalo prejudicava seus negócios. Gabriela mudou-se para uma fazenda no interior de São Paulo, onde viveu até 1873, morrendo aos 47 anos de febre tifoide.
Nunca expressou arrependimento, nunca pediu perdão. Até o fim insistia que apenas fizera o que qualquer senhora faria com uma escrava ladrona. Benedita nunca se recuperou da perda da filha. Conseguiu comprar sua própria alforria em 1865, usando dinheiro que economizara durante décadas. Viveu até 1880, mas vizinhos contavam que ela passava horas sentada olhando para o nada, murmurando o nome da filha.
Foi enterrada com uma pequena caixa de madeira que guardava como tesouro. Dentro estava um pedaço de sabonete perfumado que comprara com suas primeiras economias como mulher livre. Para Marcelina, dizia o bilhete dentro da caixa, para que você possa se lavar limpa no céu. Joana, a irmã mais nova, foi vendida para outra família logo após o julgamento.
Perdeu-se nos registros históricos, como acontecia com tantos escravos. Seu destino final permanece desconhecido. O Dr. Antônio Pereira tornou-se ativista abolicionista após o caso Marcelina. Usava sua história em palestras. Escreveu artigos denunciando os horrórdores que testemunharam. “Vi o rosto real da escravidão”, dizia. “E rosto de monstros que se vestem de seda e vão à missa aos domingos.
” ajudou a fundar a sociedade brasileira contra a escravidão em 1860, que usava o caso de Marcelina como exemplo primário da necessidade urgente de abolição. A história de Marcelina circulou entre os movimentos abolicionistas durante as décadas seguintes. Seu nome aparecia em panfletos, em discursos, em artigos de jornal.
Lembrem-se de Marcelina, tornou-se um grito de guerra. Lembrem-se que ela morreu por querer estar limpa. [Música] Quando a lei Áurea foi finalmente assinada em 1888, 30 anos após a morte de Marcelina, Luiz Gama já havia morrido, mas seus discípulos carregaram um retrato dela durante as celebrações. Não era um retrato real, pois nunca tiraram foto de Marcelina.
Era uma imagem imaginada baseada nas descrições de sua mãe. Mostrava uma menina jovem de olhos tristes, segurando um pedaço de sabonete nas mãos. Embaixo estava escrito: “Marcelina Maria dos Santos, 1841858, morreu porque quis ser humana. A história de Marcelina nos força a confrontar a realidade mais brutal da escravidão brasileira, que vidas humanas eram consideradas menos valiosas que objetos, que o direito de propriedade se estendia até o direito de torturar e matar, e que mesmo as mulheres, que se supõem teriam mais compaixão, podiam ser
monstros cruéis quando investidas do poder absoluto sobre outras pessoas. Gabriela de Almeida não foi uma aberração, foi o produto lógico de um sistema que desumanizava completamente alguns seres humanos para elevar outros. Se seu caso chocou, foi apenas porque a crueldade foi documentada publicamente, não porque fosse excepcional.
Milhares de Marcelinas morreram em silêncio, sem médicos para testemunhar, sem julgamentos, sem que seus nomes fossem registrados em lugar nenhum. A única diferença é que desta vez alguém viu, alguém denunciou, alguém lutou por justiça, mesmo sabendo que essa justiça nunca seria plena. Hoje, quando usamos sabonetes sem pensar, poucos lembram que houve um tempo em que esse gesto simples custou a vida de uma menina.
A história de Marcelina não nos oferece redenção, nem final feliz. oferece apenas a verdade brutal sobre o que significa ser propriedade de outro ser humano, sobre como a crueldade se torna banal quando normalizada por lei e costume, e sobre como a dignidade humana mais básica pode ser negada até a morte.
Marcelina morreu querendo apenas estar limpa. Seu último desejo não foi por liberdade, não foi por vingança, não foi nem por justiça. Foi apenas pelo direito simples de lavar suas mãos cansadas com um pedaço de sabonete esquecido. E esse desejo custou-lhe 48 horas de agonia indescritível e uma morte aos 17 anos.
Se sua história nos ensina algo, é que nunca devemos esquecer o preço que milhões pagaram pela nossa história e que cada pequena dignidade que temos hoje foi negada a outros que vieram antes. Marcelina merecia mais que isso. Merecia viver, amar, ter filhos, envelhecer. Merecia o direito básico de cuidar de seu próprio corpo, mas nasceu no tempo e lugar errados e pagou com a vida por ousar sonhar que poderia cheirar a rosas.
M.