A Escrava Que Foi Escolhida Só Para Gerar Crianças Vendáveis: A “Matriz Humana” do Maranhão – 1856

Fazenda Santa Rita Maranhão. Junho de 1856. Nos registros da propriedade do coronel Inácio Pereira do Lago, havia uma anotação peculiar ao lado do nome de uma escrava chamada Josefa. Matriz, não destinar ao trabalho de campo, manter saudável para reprodução contínua.


Aos 22 anos, Josefa havia dado à luz seu quinto filho. Nenhum deles permaneceu com ela por mais de dois anos. Todos foram vendidos como se fossem bezerros de gado. O que os registros não diziam é que aquela mulher representava uma das práticas mais sombrias e sistematizadas da escravidão no Brasil.
A criação deliberada de seres humanos para o comércio, transformando mulheres em máquinas reprodutivas. Esta é a história real de Josefa do Maranhão, a mulher que foi reduzida à condição de matriz humana e que, mesmo nas profundezas da desumanização mais extrema, encontrou formas de resistir que apenas décadas depois seriam compreendidas. O Maranhão de meados do século XIX vivia seu apogeu econômico baseado na produção de algodão e arroz.
Com a proibição do tráfico internacional de escravos em 1850, através da lei Eusébio de Queiroz, os fazendeiros maranhenses se viram diante de um problema urgente, como repor a mão de obra escrava, que antes era constantemente renovada pela importação de africanos. A solução encontrada por muitos deles foi tão lucrativa quanto cruel.
A reprodução sistemática de escravos dentro das próprias fazendas. O comércio interno de escravizados se intensificou drasticamente. Crianças nascidas em fazendas do Nordeste eram vendidas para as plantações de café do Sudeste, onde a demanda era insaciável.
O preço de uma criança escrava saudável podia variar entre 400 e 800.000 réis, dependendo da idade e das características físicas. Um escravo adulto treinado valia entre um conto e dois contos de réis. Para os fazendeiros, a matemática era simples. Uma mulher que gerasse um filho por ano representava um investimento extremamente rentável.
Foi nesse contexto que surgiu a prática sistemática das matrizes reprodutivas. Certas mulheres escravizadas eram selecionadas especificamente por suas características físicas consideradas desejáveis. Saúde robusta, quadris largos que facilitassem o parto, histórico familiar de gestações bem-sucedidas. Essas mulheres eram então dispensadas dos trabalhos pesados do campo e mantidas em condições relativamente melhores que outros escravos, com uma única função, gerar filhos continuamente.
Josefa havia nascido na própria fazenda Santa Rita em 1834, filha de uma escrava chamada Tomásia e de um pai que ela nunca conheceu. e provavelmente um dos feitores ou o próprio senhor da época. Cresceu como qualquer outra criança escravizada, trabalhando na casa grande desde os 7 anos de idade, ajudando na cozinha e nos serviços domésticos mais leves.
Sua mãe, Tomásia, havia morrido de febre quando Josefa tinha apenas 12 anos, deixando-a sozinha no mundo. Aos 15 anos, em 1849, Josefa começou a chamar a atenção do coronel Inácio por razões que ela levaria anos para compreender completamente.
Não era apenas sua beleza, embora ela fosse considerada uma das negras mais bonitas da fazenda. O coronel observava características mais práticas, seus quadris bem formados, sua constituição física forte, seus dentes perfeitos que indicavam boa saúde geral. “Essa negra vai me dar lucro”, comentou ele certa vez com o administrador da fazenda, Joaquim Teixeira. Tem corpo de parideira. Vou separá-la para a reprodução.
Josefa não compreendeu imediatamente o que aquilo significava. foi transferida para uma pequena casa nos fundos da fazenda, afastada da cenzala principal. A casa tinha apenas dois cômodos, mas era infinitamente melhor que a senzala coletiva, onde dormira toda a vida. Tinha uma cama de verdade, não apenas um giral de madeira. recebia comida em maior quantidade e de melhor qualidade.
Não precisava mais acordar antes do amanhecer para trabalhar no campo. No início, Josefa achou que aquilo era um privilégio, talvez até uma forma de liberdade relativa. Mas a verdade revelou-se brutal poucos meses depois. O coronel Inácio começou a selecionar escravos específicos para visitar Josefa. Eram sempre os mais fortes, os mais saudáveis.
aqueles com características físicas que o Senhor considerava valiosas para transmitir à próxima geração. O primeiro foi Benedito, um escravo alto e musculoso de 30 anos que trabalhava na moenda de Cana. Ele foi instruído a ir à casa de Josefa três vezes por semana durante o período em que ela estava fértil.
Benedito entrava na casa com os olhos baixos, envergonhado, sabendo exatamente o que se esperava dele. Josefa, aos 16 anos, ainda não compreendia completamente o que estava acontecendo com sua vida. “Desculpa”, murmurou Benedito na primeira noite. Sua voz, um sussurro áspero de culpa. “Eu não tenho escolha. Se eu não fizer o que mandam, vão me açoitar.
” Josefa não respondeu, apenas fechou os olhos e esperou que terminasse. A primeira gravidez veio rapidamente. Em 1850, Josefa deu à luz um menino que o coronel Inácio chamou de Francisco. Durante os primeiros meses, ela foi autorizada a amamentar a criança, pois o leite materno era considerado essencial para a saúde do bebê.
Josefa se apegou à aquela criaturinha com uma intensidade que a surpreendeu. Pela primeira vez desde a morte de sua mãe, ela tinha alguém a quem amar. Francisco tinha os olhos grandes e curiosos e quando sorria, algo dentro de Josefa se aquecia. Mas aos 18 meses, quando o menino já conseguia andar e falar algumas palavras, o coronel o vendeu para um fazendeiro de São Luís.
Josefa estava grávida novamente quando arrancaram Francisco de seus braços. Ela gritou, implorou, tentou segurar o filho, mas dois escravos a contiveram enquanto o comprador levava o menino chorando para uma carroça. “Mamãe, mamãe!”, gritava Francisco, estendendo os bracinhos na direção dela. Foi a última vez que Josefa o viu.
Naquela noite, sozinha em sua casa, Josefa chorou até não ter mais lágrimas. Compreendeu então, com uma clareza devastadora, qual era a sua função naquele lugar. Não era uma escrava doméstica privilegiada, era uma matriz, uma fêmea reprodutora. Seu útero era o produto, não ela. Seus filhos eram a colheita, não parte de sua vida. O coronel Inácio mantinha registros meticulosos de suas matrizes.
Nos livros de contabilidade da fazenda Santa Rita, havia anotações detalhadas. Josefa, primeira cria, macho, vendido por R$ 600.000 réis, lucro líquido após custos de manutenção durante gestação e amamentação, R$ 450.000 ré. A matemática fria reduzia a maternidade de Josefa a uma linha contábil. A segunda gravidez foi ainda mais difícil emocionalmente.
Josefa tentou não se apegar ao bebê, uma menina que nasceu em 1852, mas era impossível não amar aquela criaturinha que dependia completamente dela. Deu-lhe o nome de Maria, embora soubesse que o coronel mudaria o nome quando a vendesse. Não chora tanto essa vez”, disse-lhe Benedito, que continuava sendo o homem designado para engravidá-la. “Isso só vai machucar mais você.
E como eu não vou chorar?” “Ni”, respondeu Josefa com uma amargura que começava a endurecer seu coração. “Me dizem para parir e depois tiram meus filhos de mim. Querem que eu seja o quê?” “Uma vaca?” Maria foi vendida aos dois anos como Francisco havia sido. Desta vez, Josefa não gritou, nem tentou impedir.
Apenas segurou a filha pela última vez. Beijou sua testa pequena e a entregou ao comprador com as mãos trêmulas, mas sem resistência. Seus olhos, porém, estavam vazios. Algo fundamental havia se quebrado dentro dela. O terceiro filho nasceu em 1854. Um menino que Josefa nem ousou nomear mentalmente, amamentou-o mecanicamente.
Cuidou dele com as mãos, mas não com o coração. Construiu muros emocionais tão altos que nem ela mesma conseguia mais sentir completamente. Quando o venderam, ela observou a carroça partir com uma indiferença assustadora que preocupou até mesmo o coronel.
“Essa negra está ficando estranha”, comentou ele com Joaquim Teixeira. não demonstra mais sentimento nenhum pelos filhos. Acha que isso é problema? Problema, senhor? Respondeu o administrador. Eu diria que é solução. Escrava que não se apega não dá trabalho na hora da venda. O quarto filho veio em 1855. Desta vez era uma menina que chorava muito durante a noite.
Josefa a alimentava, trocava suas roupas, ninava-a quando necessário, mas havia uma distância glacial em seus gestos. Era como se estivesse cuidando do filho de outra pessoa, não de seu próprio bebê. Foi durante essa quarta gestação que Josefa começou a desenvolver algo que levaria anos para ser compreendido, uma forma silenciosa e invisível de resistência. Ela percebia que estava completamente aprisionada em seu papel de matriz reprodutiva. Não podia fugir.
O coronel a vigiava de perto demais. Não podia se rebelar abertamente. Seria açoitada ou morta. Não podia sequer deixar de engravidar, pois Benedito e às vezes outros escravos selecionados eram forçados a ir até ela sob ameaça de punição severa.
Mas havia coisas que ela podia controlar, pequenas coisas que ninguém notava. Josefa começou a estudar as plantas do quintal ao redor de sua casa. conversava com as escravas mais velhas que trabalhavam na enfermaria da fazenda, mulheres que conheciam os segredos das ervas africanas e brasileiras. Aprendeu sobre plantas que fortaleciam o corpo durante a gravidez e também aprendeu sobre aquelas que podiam enfraquecê-lo discretamente.
Ela descobriu que certas ervas tomadas em pequenas quantidades durante a gestação não causavam aborto, o que seria imediatamente notado e punido, mas podiam afetar sutilmente o desenvolvimento do bebê. Crianças nascidas menores, mais fracas, menos valiosas no mercado. Era uma sabotagem invisível, uma forma de reduzir o lucro que o coronel obtinha de seu útero.
O quinto filho, que nasceu em junho de 1856, pesava significativamente menos que os anteriores. O médico que ocasionalmente visitava a fazenda atribuiu isso à constituição natural da criança, sem suspeitar que Josefa havia consumido discretamente pequenas quantidades de folhas de arruda durante os últimos meses de gravidez. “Esse vai render menos”, resmungou o coronel Inácio ao examinar o bebê franzino. “Mas ainda serve.


Vou esperar ele completar trs anos antes de vender para dar tempo de engordar um pouco. Josefa observava o coronel avaliar seu filho como quem avalia um leitão e não sentia mais nada. O vazio dentro dela era tão profundo que às vezes ela se assustava consigo mesma. Onde estava a mulher que havia chorado desesperadamente quando levaram Francisco? Onde estava a mãe que havia implorado por Maria? Ela não sabia se essa ausência de sentimentos era vitória ou derrota, mas sabia que era sobrevivência.
Naquele mesmo ano de 1856, algo começou a mudar na fazenda Santa Rita. Rumores sobre possíveis mudanças nas leis de escravidão chegavam de vez em quando através de escravos que vinham de outras propriedades, de comerciantes que passavam pela região, de conversas que o coronel tinha com visitas e que os escravos domésticos ouviam nas paredes.
Fala-se que o imperador Dom Pedro II era simpático à ideia de abolição gradual, que as pressões da Inglaterra contra a escravidão estavam aumentando, que deputados abolicionistas ganhavam força no parlamento. Para Josfa, essas notícias eram abstratas demais para significar esperança real. Sua vida tinha se reduzido a um ciclo mecânico.
Engravidar, parir, amamentar por alguns meses, ver a criança ser vendida, engravidar novamente. Em 7 anos havia gerado cinco filhos. Nenhum permaneceu com ela. O coronel Inácio planejava que ela continuasse gerando filhos até pelo menos os 40 anos, o que significaria mais 15 ou 20 gestações. Essa negra já me rendeu quase três contos de réis. Gabava-se ele para outros fazendeiros durante um jantar na casa grande.
E ainda tem muitos anos de produção pela frente. Melhor investimento que já fiz. Vale mais que 10 escravos de campo. Os outros coronéis presentes olhavam para Josefa com interesse comercial quando ela servia o jantar. E você escolhe os machos para cobrir ela? Perguntou um deles, o coronel Mendonça. Claro, respondeu Inácio. Só uso os mais fortes e saudáveis.
Não adianta cruzar com qualquer um. Tem que pensar na qualidade da cria para valorizar o produto. Eles falavam de Josefa como se ela fosse uma égua discutindo técnicas de reprodução enquanto ela circulava pela sala com a bandeja de doces. A sexta gravidez veio em 1857. Desta vez, Josefa tinha 23 anos e começava a sentir os efeitos físicos das gestações sucessivas.
Seu corpo estava exausto. As gravidezes tão próximas uma da outra não davam tempo para a recuperação completa. Ela tinha dores constantes nas costas, nas pernas, nos quadris, mas não podia reclamar. Matrizes que se mostravam fracas ou problemáticas eram devolvidas ao trabalho de campo, o que significava condições ainda piores.
Durante essa sexta gestação, Josefa aumentou sua sabotagem silenciosa. consumia mais ervas que afetavam o desenvolvimento do bebê, não o suficiente para causar aborto, o que seria sua sentença de morte, mas o bastante para garantir que a criança nascesse subnutrida e menos valiosa. O bebê, outra menina, nasceu tão pequena que o médico achou que não sobreviveria.
Essa matriz está com problemas”, disse o doutor ao coronel Inácio. “Talvez seja hora de dar um descanso para ela. Gestações muito seguidas podem esgotar o corpo da mulher”. O coronel considerou a sugestão. Josefa representava muito investimento para ser descartada precipitadamente.
Decidiu dar-lhe 6 meses de descanso antes de colocá-la para reproduzir novamente. Foram os seis meses mais próximos de paz que Josfa experimentara em anos, sem gravidez, sem homens sendo forçados a ir até sua casa, sem a antecipação angustiante de gerar mais um filho que seria arrancado dela. Ela usou esse tempo para fortalecer sua rede de conhecimento sobre plantas.
conversava com tia Benedita, uma escrava idosa que trabalhava como parteira e conhecia todos os segredos das ervas. “Você tá fazendo o que eu acho que você tá fazendo?”, perguntou Benedita certa tarde quando estavam sozinhas. Josefa não respondeu imediatamente. Olhou ao redor para ter certeza de que ninguém as ouvia.
Não sei do que você tá falando”, disse. Finalmente. Benedita segurou sua mão com força surpreendente para uma mulher tão velha. “Eu sei, menina, eu sei e eu não te culpo. Se eu tivesse seu conhecimento quando era mais nova, talvez tivesse feito o mesmo.” “Quantos filhos a senhora teve?”, perguntou Josefa. Nove”, respondeu Benedita, e seus olhos se encheram de uma dor antiga. “Nove filhos que me tiraram.
O primeiro nasceu quando eu tinha 15 anos, o último quando tinha 32. Não sei onde nenhum deles está hoje. Não sei nem se estão vivos”. As duas mulheres ficaram em silêncio por um longo momento, unidas por uma dor que as palavras não podiam expressar completamente. A gente faz o que pode para sobreviver. disse finalmente Benedita.
E se o que você pode fazer é tornar os filhos menos valiosos para eles não renderem tanto lucro ao Senhor, então você faz isso. É a sua forma de lutar. Josefa sentiu algo se mover dentro de seu peito vazio. Não era exatamente esperança, mas era reconhecimento. Alguém via a sua resistência invisível. Alguém compreendia. Em 1858, Josefa foi colocada novamente no ciclo reprodutivo. O sétimo filho nasceu em 1859, pequeno e franzino como o anterior.
O coronel Inácio começou a ficar genuinamente preocupado. “Essa matriz está perdendo qualidade”, comentou com Joaquim Teixeira. As últimas duas crias nasceram fracas. Talvez ela esteja ficando velha demais. Ela tem apenas 25 anos, senhor, respondeu o administrador. Ainda pode dar muitos filhos. Talvez precise de alimentação melhor, mais carne, mais leite.
O coronel concordou em melhorar a alimentação de Josefa, mas ela encontrava formas de continuar sua sabotagem. Comia a comida extra, mas continuava consumindo as ervas que conhecia. Era um jogo perigoso, um equilíbrio delicado entre manter-se saudável o suficiente para não ser descartada e garantir que seus filhos nascessem menos valiosos.
O oitavo filho veio em 1860, desta vez um menino que nasceu com problemas respiratórios e morreu após apenas três semanas de vida. Josefa olhou para o corpinho minúsculo, sendo enterrado numa cova rasa. atrás da cenzala e sentiu nada, nem alívio por saber que aquele filho não seria vendido, nem tristeza pela morte, apenas vazio. “Maldição!”, praguejou o coronel Inácio.
Perdi o investimento de 9 meses. Essa negra está me dando prejuízo. Ele considerou seriamente tirar Josefa da função de matriz e colocá-la no trabalho de campo, mas ela ainda era relativamente jovem e, em teoria tinha anos de reprodução pela frente. Decidiu dar mais uma chance. Foi durante esse período, em meados de 1860, que Josefa conheceu Tomás, um escravo novo que o coronel havia comprado de uma fazenda vizinha.


Tomás tinha cerca de 30 anos, era alfabetizado, uma raridade entre os escravizados, e trazia notícias do mundo exterior que chegavam através dos jornais que às vezes conseguia ler nas viagens que fazia acompanhando o Senhor. “As coisas estão mudando”, disse Tomás a Josefa durante uma das noites em que foi designado para engravidá-la.
Tem cada vez mais gente nas cidades grandes defendendo o fim da escravidão. Dizem que o império não vai durar muito tempo assim. Josefa, deitada na cama, após o encontro forçado, olhou para o teto de madeira. E o que isso muda para mim? Perguntou com uma voz sem emoção. Já tive oito filhos. Sete foram vendidos, um morreu.
Mesmo que a escravidão acabe amanhã, eles continuam espalhados por aí. Eu nunca vou ver nenhum deles de novo. Mas você pode ser livre, insistiu Tomás. Pode ter uma vida diferente. Livre para quê? A voz de Josefa era dura como pedra. Meu corpo já não é mais meu. Minha alma já foi quebrada em tantos pedaços que não sei nem se ainda existe.
O que é liberdade para alguém como eu? Tomás não tinha resposta, apenas segurou a mão dela no escuro. Um gesto pequeno de humanidade compartilhada no meio da desumanização sistemática que ambos sofriam. A nona gravidez veio em 1861. Desta vez, Josefa tinha 27 anos e seu corpo mostrava claramente os sinais de quase uma década sendo usado como máquina reprodutiva.
Estava mais magra, apesar da alimentação extra. Tinha marcas permanentes de estrias no ventre. Seus seios, que haviam amamentado oito bebês, nunca mais voltariam à forma original. O bebê, mais uma menina, nasceu prematuramente e tão fraca que o coronel Inácio finalmente perdeu a paciência. “Chega”, disse ele a Joaquim Teixeira. “essa matriz não serve mais.
Nove gestações e apenas seis filhos que prestaram para vender. Os últimos três foram prejuízo puro. Manda ela pro campo trabalhar com algodão. Para Josefa, a notícia trouxe uma mistura estranha de sentimentos. Por um lado, significava que não seria mais forçada a engravidar continuamente. Por outro, o trabalho no campo de algodão era brutal, especialmente para alguém cujo corpo estava exausto de gestações sucessivas.
Mas havia algo mais, uma sensação que ela não experimentava havia anos, uma pequena vitória. Sua resistência silenciosa havia funcionado. Ela havia conseguido tornar-se improdutiva o suficiente para ser tirada do programa de reprodução. Não era liberdade, mas era uma forma de controle sobre seu próprio corpo que lhe havia sido negada por quase uma década.
Nos anos seguintes, Josefa trabalhou nos campos de algodão da fazenda Santa Rita. Era um trabalho massacrante sob o sol escaldante do Maranhão, colhendo os capulhos brancos que rasgavam as mãos até sangrar. Mas, estranhamente havia uma dignidade naquele sofrimento que não existia em sua vida anterior como matriz. Ela estava sofrendo pelo seu trabalho, não pelo seu útero.
Estava sendo explorada como trabalhadora, não como fêmea reprodutora. Era uma distinção sutil, mas significativa para alguém que havia passado anos, reduzida exclusivamente à sua capacidade de gerar filhos. Em 1865, a guerra do Paraguai estava em pleno andamento e afetava até mesmo a rotina das fazendas remotas do Maranhão.
O coronel Inácio perdeu dois de seus filhos na guerra e a tragédia o deixou amargo e ainda mais cruel com os escravos. Josefa observava de longe o sofrimento do homem, que a havia transformado em matriz reprodutiva e não sentia pena. Sentia apenas uma satisfação fria ao ver que ele também podia perder filhos, embora de forma diferente da que ela havia perdido os seus.
A lei do ventre livre foi promulgada em 1871, declarando livres todos os filhos de escravas nascidos a partir daquela data. Para Josefa, agora com 37 anos, a notícia chegou tarde demais. Todos os seus filhos haviam nascido antes da lei. Todos eram propriedade legal de outras pessoas. A lei que deveria trazer esperança apenas destacava a tragédia de seu passado.
“Se essa lei tivesse sido feita 15 anos atrás”, comentou ela com Tomás, que ainda trabalhava na fazenda e com quem havia desenvolvido uma amizade discreta ao longo dos anos, meus filhos teriam nascido livres, mas nasceram para ser vendidos e agora estão espalhados por aí. E eu nem sei se estão vivos ou mortos.
Tomás, que também havia perdido filhos para o comércio interno de escravos, apenas balançou a cabeça. “A lei veio tarde para muita gente”, disse ele, “mas pelo menos veio.” Josefa passou os anos seguintes trabalhando no campo e observando as mudanças lentas que aconteciam ao seu redor. A pressão abolicionista crescia a cada ano. Escravos fugiam com mais frequência.
Alguns fazendeiros começavam a libertar seus cativos voluntariamente, antecipando o inevitável. O coronel Inácio Pereira do Lago morreu em 1885, 3 anos antes da abolição final. Seus herdeiros, sem o mesmo apego ao sistema escravista e pressionados pelas dívidas crescentes da fazenda, começaram a alforrirear escravos aos poucos.
Josefa recebeu sua carta de alforria em 1886, aos 52 anos de idade. Estava livre legalmente pela primeira vez em sua vida. Mas o que significava liberdade para uma mulher que havia passado 9 anos sendo usada como matriz reprodutiva e depois mais 25 anos trabalhando nos campos. Josefa não tinha família, não tinha dinheiro, não tinha para onde ir.
Continuou na fazenda Santa Rita, agora como trabalhadora assalariada, ganhando uma miséria que mal dava para sobreviver. Mas havia uma diferença fundamental. Ela podia sair, se quisesse. Quando a lei Áurea foi assinada em 13 de maio de 1888, Josefa tinha 54 anos.
assistiu às celebrações com uma mistura complexa de sentimentos. alegria por ver seu povo finalmente livre, amargura por tudo que havia perdido, cansaço de uma vida inteira de sofrimento. Em seus últimos anos, Josefa permaneceu na região de São Luís, trabalhando como lavadeira e ocasionalmente como parteira, usando os conhecimentos que havia adquirido de tia Benedita décadas antes. Ela nunca encontrou nenhum de seus filhos.
Não sabia se algum deles ainda estava vivo ou onde poderiam estar. Às vezes olhava para jovens adultos negros nas ruas de São Luís e se perguntava se algum poderia ser Francisco ou Maria ou algum dos outros, mas nunca teria como saber. Josefa morreu em 1896, aos 62 anos, de causas naturais que provavelmente estavam relacionadas às décadas de trabalho forçado e às nove gestações que seu corpo havia suportado.
Foi enterrada no cemitério dos pobres de São Luís numa cova sem nome. Não havia ninguém para chorar por ela, nenhum filho para lamentar sua morte, nenhuma família para manter sua memória viva. História de Josefa só sobreviveu porque um pesquisador do século XX encontrou os registros contábeis da fazenda Santa Rita nos arquivos históricos do Maranhão.
Entre as páginas amareladas e manchadas pelo tempo, havia anotações meticulosas sobre a matriz Josefa e os filhos que ela havia gerado para serem vendidos. Os números frios contavam uma história de eficiência comercial. Nove gestações, sete vendas bem-sucedidas, uma morte infantil, um nascimento prematuro, lucro total estimado, aproximadamente quatro contos de réis ao longo de uma década.
Mas por trás desses números estava uma mulher real que havia sido sistematicamente desumanizada, reduzida à sua capacidade reprodutiva, forçada a gerar filhos que lhe eram arrancados repetidamente. Uma mulher que havia desenvolvido formas sutis de resistência que só décadas depois seriam reconhecidas pelo que realmente eram.
sabotagem econômica silenciosa contra o sistema que a escravizava. A prática de matrizes reprodutivas não era exclusiva da fazenda Santa Rita ou do Maranhão. Depois da proibição do tráfico internacional em 1850, essa prática se tornou comum em várias regiões do Brasil. Mulheres escravizadas eram deliberadamente escolhidas e mantidas para reprodução contínua.
Seus filhos vendidos como mercadoria desde bebês. Era a industrialização da maternidade escrava, a transformação sistemática de mulheres em fábricas de seres humanos. Josefa representa milhares de mulheres cujas histórias foram perdidas ou nunca foram registradas. Mulheres que foram forçadas a gerar filhos para o lucro de seus senhores.
Mulheres que tiveram que desenvolver mecanismos psicológicos de distanciamento emocional para sobreviver ao trauma repetido de ter seus filhos arrancados de seus braços. Mulheres que encontraram formas invisíveis de resistir, mesmo quando parecia não haver resistência possível.
A história nos ensina que a escravidão não era apenas sobre trabalho forçado, era sobre a negação completa da humanidade, era sobre transformar pessoas em propriedade, corpos em mercadoria, maternidade em linha de produção. que nos ensina também que mesmo nas profundezas da desumanização mais extrema, as pessoas encontravam formas de resistir, de manter algum fragmento de controle sobre suas próprias vidas, de sabotagem silenciosa contra o sistema que as oprimia.
Josefa do Maranhão nunca teve a chance de criar nenhum de seus nove filhos. Nunca conheceu seus netos. Nunca experimentou a alegria simples de ver uma criança sua crescer e se desenvolver. Mas ela resistiu da única forma que podia, tornando seus filhos menos valiosos para o mercado, reduzindo o lucro que seu senhor obtinha de seu útero, exercendo uma forma invisível de controle sobre um corpo que o sistema insistia que não lhe pertencia.
Essa é a história que os números nos registros contábeis não contam. Essa é a humanidade que os documentos oficiais tentaram apagar. Essa é a resistência que só agora, mais de um século depois, começamos a reconhecer e honrar.

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