E se eu te dissesse que nos tempos da escravidão existia uma mulher negra que era mais procurada que os médicos da cidade, mais respeitada que muitos homens brancos e que carregava um segredo tão sombrio que mudou para sempre a história de uma das maiores fazendas de café do Brasil. Fique até o final, porque essa história vai te mostrar um lado da escravidão que ninguém te contou e vai revelar como o poder pode corromper até mesmo aqueles que deveriam proteger a vida.
Estamos em 1847, no auge do Império Brasileiro, quando o café era o ouro verde que sustentava toda a economia do país. No Vale do Paraíba, entre as províncias de São Paulo e Rio de Janeiro, erguiam-se dezenas de fazendas colossais, verdadeiros reinos comandados pelos barões do café.
E foi em uma dessas fazendas, a fazenda Santa Eulália, que nossa história se passa. A fazenda Santa Eulália era a propriedade do Barão Joaquim Ferreira da Costa, um dos homens mais ricos e influentes do império. Suas terras se estendiam por mais de 3000 alqueir com cafezais que pareciam não ter fim.
Uma casa grande imponente de dois andares com mais de 20 cômodos, capela particular, engenho próprio e a senzala que abrigava quase 400 escravizados. Era um império dentro do império. Mas mesmo em um lugar de tanto poder e riqueza, havia uma pessoa que todos respeitavam de forma especial. Seu nome era alegria, apenas alegria, porque escravos não tinham sobrenome.
Ela era uma mulher negra de aproximadamente 40 anos, embora ninguém soubesse sua idade exata, porque escravos não tinham registro de nascimento. alegria tinha sido comprada ainda menina em um leilão no Rio de Janeiro, trazida de Angola em um navio negreiro, e cresceu servindo na Casagre, o que tornava alegria especial não era apenas sua habilidade como parteira, mas as circunstâncias extraordinárias que a colocaram nessa posição.
Tudo começou quando a esposa do Barão, dona Mariana, entrou em trabalho de parto prematuro durante uma tempestade violenta que isolou completamente a fazenda. O médico da família estava na capital e não conseguiria chegar a tempo. A situação era desesperadora. Foi quando a alegria, que na época trabalhava na cozinha da Casagrande, se apresentou ao Barão, dizendo que sabia fazer partos.
Ela havia aprendido com sua mãe, que por sua vez aprendeu com a avó dela, uma tradição que vinha da África através de gerações. O Barão não tinha escolha. Era deixar a alegria tentar ou ver sua esposa e seu herdeiro morrerem. A alegria salvou a vida de dona Mariana e do bebê naquela noite. O parto foi difícil, complicado, mas suas mãos experientes conseguiram o impossível.
Quando o médico finalmente chegou dois dias depois, ficou impressionado com o trabalho que havia sido feito. A partir daquele momento, alegria não era mais apenas mais uma escrava. Ela se tornou a parteira oficial da fazenda Santa Eulália. O barão, grato e impressionado, deu à alegria privilégios raros para uma pessoa escravizada.
Ela ganhou um quarto próprio separado da cenzala, uma pequena casa de madeira pintada de branco, onde podia guardar seus instrumentos e suas ervas. Não precisava mais trabalhar na roça ou na cozinha. Sua única função era cuidar dos partos. e da saúde das mulheres da fazenda. E aqui está algo que vai te chocar.
Alegria não atendia apenas as escravas. Ela se tornou tão famosa que mulheres brancas das fazendas vizinhas começaram a procurá-la. Baronesas, filhas de fazendeiros, esposas de comerciantes, ricos todas queriam ter seus filhos com alegria. Diziam que ela tinha mãos abençoadas, que nunca havia perdido uma mãe ou uma criança, que seus chás e unguentos faziam milagres.
Em uma sociedade rígidamente dividida por cor e classe, alegria conseguiu algo quase impossível, o respeito de brancos e negros, de senhores e escravos. Ela transitava entre a casa grande e a cenzala, como ninguém mais podia. Conhecia os segredos mais íntimos das famílias mais poderosas da região.
Sabia quem estava, grávida antes mesmo dos maridos. Sabia de traições, de filhos bastardos, de doenças escondidas. Durante quase 15 anos, a alegria reinou como a parteira mais procurada de todo o Vale do Paraíba. Estima-se que ela tenha feito mais de 500 partos nesse período, 500 vidas que vieram ao mundo através de suas mãos.
Sua reputação era tão grande que o próprio imperador Dom Pedro I, quando visitou a região em 1859, fez questão de conhecê-la pessoalmente e elogiou publicamente seu em trabalho. Mas por trás dessa fachada de sucesso e respeito, algo muito sombrio estava acontecendo. E tudo começou a se desvendar de uma forma trágica e inesperada. Em março de 1862, naquele mês, a filha do barão, dona Isabel Ferreira, casada com um rico comerciante português, estava grávida de seu primeiro filho.
Naturalmente, ela quis ter o bebê com alegria. O parto aconteceu em uma noite quente de verão, na casa grande da fazenda Santa Eulalha, com toda a pompa que se esperava para o neto do barão. O bebê nasceu perfeitamente, um menino forte, rosado, que chorou alto ao nascer.
A alegria o entregou nos braços de dona Isabel, dizendo suas palavras habituais: “Um filho abençoado por Deus, senhora, forte como o pai, belo como a mãe, todos comemoraram. O barão mandou servir vinho do porto importado. A capela tocou seus sinos durante uma hora inteira, anunciando a boa nova. Mas no segundo dia de vida, o bebê começou a apresentar sintomas estranhos. Ficou muito quieto, parou de mamar. Seu corpinho ficou mole.
Dona Isabel, desesperada, chamou alegria imediatamente. A parte examinou a criança, fez massagens, preparou chás, aplicou cataplasmas, mas nada funcionou. No terceiro dia, o neto do Barão morreu. A tragédia abalou toda a fazenda. Dona Isabel entrou em depressão profunda.
O barão, devastado mandou buscar o melhor médico do Rio de Janeiro para tentar entender o que havia acontecido. Mas naquela época a medicina ainda era muito limitada. O médico examinou o corpo do bebê e concluiu que havia sido uma fraqueza congênita, algo no coração, talvez impossível de detectar, uma fatalidade da natureza. alegria chorou junto com a família.
Ela disse que em 15 anos de trabalho aquela era a primeira criança que perdia. Todos acreditaram nela. Afinal, sua reputação era impecável. O barão, mesmo na dor, não culpou alegria. Ele sabia que ela havia feito tudo que podia. Mas alguns meses depois, algo perturbador aconteceu. A esposa de um capataz da fazenda, uma mulher branca chamada Josefa, também teve seu bebê com alegria.
E exatamente como havia acontecido com o neto do Barão, a criança nasceu saudável, mas morreu três dias depois com os mesmos sintomas. Fraqueza, recusa em mamar, corpo mole. Desta vez, alegria explicou que era uma doença que estava se espalhando pela região, que ela havia ouvido falar de casos similares em outras fazendas.
Disse que era algo no ar, nas águas, talvez um castigo divino, como ela era a autoridade em questões de nascimento e saúde feminina. Todos acreditaram, mas as mortes não pararam. Nos meses seguintes, mais três bebês morreram da mesma forma. Todos haviam nascido com alegria. Todos pareciam saudáveis no nascimento. Todos morreram em poucos dias com sintomas idênticos.
Foi quando uma das escravas mais velhas da cenzala, uma mulher chamada Benedita, que havia sido companheira de alegria desde que ambas chegaram jovens à fazenda, começou a desconfiar. Benedita tinha perdido sua própria neta, uma das bebês que morreu após, parto feito por alegria. E ela conhecia a alegria melhor que ninguém.
Benedita começou a observar alegria em segredo. Ela percebeu que a parteira preparava dois tipos de misturas diferentes. Uma que ela usava abertamente, com ervas que todos conheciam, e outra que ela preparava sozinha, trancada em sua casinha, e que guardava em um pequeno frasco escuro. Uma noite, quando Alegria saiu para atender um parto em uma fazenda vizinha, Benedita invadiu sua casa. O que ela encontrou ali mudaria tudo.
Entre as ervas medicinais, os instrumentos de parto e as rezas escritas em papéis velhos, Benedita descobriu algo aterrorizante. Um caderno onde a alegria anotava todos os partos que fazia. O caderno estava escondido dentro de um baú de madeira, embaixo de lençóis limpos e mantas de bebê. Benedita não sabia ler muito bem.
tinha aprendido apenas algumas letras com o capelão da fazenda, mas conseguiu decifrar o suficiente para entender o horror que estava diante de seus olhos. Alegria mantinha registros detalhados de cada parto: nome da mãe, data, se era menino ou menina e algo mais. Ao lado de alguns nomes havia uma marcação especial, um pequeno X desenhado a carvão. Benedita contou os dixes.
Eram 23. 23 marcações em 15 anos de trabalho. Ela verificou as datas e seu sangue gelou. Todas aquelas marcações correspondiam exatamente aos bebês que haviam morrido nos dias seguintes ao nascimento. 23 crianças. Não eram cinco, como todos pensavam, eram 23. Mas o mais chocante ainda estava por vir.
Em uma página separada, quase no final do caderno, havia uma lista que fez Benedita cair de joelhos no chão de terra batida daquela casinha. Era uma lista de nomes com valores ao lado e os nomes eram de pessoas muito poderosas da região, fazendeiros, comerciantes, até um juiz. E os valores eram em ouro. Benedita percebeu algo que a fez vomitar de desespero.
A alegria estava sendo paga para matar bebês. Ela não era uma parteira abençoada, era uma assassina que usava sua posição de confiança para cometer crimes sob encomenda. E o pior de tudo, ela matava bebês nascidos de escravas e também bebês de mulheres brancas, dependendo de quem pagasse.
Mas por que alguém pagaria para matar um recém-nascido? A resposta estava na complexa e cruel realidade do Brasil escravista do século XIX. Vou te explicar porque isso vai fazer seu estômago embrulhar. Primeiro, os bebês escravos. Quando uma escrava engravidava, ela se tornava produtiva. Não podia trabalhar tanto nos últimos meses de gravidez. Precisava de tempo para amamentar depois do parto.
Ficava mais fraca. E quando o bebê nascia, era mais uma boca para alimentar durante anos, até que crescesse o suficiente para trabalhar. Alguns senhores de engenho e fazendeiros calculavam que era mais lucrativo eliminar esses bebês discretamente do que investir em criá-los.
Mas como fazer isso sem levantar suspeitas? Como manter a mão de obra escrava, reproduzindo quando necessário, mas controlar o crescimento populacional quando conveniente? A resposta: uma parteira de confiança que pudesse fazer o serviço sujo de forma que parecesse morte natural. Alegria recebia pagamentos em ouro, tecidos finos ou até promessas de alforria futura para eliminar discretamente bebês de escravas.
Quando os senhores decidiam que não era conveniente deixá-los viver, ela usava uma técnica que aprendeu não com sua mãe, mas através de experimentação ao longo dos anos. Durante o parto, ela aplicava pequenas doses de uma substância extraída de certas plantas venenosas no cordão umbilical ou diretamente na boca do recém-nascido.
A dose era calculada para não matar imediatamente, mas para danificar lentamente o sistema nervoso do bebê nos dias seguintes. Os sintomas eram sempre os mesmos: fraqueza progressiva, dificuldade para mamar, corpo mole e, finalmente, parada respiratória. E como bebês recém-nascidos são naturalmente frágeis e a mortalidade infantil era altíssima naquela época, ninguém suspeitava de assassinato. Mas a história fica ainda mais perturbadora.
Alegria não matava apenas bebês de escravas. Alguns dos nomes no seu caderno eram de mulheres brancas da alta sociedade. E aqui entra outra face cruel daquela época, os filhos indesejados da elite. Havia casos de mulheres brancas que engravidavam de amantes, de escravos ou que simplesmente não queriam mais filhos por diversos motivos.
Em uma sociedade católica e extremamente conservadora, aborto era impensável e escandaloso. Mas e se o bebê nascesse e simplesmente não sobrevivesse por causas naturais? Ninguém questionaria. Era a vontade de Deus. A alegria descobriu que podia lucrar também com isso. Mulheres ricas e desesperadas pagavam fortunas para que seus problemas desaparecessem de forma discreta.
E quem melhor? para fazer isso do que a parteira mais respeitada da região, aquela que todos acreditavam ter mãos abençoadas. O caso mais chocante que Benedita descobriu no caderno envolvia o próprio neto do barão, que havia morrido meses antes. Ao lado do nome do bebê, havia uma anotação que fez Benedita perceber a verdade mais amarga.
Dona Isabel, a filha do Barão, não estava preparada para ser mãe. Ela havia sofrido crises de nervos durante a gravidez, tinha pavor do parto, temia não ser uma boa mãe. E alguém, possivelmente o próprio marido dela, ou até mesmo a própria dona Isabel, em um momento de desespero, havia feito um acordo com alegria. O bebê não deveria sobreviver e alegria cumpriu o contrato.
O neto do Barão foi assassinado três dias após o nascimento pela mesma mulher que o trouxe ao mundo. Benedita ficou em choque por horas dentro daquela casinha, segurando o caderno nas mãos trêmulas. Ela sabia que estava segurando a prova de crimes terríveis, mas também sabia que estava em perigo mortal.
A alegria era poderosa, tinha conexões com pessoas influentes e Benedita era apenas uma escrava velha. cuja palavra não valia nada perante a lei. Mas Benedita era avó. Ela havia segurado sua netinha morta nos braços, havia embrulhado aquele corpinho ainda quente em panos brancos, havia cavado a terra com as próprias mãos para enterrá-la no pequeno cemitério dos escravos atrás da cenzala. E agora ela sabia a verdade.
Sua neta não havia morrido por vontade de Deus. Ela foi assassinada. Benedita tomou a decisão mais corajosa de sua vida. Ela não podia ir à polícia porque polícia não investigava mortes de escravos. Ela não podia ir ao Barão porque ele provavelmente estava envolvido em alguns desses crimes. Mas havia uma pessoa que talvez pudesse ajudar.
Padre Agostinho, o capelão da fazenda. Padre Agostinho era um homem diferente da maioria dos padres daquela época. Ele secretamente era contra a escravidão. Pregava nos ouvidos do Barão sobre libertação gradual dos escravos. Batizava e dava aulas para as crianças da cenzala. Benedita confiava nele. Na madrugada seguinte, antes que a alegria voltasse de seu trabalho na fazenda vizinha, Benedita procurou o padre em sua casa, ao lado da capela.
Ela entregou o caderno nas mãos dele e contou tudo que havia descoberto. O padre leu página por página e seu rosto foi ficando cada vez mais pálido. Padre Agostinho entendeu imediatamente a dimensão do que estava diante dele. Não eram apenas 23 assassinatos, era uma rede de corrupção e morte que envolvia as famílias mais poderosas da região.
Se ele denunciasse isso publicamente, poderia causar um escândalo que destruiria reputações, desmantelaria fortunas e, possivelmente, desencadearia uma revolta dos escravos. Mas ele também sabia que não podia simplesmente ignorar. 23 crianças haviam sido assassinadas. 23 famílias, a maioria delas escravas, que não tinham voz nem poder, haviam sido enganadas e destruídas. Como homem de Deus, ele não podia permitir que isso continuasse.
O padre tomou uma decisão estratégica. Ele não iria à polícia local porque sabia que muitos policiais e autoridades provavelmente estavam envolvidos ou eram úmplices silenciosos. Em vez disso, ele escreveu uma carta detalhada para o bispo do Rio de Janeiro, um homem de grande influência que tinha acesso direto ao imperador.
Na carta, padre Agostinho descreveu tudo que Benedita havia descoberto. Ele anexou cópias de páginas do caderno de alegria. Ele listou nomes, datas e até mencionou os pagamentos que ela recebia. e fez um apelo dramático. Aquilo não era apenas uma questão criminal, era uma questão moral que tocava a alma da nação. Enquanto esperava a resposta do bispo, o padre escondeu Benedita em um quartinho nos fundos da capela, com medo de que Alegria ou seus contratantes descobrissem que ela havia roubado o caderno. Durante três semanas, Benedita viveu escondida, rezando e esperando. A
resposta do bispo chegou em abril de 1862 e foi mais rápida e contundente do que o padre Agostinho esperava. O bispo levou o caso diretamente ao imperador Dom Pedro I, que ficou horrorizado. O imperador, que sempre se orgulhou de ser um governante ilustrado e justo, viu naquele caso não apenas crimes individuais, mas um símbolo da podridão moral que a escravidão trazia para o Brasil.
Dom Pedro II ordenou pessoalmente que um juiz de sua confiança fosse enviado à região para investigar o caso em segredo absoluto. O juiz escolhido foi o desembargador Antônio Carlos de Andrade, conhecido por sua integridade e por não ter conexões familiares ou econômicas com os barões do café do Vale do Paraíba. O desembargador chegou à fazenda Santa Eulália em uma tarde de maio, acompanhado de dois oficiais de justiça e um escrivão. Ele não avisou ninguém de sua chegada.
Foi direto à casa do Barão e apresentou uma ordem imperial selada com o brasão do império. O barão empalideceu ao ler o documento. Naquela mesma tarde, a alegria foi presa dentro de sua própria casinha branca. Ela não resistiu, não tentou fugir. Quando os oficiais entraram, ela estava sentada em uma cadeira de balanço, como se estivesse esperando por eles.
Suas primeiras palavras foram: “Eu sabia que esse dia chegaria. Toda dívida uma hora se paga”. O julgamento de alegria foi um dos eventos mais extraordinários do Brasil imperial. Não porque foi público. Pelo contrário, o imperador ordenou que fosse realizado em sigilo para proteger as famílias envolvidas.
Mas porque pela primeira vez na história do Brasil, uma escrava estava sendo julgada por crimes que envolviam diretamente membros da elite branca. Durante o processo, que durou 3 meses, dezenas de testemunhas foram ouvidas. Benedita contou sua história. O padre Agostinho apresentou o caderno como evidência.
Peritos médicos examinaram os corpos de algumas das crianças que haviam sido enterradas recentemente e encontraram traços de substâncias tóxicas em seus pequenos organismos. Mas o momento mais chocante do julgamento foi quando Alegria finalmente decidiu falar. E o que ela revelou deixou todos na sala sem palavras.
A alegria confessou tudo, cada morte, cada pagamento, cada detalhe. Mas ela fez algo inesperado. Ela transformou sua confissão em uma acusação devastadora contra toda a sociedade escravista. Suas palavras foram registradas pelo escrivão e hoje estão preservadas nos arquivos do Museu Imperial de Petrópolis.
Ela disse: “Sim, matei 23 crianças, mas não fui eu quem criou esse inferno. Foram os senhores que me compraram, que me escravizaram, que me ensinaram que algumas vidas valem mais que outras. Foram eles que vieram até mim com o ouro nas mãos, pedindo para que eu fizesse o serviço sujo que eles não tinham coragem de fazer. Eu era apenas o instrumento.
As mãos que executavam eram minhas, mas as ordens vinham de vocês. Ela continuou: “Querem saber por fiz isso? Porque aprendi que neste mundo sobreviver é mais importante que viver com honra, porque descobri que o único poder que uma escrava pode ter é o poder sobre a vida e a morte. Porque percebi que os senhores brancos, com toda sua fé e sua moral, são capazes de pagar para matar seus próprios filhos quando isso é conveniente.
Eu apenas aproveitei a hipocrisia de vocês e então a alegria disse algo que ficou registrado na história. Vocês me chamaram de parteira. Eu não sou parteira. Parteira traz vida ao mundo. Eu sou o que vocês me fizeram ser, uma coveira de inocentes. E cada um de vocês que me pagou, que me procurou, que fechou os olhos para o que eu fazia, tem sangue nas mãos tanto quanto eu.
O silêncio na sala foi absoluto porque todos sabiam que ela estava certa. O desembargador Antônio Carlos teve que enfrentar uma verdade terrível. Punir apenas alegria seria perpetuar a mesma injustiça. Os verdadeiros culpados eram também aqueles que a contrataram, que se beneficiaram de seus crimes, que mantiveram o sistema que tornou tudo isso possível.
Mas processar membros da elite significaria abalar as fundações do poder imperial. significaria admitir publicamente que a aristocracia brasileira estava envolvida em assassinatos de bebês. Significaria um escândalo que poderia desestabilizar toda a estrutura social. O imperador tomou uma decisão salomônica, mas profundamente injusta.
A alegria foi condenada à morte por enforcamento, sentença que seria executada publicamente como exemplo. Mas os nomes dos contratantes foram selados em documentos secretos que só poderiam ser abertos 100 anos depois. As famílias envolvidas foram discretamente investigadas.
Algumas tiveram que pagar enormes somas à igreja como penitência, mas nenhuma foi publicamente exposta ou emessada. A alegria foi executada em agosto de 1862, na praça principal da cidade mais próxima à fazenda Santa Eulália. Milhares de pessoas compareceram. Escravos foram obrigados pelos seus senhores a assistir para que servisse de lição. A elite branca também estava lá.
escondendo seus rostos culpados atrás de leques e chapéus. Antes de morrer, alegria foi perguntada se tinha últimas palavras. Ela olhou para a multidão e disse: “Que Deus perdoe não a mim, mas a todos vocês que criaram o mundo, que me transformou nisso. Eu morro hoje, mas o pecado de vocês vai viver por gerações.” A história de alegria foi deliberadamente apagada dos registros oficiais durante décadas.
As famílias envolvidas tinham poder suficiente para garantir que o caso fosse esquecido, mas a história sobreviveu nas memórias dos escravos, passada de geração em geração como um conto de advertência. Benedita, a escrava que descobriu a verdade, foi libertada pelo imperador como recompensa por sua coragem.
Ela viveu mais 20 anos, sempre contando a história de alegria para quem quisesse ouvir. Quando morreu em 1882, estava rodeada de netos e bisnetos livres. Algo que ela nunca imaginou que veria. O padre Agostinho continuou seu trabalho na fazenda, mas nunca mais foi o mesmo. Ele passou o resto de sua vida pregando contra a escravidão com ainda mais fervor, usando a história de alegria como exemplo do que acontece quando uma sociedade perde sua humanidade. Morreu em 1870, pouco antes da lei do ventre, livre.
A fazenda Santa Eulália entrou em declínio após o escândalo, mesmo que ele nunca tenha sido totalmente público. O Barão Joaquim perdeu muito de sua influência política. Sua filha, dona Isabel, enlouqueceu completamente ao descobrir a verdade sobre a morte de seu filho e passou os últimos anos de vida em um convento.
A fazenda foi vendida em 1875 e hoje é um museu. Os documentos secretos que conham os nomes dos contratantes de alegria foram finalmente abertos em 1962, exatamente 100 anos depois dos crimes. Historiadores descobriram que a rede de corrupção e morte era ainda maior do que se imaginava. Não eram apenas fazendeiros locais.
Havia nomes de políticos importantes, de comerciantes da capital até de um membro distante da família imperial. Mas talvez a descoberta mais perturbadora foi que a alegria não era a única. Os documentos revelaram que havia outras parteiras em diferentes regiões do Brasil fazendo o mesmo trabalho sombrio.
Era um sistema organizado, quase uma indústria da morte que funcionava nas sombras da sociedade escravista. Hoje, a história de alegria é estudada por historiadores como um exemplo extremo da desumanização causada pela escravidão. Ela não era simplesmente uma assassina, ela era um produto de um sistema que transformava seres humanos em mercadorias, que destruía qualquer senso de moralidade, que colocava lucro acima de vida.
A pequena casinha branca, onde alegria vivia na fazenda Santa Eulalia ainda existe. Preservada como parte do museu. Visitantes relatam sensação estranha ao entrar ali, como se as paredes ainda guardassem os segredos e os gritos silenciosos de 23 bebês que nunca tiveram a chance de crescer.
No cemitério dos escravos, atrás do que era a antiga cenzala, há 23 pequenas cruzes de madeira que foram colocadas décadas depois por descendentes das vítimas. Não há nomes nelas, porque muitos desses bebês morreram sem sequer serem batizados ou registrados, mas elas estão lá. Um memorial silencioso de uma das histórias mais sombrias do Brasil imperial. A história de alegria nos ensina algo fundamental. O mal raramente surge do nada.
Ele é cultivado por sistemas injustos, alimentado por ganância e poder e executado por pessoas que foram desumanizadas a ponto de perder qualquer senso do certo e do errado. Alegria não nasceu uma assassina. Ela foi criada por uma sociedade que valorizava mais o lucro do que a vida humana. E talvez a lição mais importante seja esta.
Quando uma sociedade permite que algumas vidas sejam consideradas menos valiosas que outras, quando cria hierarquias baseadas em cor, classe ou origem, ela planta as sementes para atrocidades como essas. Os 23 bebês mortos pelas mãos de alegria são um lembrete permanente do que acontece quando perdemos nossa humanidade coletiva.