
A Fazenda São Jerônimo, no município de Sabará, província de Minas Gerais, era um mundo de dois andares: a Casa Grande, resplandecente em mármore e orgulho, e a Senzala, onde o sofrimento era lei. Mas em 1863, a linha divisória entre esses mundos foi profanada por um ato de desprezo que gerou a mais inesperada das alianças.
Constança Sampaio carregava nos dezenove anos a marca de um destino cruel: o estrabismo severo a fazia enxergar a realidade de uma maneira que a sociedade considerava uma anomalia. Três vezes seu pai, o Coronel Teodoro Sampaio, tentara arranjar um casamento vantajoso, e três vezes ela fora rejeitada. O último, um comerciante português, declarou publicamente que não queria “filhos tortos”, e que Deus já havia castigado aquela família uma vez. A humilhação, ferindo o orgulho e as dívidas do Coronel, foi o estopim. Ele decretou que sua filha, por não servir como esposa, serviria como um castigo exemplar.
O alvo do castigo foi Benedito, um escravo de aproximadamente vinte e cinco anos, responsável pela escrituração da fazenda. Ele era alfabetizado, calígrafo elegante, e guardava em sua memória os segredos financeiros do Coronel. Sua obediência era tão perfeita que beirava o inquietante. Para Benedito, a liberdade não era um presente, mas um direito usurpado, e ele carregava a promessa sagrada de sua mãe de que “um dia você vai cobrar o que nos devem”.
Em setembro de 1863, o Coronel Teodoro reuniu escravos e agregados para anunciar a sentença: Constança e Benedito seriam unidos em “servidão mútua” e forçados a viver no chiqueiro reformado da fazenda, a duzentos metros da Casa Grande. A recusa do padre da vila em abençoar aquela “abominação” apenas reforçou a crueldade do Coronel.
No terreiro da fazenda, sob o sol implacável, Constança e Benedito se entreolharam pela primeira vez durante o anúncio. Ela, com seus olhos que pareciam olhar para dois lados ao mesmo tempo, e ele, com seu olhar direto e impassível. Não houve amor, nem compaixão; houve o reconhecimento mútuo de duas pessoas humilhadas além do perdão. Dona Emerenciana, vizinha e testemunha forçada, anotou em seu diário: “Vi lágrimas nos olhos da menina vesga, mas não eram lágrimas de tristeza. Eram lágrimas de algo que não sei nomear. Talvez alívio.”
O chiqueiro de pedra e madeira, com sua cama de palha e lamparina, tornou-se o berço de uma revolta silenciosa. O Coronel pensou ter-lhes imposto a mais abjeta das humilhações; na verdade, ele lhes dera um santuário. No silêncio das longas noites de 1863, não houve lamento, mas sim a criação de uma aliança forjada na sede de justiça.
Constança ensinava Benedito a ler documentos legais, escrituras e testamentos em latim. Ele, por sua vez, ensinava-lhe os segredos financeiros da fazenda: quem devia dinheiro ao Coronel, quem se beneficiava da corrupção local. Juntos, eles mapearam a rede de dependências e chantagens que sustentava o poder local, identificando cada elo da corrente que os prendia.
Desenvolveram uma linguagem secreta, um código complexo de olhares, gestos e referências bíblicas que lhes permitia planejar em detalhes mesmo na presença de terceiros. Constança, que era tratada como invisível, havia passado a vida colecionando segredos. Agora, Benedito lhe dava as ferramentas para transformar esses segredos em armas.
Constança, graças aos ensinamentos da parteira-curandeira, Tia Benedita, conhecia as plantas. “Toda planta que cura também pode matar”, ela lhe havia ensinado. Benedito, trabalhando ocasionalmente no curtume, sabia onde obter substâncias letais: mercúrio dos garimpeiros, arsênico dos curtumes, ópio dos boticários. Eles estudavam a rotina de cada alvo e atualizavam duas listas: uma de Culpados, outra de Métodos.
A lista de Culpados não incluía apenas aqueles que os humilharam diretamente, mas todos os que assistiram em silêncio ou se beneficiaram do sofrimento alheio. O feitor, Joaquim Pereira, brutal e sádico, estava no topo. A vizinha fofoqueira, Dona Francisca, que organizara uma petição para isolar Constança em um convento, vinha em seguida. O comerciante Antônio Figueira, cuja recusa humilhante havia iniciado o castigo, era o terceiro. A lista incluía juízes, padres, e fazendeiros: uma complexa rede de cumplicidade que precisava ser desmantelada.
Em dezembro de 1863, a justiça do chiqueiro começou a ser aplicada.
O Feitor: Joaquim Pereira foi encontrado morto na beira do açude. Afogamento acidental, registrou o laudo. Mas ele apenas se afogou depois de ingerir doces de rapadura misturados com ópio, enviados por Constança como um “presente de reconciliação”. A carta que acompanhava o agrado dizia que ela pedia perdão pelas “palavras duras”. O feitor, vaidoso, engoliu a isca e o veneno.
A Vizinha: Em janeiro de 1864, Dona Francisca Moreira, que chamava Constança de “aberração de Deus”, morreu durante o sono. Parada cardíaca, decretou o médico. Mas sua morte foi causada por envenenamento por dedaleira (digitalis), que imita problemas cardíacos. Um bilhete deixado ao lado de sua cama, em caligrafia elegante, dizia: “Deus ouviu suas palavras.”
O Comerciante: Em março, Antônio Figueira, que não queria “filhos tortos”, foi encontrado morto em sua loja, envenenamento por ervas. Ele morrera após beber cachaça adulterada com extrato de mamona, um veneno que causa morte lenta e agonizante. Constança queria que ele sofresse em proporção à humilhação que causara. O entregador da cachaça, um menino de rua, foi ajudado por Benedito a fugir para longe. Testemunhas disseram que o menino tinha “olhos estranhos, como se olhasse para dois lados ao mesmo tempo”.
A cada morte, o silêncio na fazenda se aprofundava. Os escravos pararam de cantar. O próprio Coronel começou a trancar a porta do quarto. A fazenda São Jerônimo tornava-se um lugar amaldiçoado.
O plano de Constança e Benedito se expandiu para o colapso econômico. Benedito, responsável pela escrituração, sabotava deliberadamente a administração, atrasando pagamentos e criando um labirinto de documentos falsos para encobrir suas ações. A fazenda mergulhou em dívidas e abandono.
As caminhadas noturnas de Constança também continuavam. Ela mapeava a rotina de todos, e descobriu um esconderijo secreto sob o assoalho da capela: uma caixa de ferro com correspondências que revelavam a extensão da corrupção local.
Em 1864, as mortes se espalharam: o Padre Veloso morreu por envenenamento por mercúrio através do vinho da comunhão, e o juiz municipal por overdose de digitálicos através de rapé adulterado. Os registros de batismo e os processos judiciais haviam desaparecido, apagando a memória oficial da região.
Em janeiro de 1865, restavam apenas sete pessoas na fazenda. O Coronel, paranóico, mas sem provas, convocou Constança e Benedito ao seu escritório. Ele lhes disse: “Vocês venceram, mas não vão viver para contar.” Ele tinha duas pistolas e veneno sobre a mesa.
Mas a armadilha era de Benedito. Ele plantara cartas falsas para que o Coronel as encontrasse, forçando-o a agir precipitadamente. Quando o Coronel tentou pegar as pistolas, suas mãos não obedeceram. Constança e Benedito haviam queimado folhas de extramônio (jimsonweed) na lareira, que causa alucinações e paralisia. Três dias depois, o Coronel Teodoro Sampaio foi encontrado morto em sua cama, envenenado por mercúrio, com uma carta de confissão de suicídio forjada pela elegante caligrafia de Benedito.
Constança e Benedito desapareceram na mesma noite. O chiqueiro foi encontrado vazio, e sobre a mesa, apenas um mapa de Minas Gerais com vários pontos marcados em tinta vermelha.
A versão oficial diz que Constança morreu de febre e Benedito foi vendido. Mas a lenda persistiu. Em 1867, um casal, uma mulher vesga e um homem negro, foi visto em Ouro Preto. Em 1869, em Diamantina. Em 1871, em Montes Claros. Onde quer que fossem, fazendeiros poderosos morriam em circunstâncias misteriosas e documentos comprometedores desapareciam.
Eles se tornaram os Professores da Liberdade, viajando por Minas Gerais, ensinando escravos a ler documentos legais, a identificar venenos naturais e a praticar a resistência silenciosa e letal. Não pregavam a revolução violenta, mas a justiça sistêmica e secreta.
Em 1888, ano da Abolição da Escravatura, foram vistos pela última vez na estação ferroviária de Belo Horizonte, embarcando no trem para Santos. O funcionário anotou em seu livro de registros: “Casal estranho. Ela com olhos que olham para lados diferentes. Ele com cicatrizes de chicote nas costas.” Ao ser perguntada sobre seus nomes, a mulher respondeu:
— Somos ninguém. Sempre fomos ninguém.
Eles desapareceram na névoa do tempo, levando consigo os segredos de 25 anos de vingança sistemática. Sua história não é de heróis nem de vilões, mas de como o desprezo pode transformar vítimas em uma força da natureza implacável. Constança e Benedito usaram a humilhação extrema para encontrar um no outro, não apenas a aceitação, mas a cumplicidade e o poder de cobrar a dívida que a sociedade lhes devia. A sua justiça não veio pela lei, mas pela dor transformada em método.