CORONEL Horácio Teve o Crânio Esmagado Após Vender Filho de ESCRAVA “GIGANTE” – 1813

No dia 14 de agosto de 1813, o coronel Horácio de Medeiros, um rico senhor de engenho nas férteis terras do recôncavo baiano, foi encontrado morto em seu gabinete de estudos. Seu crânio estava tão esmagado que os boticários que examinaram o corpo afirmaram haver fragmentos de osso encrustados na escrivaninha de jacarandá, a quase 2 metros de distância. O auto de corpo de delito, ainda hoje guardado nos arquivos da Câmara Municipal de Salvador, atestava que os ferimentos eram consistentes com a compressão exercida por mãos muito maiores e mais fortes do que as de um homem comum. A única pessoa capaz de tal feito era uma mulher de mais de 2 metros de altura, pesando mais de 100 kg de pura musculatura, que desaparecera na noite de agosto sem deixar rasto.

Velhos cronistas e historiadores têm debatido por quase dois séculos se Severina realmente existiu ou se não passava de uma história forjada pelo medo e pela culpa. Mas os registros médicos, os documentos de compra e venda de escravos e os testemunhos oculares apontam para algo muito mais sombrio. Ela era real e o que aconteceu naquele gabinete foi o desfecho de um horror que se gestava há anos.

Antes de prosseguirmos com a história de Severina e da noite que mergulhou a sociedade baiana num silêncio que perdurou por gerações, o jornalista lança uma questão ao público. Se você aprecia os mistérios históricos do nosso Brasil colonial, que tornam tênue a linha entre o que é fato e o que é lenda aterrorizante, o convite é para seguir esta narrativa e deixar seu comentário, dizendo de que província ou cidade você está acompanhando. O jornalista lê todos os relatos e sente-se grato por estas histórias perdidas do nosso passado chegarem a pessoas por todo o país. Voltemos ao início deste pesadelo.

O dinheiro e não a violência é o que dá início à saga de Severina. Na primavera de 1809, o porto de Salvador vivia uma de suas mais movimentadas temporadas de comércio em décadas. Semanalmente, navios vindos da costa da África, de Minas Gerais e de Pernambuco, aportavam, trazendo consigo almas para serem vendidas nos mercados da rua Direita e do Cais do Comércio. Salvador era mais do que uma cidade portuária. Era o principal entreposto do tráfico de cativos no Nordeste do Brasil. Fortunas eram feitas com a compra e venda de gente tão facilmente quanto se negociava sacos de açúcar ou fardos de fumo.

Os engenhos de cana-de-açúcar próximos a Salvador eram lugares de trabalho particularmente cruéis. A cultura da cana, embora diferente do arroz, exigia dos trabalhadores que ficassem horas a fio nos campos, sob o sol causticante, em meio a pragas, cobras venenosas e jacarés. O número de escravizados que morriam nos canaviais era chocante. Algumas estimativas da época sugerem que quase 30% dos cativos que trabalhavam nos canaviais morriam em seu primeiro ano. O trabalho era tão perigoso, exaustivo e mortal que os senhores de engenho precisavam constantemente adquirir novos trabalhadores para substituir os que pereciam. Isso impulsionava a economia do tráfico. Os negreiros vasculhavam as províncias do Sul em busca de trabalhadores fortes e sadios que pudessem suportar as duras condições dos canaviais. Às vezes encontravam algo inusitado que valia uma fortuna.

O capitão Mor José Pereira, um traficante de gente, chegou a Salvador em março de 1809 com uma comitiva de 37 pessoas que ele havia comprado em Minas Gerais e no sertão baiano. Havia uma jovem mulher, talvez com 19 ou 20 anos, que se destacava imediatamente por sua estatura colossal. Registros da casa de leilões afirmam que ela tinha mais de 2 metros de altura e um porte físico de constituição muito larga e musculosa. Testemunhas disseram que ela precisava se curvar para passar pelas portas e que suas mãos eram tão grandes que podiam envolver completamente a cabeça de um homem. Os papéis do leilão indicavam seu nome, Severina.

Era comum que os primeiros documentos de venda não tivessem sobrenome. Ela nascera em uma pequena roça no interior de Minas Gerais, filha de uma mulher escravizada, cujo nome se perdeu na história. Parece que Severina possuía uma condição que a medicina moderna chamaria de gigantismo pituitário, um distúrbio raro causado pelo excesso de hormônio do crescimento, geralmente provocado por um tumor benigno na glândula pituitária. Mas nos anos 1810, a medicina desconhecia tais termos. As pessoas que viam Severina a consideravam uma aberração da natureza, uma curiosidade e talvez até uma muito valiosa.

Era uma manhã quente de terça-feira, no final de março, quando o leilão ocorreu. Havia muitos senhores de engenho, comerciantes e curiosos na casa de leilões da rua do Ouro, todos ansiosos para ver a mulher gigante. Quando Severina foi levada à plataforma, com os pulsos e tornozelos ainda acorrentados, a multidão começou a murmurar. Ela era quase uma cabeça inteira mais alta que o leiloeiro, um homem corpulento chamado Sebastião Leme. Leme havia conduzido milhares de vendas, mas mais tarde confidenciou a amigos que nunca vira nada igual. O lance inicial, já um valor considerável, subiu rapidamente. Senhores de engenho gritavam suas ofertas, cada um tentando superar o outro. Viam Severina não apenas como uma trabalhadora, mas como um espetáculo, alguém que poderia atrair visitantes e ser exibida. Um homem parado nos fundos da sala fez o lance vencedor.

Era o coronel Horácio de Medeiros, que pagou por Severina a soma de 13.000 réis. Naquele ano foi um dos preços mais caros já pagos por um único escravizado em um leilão em Salvador. Coronel Horácio era um senhor de engenho proprietário da fazenda Boca da Mata, uma propriedade de tamanho médio, cerca de 18 léguas a sudoeste de Salvador, no coração do Recôncavo, uma região repleta de mangues e rios sinuosos. Ele tinha 42 anos. Era viúvo e outros senhores o conheciam como um patrão rigoroso que não tolerava o que chamava de moleza na gestão de seus cativos. Testemunhas disseram que Severina não emitiu um som enquanto era afastada do bloco de leilões. Seus pulsos estavam amarrados e a marca de propriedade do coronel estava gravada em um colar de couro em seu pescoço. Ela não chorou nem resistiu. Apenas olhou fixamente para a frente, com olhos escuros e impenetráveis. Seu corpo enorme movia-se com uma graça estranha e silenciosa. Embora estivesse acorrentada, ninguém naquele leilão poderia ter imaginado o que acabara de presenciar.

Não tinham ideia de que estavam assistindo ao início de uma história que terminaria em sangue, mistério e uma lenda que assombraria o recôncavo por gerações. Mas talvez tivessem um pressentimento de que algo estava errado. Pois de acordo com os registros, enquanto o coronel levava Severina para sua carroça para a viagem até Boca da Mata, uma velha senhora na multidão, uma negra forra que vendia quitutes perto do mercado, foi ouvida a dizer: “Esse homem acaba de comprar a própria perdição”.

A fazenda Boca da Mata tinha tudo o que tornava o recôncavo famoso e tudo o que o transformava num inferno para aqueles que lá eram forçados a trabalhar. A Casa Grande era um sobrado colonial de dois andares, com colunas brancas e uma ampla varanda que se abria para os canaviais que se estendiam até o rio Paraguaçu. Atrás da Casa Grande ficavam a cozinha externa, a casa do feitor, um paiol, o engenho de cana e uma fileira de 12 senzalas feitas de pau a pique, com chão batido e sem janelas. Além delas, estendiam-se os campos, centenas de alqueires de cana cuidadosamente plantados, ligados por uma complexa rede de valas e comportas que controlavam o fluxo de água necessário para a cultura.

Severina chegou à Boca da Mata no final de março de 1809 e foi alojada na senzala número sete, que dividiria com outras cinco mulheres. O feitor Amaro, um homem magro e nervoso, parecia apreensivo com seu tamanho. Ele escreveu ao seu irmão em São Paulo — a carta ainda se encontra nos arquivos da Capitania da Bahia — dizendo que Severina era tão grande que precisava se curvar para entrar na senzala. E quando se punha de pé, parecia mais um colosso antigo do que uma mulher cristã. Mas o coronel Horácio não pagou 300.000 réis por Severina apenas para que ela trabalhasse nos campos. Ele tinha algo mais em mente.

O coronel começou a exibir Severina aos visitantes na primeira semana de sua chegada. Convidava senhores de engenho vizinhos, comerciantes de Salvador e até mesmo cavalheiros de passagem para a Boca da Mata para ver a gigante que havia comprado. Levavam Severina à Casa Grande e a faziam ficar no salão ou na varanda para demonstrar sua imponência e força. O coronel a obrigava a levantar objetos pesados, como sacos de açúcar, bigornas de ferro e até porcos inteiros. Ele se postava ao lado dela para que as pessoas pudessem ver o quão mais alta ela era do que ele. Dizia para ela estender as mãos para que os homens pudessem colocar as suas dentro das dela e constatar a diferença.

O Dr. Evaristo Pires, um boticário de Salvador que visitou Boca da Mata em maio de 1809, escreveu em seu diário uma descrição arrepiante desses espetáculos: “O senhor coronel de Medeiros adquiriu um espécime feminino de proporções extraordinárias. Ela tem pelo menos quase 2 metros de altura, talvez mais, com mãos e pés de tal dimensão que mal pude crer em minhas próprias medidas. Sua força parece condizente com seu tamanho. Observei-a levantar um saco de açúcar, pesando não menos que 10 arrobas, com aparente facilidade. O senhor coronel informa-me que recebeu inúmeras ofertas para comprá-la, mas recusa, pois ela se tornou uma atração em nossa comarca. Confesso que a visão dela produziu em mim uma sensação inquietante, como se a própria natureza estivesse experimentando proporções além dos limites normais da forma humana.”

Esses espetáculos foram apenas o começo dos problemas de Severina em Boca da Mata. Quando os convidados do coronel não a estavam observando, ela era forçada a trabalhar nos canaviais, onde a maioria das pessoas teria desistido após alguns meses. Era um trabalho árduo e perigoso cultivar cana-de-açúcar no recôncavo baiano. Antes do amanhecer, os trabalhadores adentravam os campos inundados e ficavam com água até as coxas por 10 a 12 horas seguidas, curvados sob o sol escaldante, plantando, capinando ou colhendo a cana. A água era salobra e cheia de sanguessugas e cobras-d’água. Havia uma profusão de mosquitos no ar. O calor era insuportável e a umidade vinda dos mangues o tornava ainda pior.

O tamanho colossal de Severina a tornava tanto útil quanto um alvo. Ela podia carregar fardos que exigiriam dois ou três trabalhadores comuns. O feitor ficava admirado com a rapidez e a força com que ela usava os pesados machados para cortar a cana ou moer o caldo no engenho. Mas ser tão visível também a tornava vulnerável. O coronel frequentemente escolhia Severina como exemplo do que acontecia com quem trabalhava muito devagar ou o desobedecia. Fazia isso não porque ela tivesse cometido alguma falta, mas porque punir alguém de seu porte enviava a mensagem de que ninguém estava fora de seu alcance.

As punições eram severas. Registros históricos de engenhos de cana mostram que as pessoas eram castigadas com o tronco, a palmatória e o temido bacalhau. Com o bacalhau, um chicote de couro cru, a pessoa era açoitada em público, em posições dolorosas que impediam o movimento por horas. Severina passou por tudo isso. Pelo menos três vezes durante o primeiro ano de Severina em Boca da Mata, o feitor Amaro registrou em seus cadernos que ela foi publicamente punida por insolência ou por se recusar a ser exibida. Mas Severina não cedeu, pelo menos não da forma que o coronel esperava.

Severina tornou-se uma figura que a comunidade escravizada ao mesmo tempo temia e da qual dependia, de acordo com testemunhos de outros cativos de Boca da Mata coletados apenas anos depois, sob circunstâncias muito diferentes. Ela era forte o suficiente para os trabalhos mais duros, como mover as enormes comportas que controlavam o fluxo de água para os canaviais, transportar madeira para reparos e içar barcos para fora da água, mas também estava lá para protegê-los. Diziam que ela interpunha-se entre o chicote do feitor e uma criança, mesmo que esta fosse jovem demais para o trabalho. Contavam que ela carregava trabalhadores desmaiados pelo calor de volta às senzalas. Histórias de ela permanecer imóvel e silenciosa enquanto o coronel tentava separar mães de seus filhos durante vendas para outras fazendas.

Ela não falava muito. Quando falava, sua voz era grave e firme e possuía uma autoridade que parecia não condizer com seu status de propriedade. Alguns dos escravizados mais velhos em Boca da Mata começaram a chamá-la de Severina, a torre, ou simplesmente a muralha, porque uma vez que decidia ficar em algum lugar, nada a movia, a menos que fosse pela força. E o coronel Horácio de Medeiros estava começando a perceber que a força por si só poderia não ser suficiente.

O coronel e Severina tiveram seu primeiro grande embate no verão de 1810, cerca de 15 meses depois de ela se mudar para a Boca da Mata. Um comerciante de curiosidades de Salvador, Agostinho Peixoto, ouviu falar da escrava gigante e foi à Boca da Mata com uma oferta. Ele pagaria ao coronel 300.000 réis para levar Severina a Salvador por duas semanas para exibi-la em uma exposição itinerante que estava organizando com curiosidades da natureza e invenções mecânicas. A mostra teria espécimes, máquinas e Severina como atração principal. O coronel aceitou imediatamente. Era uma oportunidade tentadora demais para ser recusada: a chance de ganhar dinheiro e, ao mesmo tempo, melhorar sua posição na sociedade de Salvador.

Ele comunicou o plano a Severina e pensou que ela o acataria, como sempre fizera, mas desta vez as coisas foram diferentes. Ruth, uma mucama que estava presente durante a conversa, disse que Severina olhou o coronel nos olhos e disse em voz muito baixa: “Não irei”. O coronel ficou chocado. Ele possuía Severina há um ano e meio e ela nunca havia desobedecido diretamente a uma ordem. Ele repetiu a ordem, desta vez mais alto. Severina disse: “Não”, novamente. E sua voz permaneceu firme e grave. O rosto do coronel ficou vermelho. Ele chamou o feitor, mandou que levassem Severina imediatamente para o tronco.

O que aconteceu a seguir causou grande alvoroço entre os escravizados de Boca da Mata e seria sussurrado por anos. Quatro homens, incluindo o feitor Amaro, tentaram empurrar Severina em direção ao tronco. Ela não lutou, apenas parou de se mover, firmou os pés no chão e tornou-se um peso morto. Os quatro homens puxaram, empurraram e a golpearam com os punhos e um bastão. Mas Severina não se moveu. Severina finalmente caminhou até o tronco depois que oito homens usaram cordas e então ameaçaram ferir outros escravizados se ela não obedecesse. O castigo foram 30 chibatadas com o bacalhau de couro trançado. Testemunhas disseram que Severina não emitiu um som durante a surra, embora o vestido de algodão grosseiro que usava estivesse encharcado de sangue.

Quando tudo acabou e ela finalmente foi solta do tronco, caminhou de volta para sua senzala sozinha. Suas costas estavam dilaceradas, mas sua postura ainda era ereta. Ela não foi a Salvador. O coronel, envergonhado diante do feitor e dos trabalhadores, finalmente disse a Peixoto que o negócio estava desfeito, inventando uma desculpa sobre Severina ter adoecido, mas as coisas haviam mudado em Boca da Mata. Sim, os outros escravos tinham visto que Severina podia ser ferida, mas também tinham visto que ela podia fazer o coronel Horácio recuar. Isso assustou o coronel mais do que ele queria admitir.

Um equilíbrio tenso se formou no ano seguinte. O coronel ainda exibia Severina para as pessoas que vinham à Boca da Mata, mas parou de tentar tirá-la da fazenda. Severina continuou a trabalhar nos campos com a mesma força silenciosa e inflexível. Os castigos continuaram a acontecer, mas com menos frequência, como se o coronel soubesse que cada um deles o tornava poderoso em vez de mais. Mas algo mais crescia sob a superfície daquela rotina diária, algo que teria um fim terrível em uma noite quente de agosto de 1813 e mudaria tudo.

Severina engravidou na primavera de 1812. Não há registro oficial de quem era o pai do filho de Severina, mas outros escravizados de Boca da Mata contaram a mesma história. Seu nome era Marcos e ele tinha cerca de 30 anos. Era carpinteiro na fazenda e era bom nos trabalhos complexos de marcenaria necessários para manter o sistema de comportas e o engenho de cana funcionando. Dois anos antes de Severina, Marcos havia chegado à Boca da Mata, comprado em uma venda de bens em Pernambuco. Diziam que ele era um homem quieto e pensativo, que conseguia consertar quase tudo. Ele havia perdido a esposa e a filha anos antes, quando foram vendidas para outras terras. Dizem que o relacionamento de Marcos e Severina era baseado no respeito, não na paixão.

Em um mundo onde tanto lhes era tirado e seus corpos e trabalho eram propriedade de outra pessoa, eles encontraram algo como uma parceria um no outro. Depois do trabalho, sentavam-se juntos à noite e conversavam baixinho do lado de fora das senzalas. Marcos contava a Severina sobre os lugares por onde passara e as coisas que fizera. Severina ouvia. Ela havia se mudado tantas vezes quando criança que mal conseguia se lembrar do rosto da mãe. No início de 1812, Severina descobriu que estava grávida e a notícia se espalhou rapidamente pela senzala. Estar grávida em uma fazenda era sempre difícil, cheio de esperança e de um novo medo. Um filho significava família, a chance de fazer algo além de trabalhar o tempo todo e a chance de ser fraco. Significava que outra vida poderia ser colocada em perigo, vendida ou usada como moeda de troca. E em uma fazenda de alguém como o coronel Horácio, era perigoso.

Desde o início, a gravidez de Severina foi difícil. Carregar uma criança era árduo para ela por causa de seu tamanho, que era o que a tornava valiosa para o coronel. Ela continuou a trabalhar nos campos durante os primeiros meses de sua gravidez, como todas as mulheres escravizadas eram esperadas. No entanto, as outras mulheres em Boca da Mata notaram que ela se movia mais lentamente e às vezes parava e pressionava a mão na parte inferior das costas, o que fazia seu rosto mostrar um raro lampejo de dor. O coronel também notou, mas por razões diferentes. Em sua mente, uma escrava grávida era apenas mais uma peça de propriedade, outra pessoa que ele poderia possuir, vender ou usar.

Ele começou a falar abertamente sobre o bebê, dizendo aos visitantes que achava que o bebê seria muito grande, porque a mãe era muito grande, e se perguntando quanto o bebê valeria quando tivesse idade suficiente para ser vendido. As mucamas da Casa Grande ouviram esses comentários e os contaram a Severina. Eles a encheram de um medo frio que ela nunca havia sentido antes. Ela havia sido espancada, humilhada, cansada e faminta. Mas a ideia de seu filho ser tratado como o coronel a havia tratado — como um animal punido por diversão, talvez até vendido — era demais para ela suportar. Marcos percebeu que Severina havia mudado. Seu rosto estava endurecido e seus olhos estavam distantes. Ela estava ainda mais quieta que o normal. À noite, sentava-se do lado de fora da senzala, com as mãos na barriga e olhava fixamente para a Casa Grande. Até as pessoas que a conheciam bem se assustavam com a expressão em seu rosto.

Em novembro de 1812, Severina foi dispensada do trabalho nos campos e recebeu tarefas mais leves pela fazenda, como descascar grãos, consertar redes e trabalhar na horta da cozinha. Sua barriga havia crescido tanto que era difícil para ela se mover como de costume. Mas mesmo nesse estado enfraquecido, ela ainda era uma presença forte. As pessoas que trabalhavam na cozinha diziam que quando Severina ficava na porta do edifício da cozinha, ela bloqueava completamente o sol.

O bebê nasceu no final de janeiro de 1813, em uma das noites mais frias do inverno. Severina entrou em trabalho de parto logo após a meia-noite. Duas mulheres escravizadas mais velhas, Hester e Dena, que eram parteiras da comunidade, estavam lá para ajudá-la. O trabalho foi longo e muito difícil. Severina gritou naquela noite, embora nunca tivesse gritado durante as surras. O som viajou pelos campos gelados e acordou o coronel na Casa Grande. Ele mais tarde disse que acendeu uma lanterna e caminhou até as senzalas, onde ficou do lado de fora da senzala sete e ouviu o que estava acontecendo lá dentro. O menino nasceu pouco antes do amanhecer. Ele pesava quase 5 kg, o que é grande para um recém-nascido, mas parecia saudável e normal em todos os outros aspectos.

Hester diria mais tarde que Severina chorou pela primeira vez que alguém em Boca da Mata havia visto quando o bebê chorou. Ela segurou seu filho junto ao peito e olhou para suas pequenas mãos e rosto, sussurrando coisas que só ela podia ouvir. Não muito depois do nascimento, Marcos foi autorizado a entrar na senzala. Ele ficou ao lado de Severina e olhou para a criança. Pessoas que estavam lá disseram que algo passou entre eles naquele momento, algum acordo ou entendimento tácito. Jacó foi o nome que Severina deu ao seu filho. Era um nome bíblico que muitos escravizados tinham e significava luta e sobrevivência.

Havia algo como felicidade na senzala sete por algumas semanas curtas, apesar de tudo. Severina alimentava Jacó, o segurava por horas e cantava para ele com uma voz grave que soava como um trovão distante. Marcos talhava pequenos animais de madeira para o bebê e os colocava no berço que havia feito. No entanto, o coronel Horácio estava observando e esperando. Jacó tinha 6 meses no verão de 1813. Ele estava crescendo rapidamente, já maior que a maioria dos bebês de sua idade, e havia começado a sorrir e a alcançar as coisas com suas mãos gordinhas. Severina estava de volta ao trabalho, mas era um trabalho mais leve do que antes, principalmente ao redor dos edifícios da fazenda. Ela sempre mantinha Jacó por perto, carregando-o no quadril ou nas costas enquanto trabalhava ou mantendo-o à vista. Marcos havia feito uma senzala melhor para eles com restos de madeira e suas habilidades. Ele adicionou uma porta de verdade com trinco e uma pequena janela com venezianas. Ainda era uma senzala e ainda era mal o suficiente para eles viverem, mas era deles e eles tentavam formar uma família dentro daquelas paredes rústicas.

Mas os problemas financeiros do coronel Horácio estavam piorando em Salvador. O coronel havia feito alguns investimentos ruins em um negócio de navegação que falhou e o mercado do açúcar estava instável há alguns anos. Ele devia dinheiro a várias pessoas e elas estavam se tornando cada vez mais exigentes. Se o coronel não conseguisse dinheiro rapidamente, ele poderia perder Boca da Mata completamente em julho de 1813. Ele achou que a resposta era fácil: vender alguns de seus escravos. Ele poderia vender cinco ou seis pessoas e pagar dívidas suficientes para manter sua posição. A questão era: Qual devo vender?

Um traficante de gente chamado Natanael Guedes veio à Boca da Mata em uma tarde quente e úmida de terça-feira, no início de agosto. Guedes era uma figura conhecida no mercado de Salvador. Ele comprava escravizados de senhores de engenho que estavam com problemas de dinheiro e depois os vendia em leilão ou para proprietários de fazendas em Minas Gerais e São Paulo. As pessoas o conheciam por fazer negócios difíceis e por não se importar com o destino das famílias depois de comprá-las. Coronel e Guedes caminharam pela fazenda por algumas horas, observando os trabalhadores escravizados e conversando sobre suas idades, habilidades e possíveis preços. Guedes parou e olhou fixamente quando chegaram à parte do pátio perto da horta da cozinha, onde Severina estava trabalhando, e Jacó dormia nas costas dela em uma tipóia de pano.

Um moleque chamado Pedro, que deveria estar carregando água, mas estava escondido atrás de uma pilha de lenha perto o suficiente para ouvir, ouviu a conversa que se seguiu. O único relato direto do que foi dito vem do testemunho de Pedro, dado muitos anos depois. Guedes perguntou: “Meu Deus, é aquela mulher enorme de quem ouvi falar?” O coronel disse: “Essa é Severina, de mais de 2 metros, a trabalhadora mais forte que tenho, e a criança, seu filho, que tem cerca de 6 meses.” Guedes aproximou-se de Severina e a rodeou enquanto ela trabalhava com o rosto inexpressivo. Ele parecia especialmente interessado em Jacó. “Quanto pelo moleque, quanto?”, Guedes perguntou. A mão de Severina parou de se mover e ela não se virou. Mas todo o seu corpo ficou rígido. “Eu não havia pensado em vendê-lo separadamente”, disse o coronel. “Tenho um comprador em Pernambuco, uma família abastada procurando um mucamo que possam treinar desde o nascimento. Eles pagam muito dinheiro por crianças. Trabalho fácil, boas condições. Posso lhe dar 400.000 réis por esse bebê agora mesmo.”

Houve um longo silêncio. Severina lentamente se virou para encará-los, ainda segurando sua enxada. Seu rosto estava completamente inexpressivo. “400.000 réis hoje em dinheiro? Perguntou o coronel. Levo-o comigo ao partir esta tarde.” Pedro disse que Severina emitiu um som gutural como o de uma onça ferida, mas não falou. O coronel olhou para ela e depois de volta para Guedes. “Preciso pensar nisso.” Mas todos que ouviram aquela conversa sabiam a verdade. O coronel Horácio precisava dos 400.000 réis mais do que precisava manter um bebê de 6 meses em sua fazenda. Era apenas uma questão de tempo.

Naquela noite, na senzala 7, Severina e Marcos sussurraram urgentemente um para o outro até bem depois de escurecer. Ninguém sabe exatamente o que eles disseram, mas a decisão que tomaram teria um impacto duradouro. Na manhã seguinte, 13 de agosto de 1813, Marcos havia desaparecido. Ele sumira durante a noite, levando consigo apenas as roupas do corpo. Não era incomum que escravizado fugisse de uma fazenda, mas era muito perigoso. As estradas eram patrulhadas e os capitães do mato trabalhavam por todo o Recôncavo com cães e armas. O castigo para os fugitivos capturados era brutal, mas Marcos não fugiu sozinho.

Ele tinha um mapa detalhado da fazenda, da área ao redor e do caminho para Salvador, costurado no forro de seu gibão por Severina. Ele também tinha uma carta endereçada a qualquer pessoa em Salvador que pudesse ajudar. A carta explicava que o coronel Horácio iria vender um bebê e implorava por ajuda para qualquer coisa que pudesse impedir isso. Era um plano desesperado, quase certamente fadado ao fracasso, mas era o único que tinham.

O coronel soube do desaparecimento de Marcos logo após o amanhecer. Ele estava furioso. Mandou o feitor Amaro reunir uma partida de busca imediatamente, chamar a patrulha de escravos e enviar cavaleiros a Salvador para vigiar as estradas. A fazenda ficou em caos durante toda a manhã, enquanto homens a cavalo se espalhavam pelos mangues e campos ao redor, procurando qualquer sinal de Marcos. Eles o encontraram logo após o meio-dia, a cerca de duas léguas de Boca da Mata, tentando atravessar um riacho. A patrulha de escravos tinha cães e Marcos havia deixado um rastro na lama macia perto da água. Eles o trouxeram de volta para a Boca da Mata, amarrado com cordas, sangrando de mordidas de cães nos braços e pernas, mas ainda vivo.

O que aconteceu a seguir foi objeto de testemunho em vários processos legais nos meses seguintes, mas os detalhes diferem dependendo de quem falava e quando. O coronel ordenou que Marcos fosse levado imediatamente para o tronco. Disse-lhe que o puniria pessoalmente e que seria tão severo que serviria de aviso a qualquer outro que pudesse pensar em fugir. Toda a comunidade escravizada foi obrigada a se reunir e assistir. Severina foi forçada a ficar na frente com Jacó. O castigo foi brutal, mesmo para os padrões daquela época e lugar. Cinquenta chibatadas desferidas com um pesado bacalhau de couro. Marcos foi amarrado ao tronco, sua camisa rasgada.

O coronel empunhou o chicote ele próprio, colocando toda a sua força em cada golpe. Sangue apareceu nas costas de Marcos após a quinta chibatada. Após a décima, sua pele estava dilacerada em vários lugares. Após a vigésima, ele havia parado de gritar e pendia mole contra as cordas. Severina assistiu a tudo. Seu rosto como pedra esculpida, seus braços envoltos em Jacó, que chorava agora, assustado pelos sons e pela atmosfera de violência. Testemunhas relataram que os olhos de Severina nunca deixaram o rosto de Marcos e que Marcos, nos breves momentos em que estava consciente, olhava apenas para ela.

Quando acabou, Marcos foi desamarrado e arrastado para sua senzala, onde estava mal consciente. O coronel virou-se para a multidão, seu próprio rosto corado e suado com sangue na camisa. Ele disse que qualquer um que ajudasse um fugitivo ou mesmo soubesse de uma fuga planejada e não a denunciasse, receberia o mesmo castigo. Então ele mandou todos voltarem ao trabalho, exceto Severina.

O coronel aproximou-se dela e ficou tão perto que ela teve que olhar para ele. Ele, embora um homem grande, parecia diminuto ao lado dela, mas sua voz era dura e fria. “Amanhã de manhã”, disse ele, “o Sr. Guedes retornará e ele levará seu filho. Você não vai resistir. Você entregará a criança silenciosamente ao outro. Se causar qualquer problema ou fizer uma cena, eu espancarei Marcos novamente e desta vez ele não viverá. Você entende o que estou dizendo?” Severina não disse nada, apenas olhou para o coronel com seus olhos escuros e impenetráveis. Depois de um longo tempo, o coronel virou-se e caminhou de volta para a Casa Grande.

Naquela noite, a fazenda estava anormalmente silenciosa. Até os sons normais do mangue pareciam abafados, como se o próprio mundo estivesse prendendo a respiração. Na senzala 7, Severina sentou-se no chão, segurando Jacó, balançando-o lentamente enquanto ele dormia. Em outra senzala, Marcos jazia de bruços, suas costas dilaceradas tratadas com gordura e ervas pelos outros escravizados, entrando e saindo da consciência. E na Casa Grande, o coronel Horácio de Medeiros estava em seu gabinete de estudos, revisando seus livros de contas, calculando como os 400.000 réis da venda de Jacó aliviariam suas pressões financeiras imediatas. Ele bebia aguardente e ocasionalmente olhava pela janela em direção às senzalas, seu rosto preocupado, apesar de sua certeza de ter tomado a decisão certa. Nenhum deles sabia que a noite seguinte terminaria em sangue, mistério e uma lenda que nunca seria verdadeiramente resolvida.

No dia 14 de agosto de 1813, estava quente e úmido, como um dia de verão no Recôncavo, quando o ar parece espesso o suficiente para sufocar. O sol nasceu cor de sangue sobre os canaviais, filtrado pela névoa de umidade que subia dos mangues. Mais tarde, as pessoas se lembrariam desse detalhe, como se a própria natureza estivesse avisando-os do que estava por vir. Severina levantou-se antes do amanhecer, como sempre fazia. Ela alimentou Jacó, trocou-o e o vestiu com as roupas mais limpas que tinha, uma pequena camisola de algodão que ela mesma havia costurado. Ela o segurou perto e sussurrou para ele por um longo tempo, palavras que ninguém mais podia ouvir. Então… (o texto é interrompido aqui).

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