A porta do banheiro bateu com um estrondo seco. O som ecoou pelos azulejos brancos, misturado ao choro agudo de dois bebês. Marina deu um pulo, o coração disparado. Ela apertou Léo contra o peito com um braço enquanto tentava acalmar Lia com a outra mão. O vapor da água quente ainda pairava no ar, deixando o ambiente pesado, úmido, difícil de respirar.
Do lado de fora, o som dos saltos de dona Clarice se afastando pelo corredor de mármore, soou como uma sentença, trancada, sozinha com os gêmeos, e ninguém lá fora para ouvir. Marina engoliu seco, a testa encostada na porta fria e em um sussurro que mal saiu, murmurou: “Calma, meus amores, a mamãe tá aqui. Calma!” Léo soluçava o rostinho vermelho.
Lia chupava a própria mão, confusa com a mudança brusca. O cheiro de sabonete infantil misturado com o perfume caro esquecido na bancada formava um contraste estranho, como se aquele banheiro brilhasse demais para caber o desespero que cabia ali dentro. E tudo aquilo, tudo tinha começado só três semanas antes.
Naquela manhã, num quartinho apertado na periferia de Florianópolis, a luz entrava torta pela janela mal vedada. O vento frio de agosto se infiltrava pelas frestas, fazendo a cortina barata tremer. Marina contava moedas sobre a mesa, como quem conta batimentos cardíacos. Um, dois, três. As moedas ficavam pequenas ao lado do papel de leite em pó vazio. Acabou.
Ela sussurrou, mais para si mesma do que para alguém. No colchão encostado na parede, os gêmeos dormiam encolhidos, dividindo o mesmo cobertor poído. Léo resmungou, mexendo as perninhas. Lia soltou um suspiro longo, como se até no sono sentisse o frio. O celular velho vibrou. fazendo um barulho exagerado no silêncio do quarto.
Marina o pegou com cuidado na esperança de uma mensagem da antiga patroa. Nenhuma, só uma notificação de grupo e um anúncio. Procura-se funcionária para casa de família em Jurerê Internacional. Salário fixo, quarto próprio. Aceita-se mãe com filhos pequenos. Os olhos de Marina congelaram naquelas palavras. Aceita-se mãe com filhos pequenos. Ela leu de novo e de novo.
Jurerê internacional, casa de família, quarto próprio. O estômago dela apertou uma mistura de medo e esperança. Meu Deus, será que é minha chance? Saiu sem ela perceber. Por um segundo, ela se viu ali num quarto limpo, com cama decente pros gêmeos, sem goteira no teto, sem o dono da Kittnet batendo na porta cobrando aluguel.

A imagem durou pouco, esmagada pela voz da realidade. Florianópolis, Jurerê, gente rica, gente que olha torto para pobre e ainda mais para pobre com criança. Mesmo assim, os dedos dela já estavam digitando: “Boa tarde, vi o anúncio. Meu nome é Marina.” No dia seguinte, Marina desceu do ônibus em Jurerê, Internacional com os gêmeos no carrinho emprestado da vizinha.
O vento que vinha do mar tinha cheiro de sal e de dinheiro. As casas todas pareciam ter sido retiradas de revista. Fachadas de vidro, jardins milimetricamente cortados, carros caros brilhando parados na frente. Ela ajeitou o rabo de cavalo, alisou a blusa simples com as mãos, sentia o suor frio nas costas, apesar do clima gelado.
A casa Araújo era impossível de não notar. Muro baixo, portão pesado, duas palmeiras altas balançando devagar. A fachada branca refletia a luz branca da manhã, quase ofuscando a vista de Marina. Ela respirou fundo, apertou o cabo do carrinho e tocou a campainha. O interfone chiou. Casa Araújo. Oi. É, é a Marina. Eu eu mandei mensagem sobre a vaga.
Alguns segundos de silêncio, Marina ouviu Lia começar a resmungar no carrinho. O portão fez um clique pesado e abriu devagar. Lá dentro, o mundo parecia outro. O chão de pedra clara, o jardim com flores sem nenhuma folha seca, o cheiro discreto de alguma planta perfumada, tudo organizado, liso, como se nada ali pudesse dar errado.
Foi então que ela viu dona Clarice, uma mulher de uns 60 anos, cabelo grisalho, preso num coque firme, uniforme impecável, postura reta. Mas o que mais chamava a atenção era o olhar. Um olhar que começava nos cabelos de Marina e descia até os sapatos gastos, pesando cada detalhe, como se estivesse avaliando um móvel velho. Você é a Marina? A voz saiu seca, sem sorriso.
Sou sim, senhora. Marina tentou ajeitar o sorriso, mesmo sentindo a garganta fechar. Clarice deu um passo pro lado e olhou para o carrinho. E eles são meus filhos, Léo e Lia. Marina se inclinou orgulhosa, como se aquele detalhe não fosse o que sempre atrapalhava sua vida.
Clarice não sorriu, não falou: “Que bonitos! Só sentiu dura. O Dr. Heitor não está. Eu vou conversar com você. Entra. Marina empurrou o carrinho pela sala e quase esqueceu de respirar. O piso de mármore brilhava tanto que refletia o rosto dela. Sofás claros, um tapete macio, uma janela enorme de onde se via o mar ao fundo.
O cheiro era de café fresco e algum produto de limpeza caro que ela nunca tinha usado. Tudo lá dentro parecia pedir silêncio. Clarziu até a cozinha. Senta. Marina sentou na ponta da cadeira, as mãos juntas no colo. “Você já trabalhou em casa de família?”, Clarice perguntou pegando uma xícara. “Já?” “Sim, como diarista e em lavanderia? Mora sozinha? Só eu e eles.
” Marina olhou instintivamente para o carrinho. “O pai não não precisa explicar.” Clarou sem levantar os olhos. “Quantos anos você tem? 26 Clarice finalmente ergueu o rosto, como se aquela idade fosse um dado relevante. E eles choram muito. Marina sentiu o estômago virar. São bebês, né, dona? Às vezes sim, às vezes não. Mas eu costumo acalmar rápido.
Clarice apoiou a xícara na pia com um tilintar leve. Aqui, Marina, é o seguinte. Ela começou agora olhando direto nos olhos da outra. O Dr. Heitor não suporta barulho, principalmente choro de criança. Ele trabalha em casa, vive em reunião. Se esses dois fizerem escândalo, você perde o emprego na hora.
Entendeu? As palavras bateram como porta de ferro na cabeça de Marina. Ela devolveu o olhar, tentando não demonstrar pânico. Entendi. Eu vou cuidar. Vou dar um jeito. Tem que dar. Clarice respondeu fria. E não tem mãe. Vem buscar. Vizinha, ajuda. Aqui é você, eles e a casa. Se não der conta, a rua tá cheia de gente querendo.
Marina respirou fundo. Quando abriu a boca para falar, escutou um churinho leve vindo do carrinho. Léo mexeu as pernas. Lia começou a estremecer, prestes a chorar. Marina levantou rápido, pegou a chupeta, fez carinho nas costas dos dois. Calma, neném. A mamãe tá aqui. Clarice observava em silêncio. Havia algo naquele olhar, além de frieza, uma mistura de julgamento e incômodo.
O quarto de vocês fica nos fundos, perto da cozinha. Ela retomou, virando de costas. Pelo menos se eles chorarem, é mais longe do escritório. Pelo menos a frase ficou ecoando na cabeça de Marina. Alguns minutos depois, Clarice abriu a porta de um quartinho simples, mas limpíssimo. Uma cama, um berço, um armário pequeno.
A janela dava pra parte do jardim, onde quase não batia sol, mas ainda assim era mil vezes melhor do que o quarto apertado da Kittnet. Marina passou a mão pela colcha branca, sentindo a textura macia. Léo abriu os olhos como se quisesse ver o novo mundo. Lia espreguiçou, soltando um gritinho curto. Não se apega, Marina. A voz de Clarice veio baixa, bem atrás dela.
Aqui tudo que faz barulho incomoda. Marina virou devagar. Clarissa estava na porta, meio na sombra, meio na luz do corredor. Seus olhos não traziam ódio, trazia costume, costume de mandar, de impor, de filtrar quem serve e quem não serve à aquela casa.
Marina engoliu em seco e assentiu, abraçando os dois bebês ao mesmo tempo, como se pudesse usá-los de escudo. Lá do corredor ecoou um novo som. A porta de uma sala se abrindo, um passo firme, um pigarro. Claricou a coluna. O doutor chegou. Ela murmurou. Você vai conhecê-lo. Vem. Marina ajeitou o cabelo, passou a mão no próprio rosto, tentando apagar os sinais de noite mal dormida.
Enquanto empurrava o carrinho rumo à sala principal, sentiu algo diferente. Um pedaço de tecido preso no canto do balcão da cozinha, uma toalha de mesa perfeitamente dobrada, exceto por uma ponta caída fora do lugar. Clarice, ao passar ajeitou essa ponta com dois dedos, com um gesto rápido, preciso, quase raivoso, como se aquela pequena imperfeição fosse uma ofensa pessoal.
Marina viu e naquele gesto simples, uma ponta de pano fora do alinhamento, algo dentro dela entendeu, mesmo sem palavras. Naquela casa, qualquer desvio, por menor que fosse, podia virar motivo. Motivo para culpa, motivo para castigo, motivo para alguém ser jogado para fora. Ela respirou fundo, sentindo o cheiro de café e medo se misturando no ar, e empurrou o carrinho para dentro da sala, onde o dono da casa a esperava.
A luz que vinha das janelas enormes parecia bonita, mas aos olhos de Marina começava a ter um qu de interrogatório. O primeiro amanhecer de Marina na Casa Araújo chegou antes mesmo do sol nascer. O relógio marcava 5:1, mas o canto distante das gaivotas já cruzava pelas janelas altas da cozinha. Um cheiro de pão fresco escapava do forno.
Letícia, a cozinheira, começava cedo. Marina vestiu o uniforme ainda meio desalinhado, o corpo pesado de sono e espiou os gêmeos dormindo no berço emprestado. Léo sonhava com a boca entreaberta. Lia estava embrulhada como um casulo, respirando fundo, como se confiasse no mundo pela primeira vez. Fica bem, tá? A mamãe volta já. Marina sussurrou, fechando a porta com todo o cuidado do mundo.
O piso gelado da cozinha fez seus pés estremecerem. Letícia sorriu assim que a viu. “Bom dia, menina. Dormiu?” Dormi sim, um pouquinho”, Marina disse, tentando sorrir de volta, mas o sorriso morreu rápido quando ela ouviu passos firmes se aproximando. Era dona Clarice. A mulher entrou como quem vigia um reino.
O uniforme impecável dela parecia ter sido passado a ferro com precisão militar. Ela não cumprimentou ninguém, apenas pegou uma prancheta na bancada e começou a listar tarefas. Marina, sala primeiro. Depois varrer o corredor, limpar o vidro da varanda e tirar o pó dos lustres. Sem barulho. O doutor está em reunião até o meio-dia. Marina assentiu.
Clarice virou de costas e o leve bater dos saltos ecoou pelo corredor como um metrônomo marcando o ritmo da casa. A sala estava fria naquela manhã. A luz que entrava pelos vidros era pálida, esbranquiçada e revelava partículas de poeira suspensas no ar. Marina começou a passar o pano nos móveis, concentrada em cada canto, cada curva dos objetos caros. Ela queria fazer tudo perfeito, precisava.
Quando se abaixou para ajustar o tapete, um detalhe chamou atenção. Os guardanapos sobre a mesa de jantar estavam mal dobrados. Ontem à noite, quando terminou as tarefas, ela tinha ajeitado cada um, alinhando os cantos como Clarice exigia. Marina sempre lembrava de cada gesto, cada dobra, mas agora o terceiro guardanapo da fileira estava torto.
Não era muito, apenas 1 cm fora do lugar, mas naquela casa parecia um grito. Marina respirou fundo, endireitou a dobra com cuidado e seguiu trabalhando. Tinha que ser coincidência. Clarice poderia ter usado a mesa de manhã, certo? Mesmo assim, um frio estranho subiu por sua coluna. Às 9 horas, Marina subia às escadas para limpar o corredor do segundo andar, quando escutou um baque leve vindo do escritório.
Não era alto, mas não combinava com o silêncio absoluto daquele andar. Ela se aproximou devagar. Na porta entreaberta, viu o Dr. Heitor parado de costas, ajeitando o monitor. A expressão dele refletia no vidro, concentrado, rígido, mas com uma leve sombra nos olhos, como se carregasse mais do que queria mostrar.
“Agum problema?”, ele perguntou sem virar. “Não, senhor. Só vim limpar o corredor. Posso?” Pode, faça sem pressa. Ele respondeu num tom inesperadamente calmo. Esse, sem pressa, ficou ecoando na cabeça dela enquanto começava a varrer. Era a primeira vez que ele falava sem parecer distante. Mas antes que tivesse tempo de pensar mais, Marina ouviu outro som, um tampa.
Virou no chão. No fim do corredor estava um dos livros pesados da estante decorativa, caído, aberto, como se alguém tivesse plantado aquilo ali. Não, não. Marina murmurou, o coração acelerando. Ao levantar o livro, ela ouviu o barulho dos saltos de Clarice se aproximando. Isso caiu sozinho? Clarice perguntou sem disfarçar o tom acusador. Eu eu não toquei na estante, juro.
Clarice suspirou fundo como quem está perdendo paciência. Segundo aviso, Marina, você precisa ter atenção, mas eu não chega. Clarice cortou, levantando o queixo. O doutor não pode ver esse tipo de bagunça. Heitor saiu do escritório naquele instante, atraído pelas vozes.
Aconteceu algo? Clarice respondeu antes de Marina abrir a boca. A estante estava desorganizada, doutor. Acho que a funcionária ainda está se adaptando. Heitor olhou para Marina por um instante longo demais. Não parecia julgar, mas também não parecia defender. Era pior do que bronca, era dúvida. Marina sentiu o estômago afundar.
O resto da manhã passou com a sensação de que alguém caminhava atrás dela o tempo todo, respirando no seu pescoço. Cada vez que virava não havia nada, mas a sensação continuava. Marina foi para a cozinha checar os gêmeos. Eles dormiam tranquilos. aconchegados um contra o outro, como dois passarinhos no mesmo ninho.
Ela sentou ao lado do berço e deixou a cabeça cair para a frente, respirando fundo, tentando se acalmar. Letícia percebeu. Tá tudo bem? Eu acho que tô ficando louca, Letícia. Tem coisa aparecendo no lugar errado do nada. Hum. Letícia enxugou as mãos no avental. Aqui tudo é muito certinho. Certo até demais.
Acha que alguém pode? Quer um conselho? Letícia se aproximou, abaixando a voz. Fica esperta. Nem tudo nessa casa é o que parece. Marina engoliu seco. À tarde, enquanto passava pano no chão da sala de TV, ouviu novamente um barulho atrás de si, um estalo. Ela virou e viu um pequeno bibelô virado ao contrário na prateleira.
Ontem ela tinha deixado aquele objeto virado para a frente. Lembrava claramente. O coração dela disparou. Isso não é normal, murmurou. Clar porta exatamente no mesmo segundo. De novo, Marina, ela disse, se aproximando lentamente. A casa inteira precisa viver arrumada. Não dá para apagar incêndio o tempo todo. Era óbvio. Clariss, sempre chegando logo depois de algo dar errado, sempre encontrando erros.
Marina apertou o pano molhado nas mãos para não responder, mas o pior ainda estava por vir. O sol começava a descer quando Marina subiu ao quarto para trocar Lia. A bebê estava inquieta, choramingando baixinho. Quando entrou na suí infantil, algo imediatamente soou errado.
Havia vidro no chão, microscópico, brilhando como pequenas estrelas quebradas. Marina congelou. Um porta-retrato grande estava caído, espatifado ao lado do berço. Meu Deus. Ela correu levantando os gêmeos no colo, o coração no máximo. Quem fez isso? Léo começou a chorar assustada. Lia enterrou o rosto no pescoço da mãe e, como se tivesse sido convocada pelo próprio medo, Clarice surgiu na porta.
O que aconteceu aqui? Ela indagou, mas o tom era de acusação, não surpresa. Isso não estava assim. Eu eu nunca deixaria isso perto deles. Você deve ter limpado mal ontem. Clarice respondeu gelada. Terceiro aviso, Marina. Não tem mais conversa. Não fui eu. Marina implorou, sentindo o corpo inteiro tremer.
Dona Clarice, por favor, não coloque isso em mim. Eu vi a senhora mexendo em coisas antes e ouvi sua ligação no Chega. Clarice avançou um passo. Eu estou nessa casa há 20 anos. Não vou aceitar que uma menina recém-chegada, cheia de problemas, me acuse de coisa nenhuma. Marina abriu a boca para retrucar, mas Clarice levantou a mão.
Um gesto rápido, duro, como se tivesse vontade de empurrá-la para fora junto com os vidros quebrados. Arrume suas coisas. Você vai embora hoje com seus filhos. A frase caiu como sentença. Quando Clarice saiu, Marina ficou ali por alguns segundos, abraçando os gêmeos com tanta força que os dois pararam de chorar.
Ela tremia não só pelo susto, mas porque dentro do peito algum instinto gritava que aquilo não era azar, era intenção. E alguém dentro daquela casa queria ela fora. Marina respirou fundo, varreu os pedaços de vidro devagar, o pano úmido na mão tremendo tanto que quase caía. Foi então que percebeu um detalhe no chão, uma marca de sapato sobre a poeira leve perto da parede, pequena, fina, e não era da sola dela.
Marina ficou olhando para aquela marca por longos segundos, com os gêmeos no colo, o coração quieto pela primeira vez naquele dia. Não era impressão, não era má sorte, não era incompetência. Alguém estava deixando rastros, passos invisíveis que só agora ela tinha começado a enxergar. O barulho do vidro quebrado ainda parecia vibrar nas mãos de Marina, enquanto ela descia as escadas com os gêmeos nos braços. Léo soluçava ainda assustado.
Lia respirava rápido, enterrada no pescoço da mãe. O ar da casa estava mais pesado que o normal, como se até as paredes estivessem esperando algo acontecer. No pé da escada, Marina viu Letícia parada, olhos arregalados ao perceber o estado dela. O que houve, menina? O porta-retrato caiu. Marina engoliu seco. Tava em cima do berço. Lia quase. Letícia tocou no ombro dela. Gentil.
Fica calma. Respira. Eu vou ser mandada embora hoje. Marina sussurrou como quem confessa um crime que não cometeu. Antes que Letícia respondesse, uma voz masculina surgiu atrás das duas. O que está acontecendo? Marina virou. Heitor estava ali parado com uma pasta na mão, ainda de terno, o rosto marcado pela tensão de um dia longo, mas os olhos dele, os olhos estavam presos nos gêmeos, depois no corte pequeno perto da mão de Marina, onde um fragmento de vidro tinha arranhado. Ele deu dois passos. Você está machucada. O que
houve? A voz dele saiu baixa, mas firme. Marina tentou falar, mas a garganta falhou. Quando conseguiu, foi um fio de voz. O porta-retrato grande, o que fica na parede do quarto deles. Ele caiu. Ela respirou fundo, tremendo. Caiu do nada, bem do lado do berço. Eitor estreitou os olhos, o maxilar travado.
Ele não parecia duvidar, mas também não parecia entender. Como assim? Do nada. Eu não sei. Eu juro que não toquei. Eu nunca deixaria algo pesado perto deles. Nunca. O silêncio pesou entre os três. Foi quando Clarice apareceu, como sempre, na hora certa para parecer que controlava a situação. “Doutor”, ela disse com a voz firme. “Eu já falei com ela.
A funcionária estava distraída ontem. deve ter colocado o porta-retrato mal apoiado. Eitor virou totalmente para Clarice. Marina quase machuca as crianças, ele perguntou. O tom neutro, mas o olhar afiado. Claraiada. Infelizmente sim. Eu venho avisando. Ela não tem experiência. Não combina com essa casa. É muito barulho, muita confusão. Não combina porque tem filhos.
Heitor cortou. Clarice piscou surpresa pelo tom dele. Doutor, eu só quero o melhor para a casa e para o senhor. 20 anos cuidando de tudo aqui. Marina viu ali uma rachadura no tom de Clarice, uma emoção mal escondida, algo entre posse e ciúme. Heitor percebeu também. O olhar dele mudou, mínimo, mas mudou.
Vamos resolver isso agora? Ele disse firme: “Marina, venha comigo.” Ele conduziu Marina até o escritório. Era a primeira vez que ela entrava naquele cômodo como convidada. O cheiro de madeira encerada, a luz baixa, a mesa com papéis alinhados milimetricamente. Tudo ali parecia organizado demais para acolher confusão.
Heitor puxou uma cadeira. Senta e me conta tudo. Desde o começo, Marina sentou com os gêmeos no colo. Quando abriu a boca, foi como abrir uma represa. Ela falou dos guardanapos tortos, dos livros caídos, do bibelô virado, do olhar de Clarice, sempre chegando logo depois do telefone.
Eu ouvi ela falando que eu não combinava com essa casa, que o Senhor merecia alguém como ela. franziu o senho. Ela disse isso? Disse sim. Eu parei no corredor e ouvi. Não queria escutar, mas ouvi. O silêncio dentro do escritório era tão intenso que dava para ouvir o vento batendo na janela.
Eitor respirou fundo, passou a mão pelo rosto e apertou um botão no interfone da parede. Chame a Letícia na sala de jantar e o Antônio também. Quando todos se reuniram, Clarice entrou por última, com passos rígidos, como quem não gostou de ser convocada. Eitor ficou de pé. Quero esclarecer um ponto. Ele começou olhando para cada um deles.
Clarice, você entrou no quarto das crianças ontem ou hoje? Clarice respondeu rápido demais. Claro que não. Heitor virou para Letícia. Letícia, você viu alguma coisa? Letícia hesitou por meio segundo, olhando para Marina, segurando os gêmeos de forma protetora. Então disse: “Vi sim, doutor.” Ela entrou no fim da tarde de ontem. Clarice se virou bruscamente. “Você está mentindo?” “Eu vi.” Letícia repetiu agora com mais firmeza.
Heitor chamou Antônio, o motorista. “Antônio, você comprou um porta-retrato na semana passada?” Comprei sim, doutor, por pedido da dona Clarice. Ela pediu igualzinho ao da parede. Disse que o antigo ia cair. Eitor cruzou os braços e ela pediu para instalar.
Perguntei isso, mas ela falou que não precisava, que ela mesma resolveria. O rosto de Clarice empalideceu. O silêncio da sala ficou tão denso que parecia uma cortina. Clarice abriu a boca, mas as palavras não vieram, como se 20 anos de controle lhe escapassem pelas mãos. Eitor então falou devagar: “Por que, Clarice?” Os olhos dela tremeram. Pela primeira vez, Marina viu algo como desespero ali. Eu Eu queria proteger a casa, doutor.
Protegê-la de quê? Heitor, insistiu. Clarice deu um passo, a voz falhando. O senhor merece alguém que esteja do seu lado. Eu sempre, sempre estive. Antes daquela moça aparecer com duas crianças. Marina fechou os olhos. Era pior do que imaginava. Heitor balançou a cabeça, decepcionado de um jeito profundo.
Não raivoso, mas triste. O tipo de tristeza que só aparece quando alguém que você confia te trai. Clarice. Ele disse quase num suspiro. 20 anos. E você escolhe fazer isso? Machucar crianças, manipular a casa? Clarice chorou sem lágrimas, só ruído. Eu nunca quis machucar ninguém.
Só eu pensei que ele ergueu uma mão pedindo silêncio. Não tem, pensou. Tem o que fez. Hoje você vai embora com todos os seus direitos pagos. Mas vai. Clarou os olhos, não tentando ficar, tentando entender como o controle escapou tão rápido. Doutor, por favor, basta. Quando Clarice saiu da sala, Marina sentiu as pernas tremerem.
Não de vitória, mas de alívio e medo misturados. Eitor se virou para ela. Marina, você não vai a lugar nenhum, disse com calma. Seu salário vai aumentar e daqui para frente, se tiver qualquer problema, fala diretamente comigo aqui. Ninguém vai te culpar pelo que não fez.
Marina respirou fundo, tentando segurar o choro que ameaçava sair. “Obrigada, doutor. Eu eu só queria trabalhar em paz.” “E vai?” Ele respondeu. Por um instante, os olhos dos dois se cruzaram de um jeito diferente, um jeito que nenhum dos dois entendeu na hora, mas que algum dia fariam. Marina subiu para o quarto com os gêmeos.
O sol começava a descer, tingindo o corredor de dourado. Um vento leve entrou pela janela aberta. Talvez alguém tivesse esquecido de fechá-la. Ela se aproximou. A cortina balançava devagar, suave, livre. Pela primeira vez desde que entrou naquela casa, Marina sentiu que algo respirava ali dentro, como se uma porta invisível tivesse se aberto. Não a do quarto, a dela.
A vida começava, enfim, a mudar. A casa estava diferente naquela manhã. Não era algo visível. Não era a luz, nem o cheiro, nem a rotina. Era o ar. Ele parecia menos tenso, como se depois da saída de Clarice as paredes tivessem finalmente soltado o fôlego preso por anos.
Marina caminhava pela cozinha com os gêmeos no colo, ajeitando as roupinhas enquanto Letícia fritava ovos. O cheiro de manteiga derretida se misturava com o aroma doce de café recém-passado. Por alguns segundos, tudo parecia normal, quase simples, quase bonito. Mas quando Heitor apareceu na porta, sem terno, apenas de camisa dobrada no antebraço, Marina sentiu o coração tropeçar um pouco.
Ele olhou primeiro para os gêmeos. “Dormiram bem?”, perguntou com aquela voz baixa que ela só tinha ouvido poucas vezes. Dormiram sim, senhor. Ainda estão meio sonolentos. Ele aproximou devagar, como quem não quer assustar. Levantou a mão, hesitou e tocou o braço de Léo bem de leve. Léo abriu um sorrisinho e Eitor também.
Marina não soube porquê, mas aquele pequeno sorriso nela doeu e confortou ao mesmo tempo. Os dias seguintes passaram como se alguém tivesse mudado o ritmo da casa. Não havia mais passos pesados seguindo Marina pelos corredores. Não havia objetos misteriosamente fora do lugar. Não havia acusações. Pela primeira vez, ela limpava, sabendo que ninguém traria uma culpa inventada atrás dela. E aos poucos, Heitor começou a aparecer mais.
Primeiro assistindo Marina brincar com os gêmeos na varanda, depois oferecendo ajuda para trocar fraldas, completamente desajeitado, mas tentando. E por fim, começando conversas pequenas que terminavam longas. Numa noite de vento frio, ele a encontrou na cozinha preparando mamadeira. “Quer ajuda?”, ele perguntou, apoiando-se na bancada. Marina riu baixinho.
“O senhor?” “Ajudar com mamadeira. Eu posso aprender?” Ele respondeu sério, mas com um brilho discreto. Ela entregou a ele o medidor de pó. Heitor segurou como se fosse vidro frágil. “Uma medida ou duas? Duas. Marina disse, aproximando-se para mostrar assim: “Com cuidado, tá?” Ele repetiu seguindo o movimento.
A mão dele tocou na dela por um instante tão curto que quase não existiu, mas existiu e Marina sentiu. Ele também. Eu nunca fiz isso antes. Eitor confessou com uma sinceridade que ela não esperava. É só prática. Marina respondeu terminando de fechar a mamadeira. E paciência, muita. Ele soltou um riso leve, raro, quase escondido. Paciência, eu tô reaprendendo.
O vínculo crescia, não por gestos grandiosos, mas por pequenas coisas. Eitor aparecendo com um cobertor novo, ela ajeitando a gravata dele numa manhã corrida, ele segurando Lia, enquanto Marina tomava café. Ela rindo de verdade pela primeira vez em semanas, até que numa noite chuvosa, enquanto o som da água batia nos vidros, Heitor entrou na sala com um ar diferente.
Marina, posso falar com você um minuto? Ela sentiu o corpo inteiro preparar-se para alguma coisa. Boa ou ruim, não sabia. Ele se aproximou devagar, como se a qualquer movimento brusco o mundo pudesse quebrar. Eu queria pedir desculpas. Ele começou olhando para baixo por não ter percebido antes, por não ter te protegido quando devia.
Você e as crianças. Marina piscou surpresa. Doutor, o senhor não tinha como saber. Tinha sim. Ele murmurou. Eu escolhi não ver. A chuva intensificava-se, caindo como uma cortina líquida. Os gêmeos dormiam no carrinho ao lado, só os dois acordados, num silêncio que não pesava, descansava. Marina, Heitor levantou o rosto.
Eu sinto alguma coisa por você, pelas crianças, pela maneira como você mudou esta casa. Eu não quero te pressionar. Só não queria guardar isso sozinho. Marina prendeu a respiração, sentiu o chão balançar levemente, sentiu tudo dentro dela se mover numa mistura de medo e ternura. “Eu também sinto”, ela disse, a voz falhando. “Mas eu tenho medo. Medo de perder, medo de confiar errado.
” Heitor sentiu devagar, como quem compreende uma dor que conhece bem. A gente vai no seu tempo. Ele respondeu. Eu não vou a lugar nenhum. Algo no peito dela se abriu nessa hora, como se finalmente pudesse inspirar sem culpa, sem cautela. Dias depois, quando Marina caminhava pelo corredor carregando Lia, Heitor chamou para ver algo no final do casarão. “Quero te mostrar uma coisa.
” Ele disse, abrindo uma porta que ela nunca tinha visto aberta. Era um quarto amplo, vazio, com uma janela enorme que dava para o mar. O sol da tarde deixava o espaço dourado. No canto, uma mesa, uma máquina de costura nova, tecidos dobrados, linhas coloridas. Marina levou a mão à boca. “Eu não acredito. Letícia me contou que você costura.
” Ele explicou. e que queria ter seu próprio espaço um dia. Mas isso aqui é seu. Eitor disse simples, direto. Se quiser, se fizer sentido para você, eu posso ajudar a montar o atelier. Você tem talento, Marina. Ela se virou para ele com os olhos cheios.
Por que o senhor faz tudo isso? Porque eu quero ver você respirar. Ele respondeu e Marina chorou, mas não de tristeza. de algo novo, algo que ela não sentia havia anos, esperança e pertencimento. Algumas semanas depois, numa tarde tranquila, Marina estava na varanda costurando quando ouviu um gritinho. Era Léo, engatinhando até Eitor, que tentava montar um brinquedo. Lá lá lá. Léo balbuciou. Eitor riu.
Vem cá, campeão. Pá, Léo, insistiu, apontando com a mãozinha. O que foi? Léo?” Heitor perguntou, inclinando-se, e então o menino disse: “Claro, pela primeira vez: “Papai, o mundo parou.” Marina derrubou a linha das mãos. Eitor congelou. Léo repetiu: “Papai!” Eitor levou a mão ao rosto, os olhos pegando brilho imediato.
Marina chorou silenciosamente e naquele instante, sem cerimônia, sem anúncio, sem promessas formais, eles viraram uma família, não no papel, no coração. O pedido de casamento veio semanas depois, simples, no jardim, sob as luzes mornas do fim de tarde. Nada grandioso, só verdade. Marina, posso ser parte da sua vida? Ele disse, mostrando um anel pequeno, tímido, bonito.
Ela não respondeu com palavras, apenas abraçou, chorando com o rosto escondido no ombro dele. E quando conseguiu falar, disse: “Eu quero. Quero sim”. Os gêmeos bateram palminhas como se entendessem. Letícia chorou da porta da cozinha. Até o vento pareceu bater mais suave.
Alguns dias depois, uma figura inesperada apareceu no portão. Dona Clarice, cansada, mais velha, menor. Marina abriu a porta. Vim pedir desculpas. Clarice disse com a voz quase apagada. Eu estraguei minha própria vida e tentei estragar a sua. Não quero nada. Só perdão. Marina ficou em silêncio. A chuva começava de novo, fina, suave, quase um sussurro.
Não havia raiva, só uma tristeza leve e um entendimento silencioso de que algumas pessoas só sabem amarrado. “Eu não desejo mal pra senhora”, Marina respondeu. “Só isso já basta”. Clarice baixou os olhos e foi embora. Heitor apareceu atrás de Marina. envolveu-a num abraço lento. O mundo pareceu ficar mais quieto, mais leve.
Meses depois, o atelier de Marina estava cheio de tecidos floridos, moldes, pequenas roupinhas penduradas. Os gêmeos começavam a andar. Eitor ria mais. A casa respirava a cada dia. E numa manhã iluminada, quando Marina abriu a janela do atelier, um vento doce entrou, fazendo uma toalhinha infantil pendurada na cadeira balançar suavemente, como um aceno silencioso do destino. Era ali, era agora, era vida nova.
E pela primeira vez desde que pisou naquela casa, Marina sentiu o coração bater sem medo, como se finalmente tivesse encontrado um lugar onde o amor podia respirar. M.