
A chuva caía forte naquela noite fria de quinta-feira, açoitando as janelas de vidro da vastíssima Mansão Vasconcelos.
Júlia Cavalcante Moura, com os seus 28 anos e dez de serviço na limpeza, ajustou o casaco velho, sentindo o ardor da culpa habitual na alma enquanto arrumava os produtos no armário da área de serviço. A culpa de ter deixado a irmã, Beatriz, num orfanato quando tinha apenas dezoito anos, regressava sempre com o mesmo peso esmagador.
“Não conseguia sustentar nem a mim mesma,” murmurava, um lamento silencioso. “Como ia cuidar de uma criança de oito anos?”
Caminhou para a saída dos funcionários. A tempestade piorara, os trovões faziam a mansão tremer com um som seco e assustador. Foi então que ouviu um choro fraco, abafado pela torrente de água. O som parecia vir das lixeiras, mesmo perto do portão.
Júlia parou, o coração a palpitar. Correu para lá, encharcando-se completamente, e afastou as caixas de cartão molhadas que jaziam pesadas e viscosas.
“Meu Deus do céu!”
Um bebé recém-nascido estava ali, a tremer de frio, envolto numa manta vermelha suja. O cordão umbilical mostrava sinais de ter sido cortado há pouco tempo.
“Como alguém pode fazer isso com uma criança inocente?”
Júlia pegou no bebé, protegendo-o da chuva com o seu próprio casaco. O pequeno parou de chorar assim que sentiu o calor humano. Júlia sabia que deveria ligar para a polícia ou para os bombeiros, mas a pequena criatura precisava de cuidados imediatos.
Voltou para a mansão, entrando pela porta dos fundos. Subiu as escadas de serviço, dirigindo-se ao escritório do patrão, e bateu na porta com o coração descontrolado.
“Senhor Dorian, desculpe incomodar, mas é urgente.”
A porta abriu-se, e Dorian Almeida Vasconcelos apareceu. Tinha 35 anos, cabelos escuros e olhos que carregavam uma tristeza profunda. Ele havia perdido a esposa, Helena, e o filho durante o parto há menos de um ano.
“Júlia, o que ainda está a fazer aqui? E o que…”
Dorian parou a meio da frase quando viu o bebé nos braços dela.
“Encontrei-o no lixo, senhor. Está com muito frio e precisa de cuidados médicos urgentes.”
Dorian ficou imóvel, olhando para a criança. Os seus olhos encheram-se de lágrimas, uma dor antiga misturando-se com a surpresa do momento presente.
“Posso segurar?”
Júlia hesitou, mas entregou o pequeno. Dorian pegou no bebé com um cuidado inédito, como se fosse a coisa mais preciosa do mundo.
“É um menino,” disse ele, com a voz embargada.
“Sim. Pensei em chamá-lo de Ariel.”
“Ariel?” repetiu Dorian, embalando-o suavemente. “Nome bonito. Vou ligar para os bombeiros agora. Eles vão saber o que fazer.”
“Não.” A resposta de Dorian surpreendeu-a.
“Como assim, não?”
Ele olhou diretamente nos olhos dela.
“Venha comigo.”
Dorian caminhou pelos corredores da mansão, ainda a carregar Ariel. Júlia seguiu-o, confusa e preocupada. Ele parou diante de uma porta que ela nunca tinha visto aberta.
“Este quarto ficou trancado desde que Helena morreu,” explicou, girando a chave na fechadura. “Não conseguia entrar aqui.”
A porta abriu-se, revelando um berçário completo. Móveis de madeira nobre, decoração em tons de azul e branco, brinquedos ainda nas embalagens; tudo preparado para um bebé que nunca chegou a casa.
“Era para ser o quarto do meu filho,” disse Dorian, caminhando até ao berço. “O médico disse que foi negligência, uma morte que poderia ter sido evitada.”
Júlia sentiu o peito apertar.
“Senhor Dorian, eu entendo a sua dor, mas…”
“E se ele ficasse aqui?”
Júlia pensou ter ouvido mal.
“Como assim?”
Dorian colocou Ariel no berço e virou-se para ela.
“E se ele ficasse aqui nesta casa, connosco?”
“O senhor não está a pensar direito. Deve ser o choque.”
“Estou a pensar melhor do que nunca,” interrompeu ele. “Você tem experiência com crianças?”
“Cuidei da minha irmã até aos oito anos dela.”
“E o que aconteceu com ela?”
Júlia baixou a cabeça, sentindo a velha mágoa.
“Tive que deixá-la no orfanato. Não tinha condições de sustentar nós duas.”
“Quanto você ganha por mês como faxineira?”
“2.000 reais.”
“E se eu lhe oferecer 20.000 por mês para você cuidar do Ariel? A tempo inteiro?”
Júlia sentiu as pernas bambas.
“Senhor Dorian, o senhor está a falar a sério?”
“Nunca falei tão a sério na minha vida. Você cuidaria dele como se fosse seu próprio filho. Moraria aqui na mansão. Ele teria tudo o que precisa para crescer saudável e feliz.”
“Mas é uma criança abandonada, tem protocolos, leis.”
“Eu tenho os melhores advogados do país. Resolveremos toda a parte legal.”
Júlia olhou para Ariel, a dormir tranquilo no berço. Depois olhou para Dorian, que esperava a sua resposta com esperança nos olhos.
“Porquê que está a fazer isto?”
“Porque este bebé chegou até nós por um motivo. Ele precisa de uma família, e nós precisamos dele.”
As palavras de Dorian tocaram fundo no coração de Júlia. Era uma chance de redenção, de corrigir o erro que cometera com Beatriz anos atrás.
“Preciso pensar.”
“Pense o quanto precisar. Mas, enquanto isso, ele fica aqui esta noite, pelo menos.”
Júlia concordou e passou as primeiras horas da madrugada a cuidar de Ariel junto com Dorian. Ele preparou o leite, ela trocou as fraldas. Cuidaram dele como se sempre o tivessem feito juntos.
Quando o sol nasceu, Júlia tinha certeza da sua decisão.
“Eu aceito.”
Dorian estava a preparar café na cozinha quando Júlia desceu com Ariel ao colo.
“Tem certeza?” perguntou ele, servindo duas chávenas.
“Absoluta. Mas quero saber exatamente o que isso significa.”
Dorian puxou uma cadeira para ela se sentar.
“Significa que você será a mãe de que ele precisa, e eu serei o pai que ele merece. Legalmente falando, como vai funcionar?”
“Os meus advogados já estão a preparar toda a documentação. A guarda provisória ficará no seu nome, mas você morará aqui. Ariel crescerá como um Vasconcelos.”
Júlia balançou a cabeça, ainda a processar tudo.
“Isso é surreal. Ontem eu era apenas a sua faxineira que vinha limpar aqui três vezes por semana.”
“E hoje você é a pessoa mais importante desta casa!” respondeu Dorian, olhando para Ariel.
“Ele gosta de você.”
“Como pode saber?”
“Olhe como ele a observa. Crianças sentem quando estão seguras.”
Júlia sorriu e fez cócegas na barriguinha do bebé.
“Você vai crescer forte e saudável, meu pequeno.”
“Nosso pequeno,” corrigiu Dorian.
A palavra nosso causou um arrepio estranho em Júlia. Era a primeira vez na vida que fazia parte de algo maior do que ela mesma.
Três semanas haviam-se passado desde que Júlia assinara o contrato. A rotina na mansão estava longe de ser harmoniosa.
“Não é assim que se segura um bebé,” disse Dorian, observando Júlia dar o biberão a Ariel na sala de estar.
“Estou a segurá-lo do jeito certo há três semanas.”
“Mas o ângulo está errado. Ele pode engasgar.”
Júlia suspirou e ajustou a posição.
“Melhor assim, doutor.”
“Não precisa de ironia. Só quero o melhor para ele.”
“Eu também quero. A diferença é que confio no meu instinto.”
Dorian sentou-se ao lado dela no sofá.
“E eu confio na ciência. Li dezassete livros sobre cuidados com bebés desde que ele chegou.”
“Dezassete? A sério?”
“Preciso estar preparado.”
Júlia abanou a cabeça, divertida, apesar da irritação.
“Você sabe que bebés não vêm com manual de instruções, não sabe?”
“Por isso leio tanto. Para compensar.”
Ariel terminou o biberão e Júlia colocou-o ao colo para que arrotasse. Dorian estendeu os braços.
“Posso?”
“Claro.”
Ele pegou no bebé com cuidado e começou a bater levemente nas costinhas.
“Assim não é, campeão?”
“Não o chame de campeão,” pediu Júlia.
“Porquê?”
“Porque ele tem nome. Ariel.”
“Campeão é carinhoso.”
“Ariel também.”
Dorian revirou os olhos e continuou a ajudar o bebé a arrotar.
“Talvez eu não seja bom nisto,” disse Dorian, jogando-se na poltrona.
Júlia viu a insegurança dele e sentiu pena.
“Você é ótimo com ele, só precisa relaxar.”
“Helena sempre dizia que eu era muito controlador.”
“Era?”
“Sou, admito. Porquê?”
Dorian ficou alguns minutos em silêncio.
“O meu pai morreu quando eu tinha dez anos, num acidente de carro. A minha mãe entrou em depressão, e eu tive que cuidar de tudo: casa, negócios, responsabilidades de adulto.”
“Que pesado para uma criança.”
“Aprendi que, se eu não controlasse tudo, as coisas saíam errado. E quando saíam errado, as pessoas magoavam-se.”
Júlia entendeu melhor o comportamento dele.
“Mas com um bebé não dá para controlar tudo. Eles têm vontade própria. É isso que me assusta.”
“Olhe para ele.” Ariel estava a brincar com o botão da blusa de Júlia, completamente relaxado. “Ele não precisa que você controle cada respiração. Ele precisa que você o ame.”
“E se eu fizer algo errado?”
“Vai fazer. Todo pai faz. Faz parte.”
Dorian sorriu pela primeira vez naquele dia.
“Todo pai.”
“Todo pai, e toda mãe também. Você também tem medo de fazer algo errado o tempo todo, mas o medo não pode paralisar a gente.”
Naquela noite, Júlia estava a terminar de arrumar as roupas de Ariel quando Dorian apareceu no berçário.
“Posso ajudar?”
“Claro.”
Trabalharam em silêncio por alguns minutos, a dobrar roupas minúsculas e a organizar fraldas.
“Júlia?”
“Sim.”
“Obrigado.”
“Pelo quê?”
“Por não ter desistido de mim ainda.”
Ela parou de dobrar e olhou para ele.
“Porquê que desistiria?”
“Porque sei que sou difícil. Helena sempre reclamava.”
“Você não é difícil. Você é cuidadoso demais. Qual a diferença?”
“Cuidadoso vem do amor. Difícil vem do ego.”
Dorian sorriu.
“Você é sábia.”
“Sou prática. Diferente de você, que complica tudo.”
“Complico.”
“Quer um exemplo? Ontem você passou quinze minutos a escolher qual babygrow o Ariel ia usar para ficar em casa. Quinze minutos não é tanto assim.”
“Mas para escolher roupa de bebé que vai ficar babada em duas horas, é muito.”
Dorian riu.
“Está bem, você tem razão.”
“Sempre tenho.”
“Sempre. Sempre.”
Eles riram juntos, e Júlia sentiu uma ligação diferente com ele. Menos patrão e funcionária, mais parceiros de verdade.
“Dorian.”
“Sim.”
“Vamos conseguir criá-lo bem juntos. Você tem certeza?”
“Absoluta.”
Duas da manhã. Ariel chorava inconsolável há mais de uma hora. Júlia caminhava pelo berçário com ele ao colo, tentando tudo o que sabia para o acalmar.
“Chi, meu amor, o que foi? Estás com cólica?”
A porta abriu-se e Dorian entrou, usando apenas uma t-shirt e calções de pijama.
“Também não consegue dormir?”
“Ele não para de chorar. Já troquei a fralda, ofereci biberão, verifiquei se não tem nada a magoá-lo.”
“Posso tentar?”
Júlia entregou-lhe o bebé, exausta.
“Ei, filho, o que está a acontecer?”
Dorian começou a andar pelo quarto, fazendo movimentos suaves. Gradualmente, o choro de Ariel diminuiu.
“Como você fez isso?” perguntou Júlia, surpresa.
“Não sei. Sorte?”
“Não foi sorte. Você tem jeito natural.”
“Acha mesmo?”
“Tenho certeza.” Dorian sentou-se na poltrona de amamentação, ainda a embalar Ariel suavemente. “Sabe, Helena ficaria surpresa em ver-me assim.”
“Porquê?”
“Ela sempre disse que eu seria um pai distante, muito focado no trabalho.”
Júlia sentou-se no chão ao lado da poltrona.
“E ela estava errada. Você deixou tudo de lado pelo Ariel. Trabalho, reuniões, viagens, tudo. Isso não é ser pai distante.”
Dorian olhou para o bebé, que finalmente adormecera nos seus braços.
“Helena tinha os seus medos sobre a nossa família. Ela perdeu a mãe quando era pequena. Sempre teve medo de morrer jovem e deixar os filhos sozinhos.”
Júlia sentiu um aperto no peito.
“E acabou por acontecer. O irónico é que ela morreu a tentar dar vida, no hospital que deveria salvá-la.”
“Você suspeita de alguma coisa?”
Dorian ficou alguns segundos em silêncio.
“O Dr. Henrique Moreira, diretor do São Benedito, era amigo da família. Prometeu que tudo correria bem. E o que aconteceu? Negligência médica, pelo menos é o que dizem os relatórios. Acredito que poderiam ter feito mais, muito mais.”
Júlia notou a dor na voz dele e decidiu mudar de assunto.
“Posso contar-lhe uma coisa? Sobre a minha irmã Beatriz.”
Dorian incentivou-a com o olhar.
“Os meus pais morreram quando eu tinha dezassete anos, num acidente de trânsito. Beatriz tinha apenas oito. Eu tentei cuidar dela. Juro que tentei. Trabalhava em três empregos, fazia faxina de madrugada, vendia doces na rua, mas não era suficiente. Mal dava para pagar o aluguer e comida básica. Um dia, ela desmaiou de fome na escola. A assistente social veio procurar-me. Disse que eu não tinha condições de cuidar dela, que o melhor seria o orfanato.”
“Você concordou?”
Júlia limpou as lágrimas que começavam a escorrer.
“Foi a decisão mais difícil da minha vida, mas pensei no bem dela. Prometi-lhe que, quando conseguisse estabilizar-me, a iria buscar de volta.”
“E conseguiu estabilizar-se?”
“Consegui, mas quando voltei ao orfanato, ela já tinha completado dezoito anos e saído de lá. Tentei procurá-la por anos. Ela sumiu completamente.”
Dorian levantou-se com cuidado e colocou Ariel no berço.
“Por isso você aceitou cuidar do Ariel tão rapidamente.”
“Ele lembrou-me que eu ainda posso ser a mãe que não consegui ser para Beatriz.”
“Você vai ser uma mãe maravilhosa.”
“Como pode ter tanta certeza?”
“Porque vejo como você olha para ele, com o mesmo amor que devia olhar para a sua irmã.”
Júlia sorriu através das lágrimas.
“Obrigada por ter partilhado as suas lembranças da Helena comigo.”
“Obrigado por ter partilhado as suas da Beatriz.”
Ficaram alguns minutos a observar Ariel a dormir em paz.
“Acha que eles nos veem? Helena e Beatriz.”
“Tenho certeza que sim. E estão orgulhosas.”
“De quê?”
“De como estamos a cuidar bem do nosso menino.”
A palavra nosso soou natural pela primeira vez.
Três semanas depois da visita de Edmundo e Carmen, Ariel desenvolveu febre alta durante a madrugada. Júlia acordou com um choro diferente dele, um choro de dor que fez o seu coração disparar.
“Dorian!”
Ele apareceu em segundos, ainda desorientado pelo sono.
“O que foi? Ele está a queimar de febre?”
“Está muito quente. Vamos para o hospital.”
“Não, primeiro vamos tentar baixar a febre aqui. Hospital, só se não conseguirmos.”
Júlia preparou um banho morno enquanto Dorian segurava Ariel.
“Meu amor, a mamãe vai cuidar de você.”
“E o papá também,” acrescentou Dorian.
A água morna ajudou um pouco, mas a febre persistia. Passaram a noite toda a revezar os cuidados, com compressas frias, medicação e muito carinho.
“Você foi incrível,” disse Dorian.
“Nós fomos incríveis. Trabalhamos juntos.”
“Você sabia exatamente o que fazer.”
“Experiência com a Beatriz. Ela vivia doente quando pequena. Era apavorante, mas a gente aprende.”
Dorian olhou para ela com admiração.
“Posso contar-lhe uma coisa? Quando Helena estava grávida, eu tinha pesadelos sobre ser pai. Pesadelos? Sonhava que acontecia alguma coisa com o bebé e eu não sabia o que fazer. Hoje ainda tem pesadelos?”
“Não, porque sei que se acontecer alguma coisa com Ariel, você vai saber o que fazer. Nós vamos saber juntos.”
“É, juntos.”
Ficaram alguns minutos em silêncio.
“Dorian, desculpa, não devia ter falado.”
“Não devia ter falado o quê?”
“Que você é linda, que admiro a sua força, que… Que o quê?”
Em vez de responder, Dorian inclinou-se e beijou-a. Um beijo suave, cheio de ternura e sentimento represado há meses. Júlia correspondeu por alguns segundos, mas depois afastou-se rapidamente.
“Não podemos.”
“Porquê?”
“Porque isso complicaria tudo.”
“Ou simplificaria.”
“Dorian, eu trabalho para você.”
“Não. Você é a minha parceira na criação do Ariel.”
“Mesmo assim, e se der errado? E se você se cansar de mim?”
“Não vou cansar. Como pode saber?”
“Porque o que sinto por você não é capricho. O que você sente por mim?”
“Amor, Júlia. Estou apaixonado por você.”
“Não diga isso. Você ainda está de luto, está a confundir gratidão com amor. E quando perceber, vai dispensar-me e ficar com Ariel.”
“Isso nunca aconteceria. Eu amo você, os seus defeitos, as suas qualidades, a sua força, a sua doçura.”
“Pare. Porquê que tenho que parar de dizer a verdade?”
“Porque a verdade magoa. Magoa porquê?”
Júlia respirou fundo antes de responder.
“Porque eu também estou apaixonada por você, e isso me apavora.”
Duas semanas se passaram. Era uma quinta-feira chuvosa quando um investigador particular contratado por Edmundo e Carmen chegou à mansão.
“Júlia, preciso que você leve Ariel para o quarto. Aconteceu alguma coisa? Tem um investigador aqui. O meu tio deve ter contratado-o.”
Roberto Mendes, o investigador, entrou na sala.
“A criança tem nome verdadeiro, não é apenas um bebé abandonado. O nome é Artur Cavalcante Moura.”
“Cavalcante Moura. Exato. Mesmo sobrenome da… Como devo chamar? Da cuidadora.”
Dorian sentiu o sangue gelar.
“A mãe biológica da criança era uma pessoa em situação de rua. Chamava-se Beatriz Cavalcante Moura, dezanove anos.”
O mundo de Dorian desabou. Beatriz, a irmã que Júlia procurava há anos.
“Onde está essa moça agora?”
“Morreu no Hospital São Benedito na mesma noite em que a criança foi abandonada. Morreu com complicações no parto, negligência médica.”
“O bebé foi declarado como ‘morto’ e deveria ter sido levado para um orfanato clandestino. Mas o funcionário responsável teve problemas no carro durante a tempestade e improvisou. Abandonou a criança perto da sua mansão, esperando que fosse encontrada rapidamente.”
“Então, foi uma coincidência?”
“Sim, foi desespero de um funcionário corrupto que não sabia o que fazer. O Dr. Henrique Moreira assinou o documento, o mesmo que cuidou da minha esposa. Ele comandava um esquema de adoções ilegais e cobriam mortes por negligência.”
Dorian pagou a Roberto Mendes para que lhe entregasse uma cópia dos documentos e esquecesse a conversa. Subiu para o quarto e encontrou Júlia a embalar Ariel.
“Júlia, preciso de lhe contar uma coisa muito difícil. Sobre Ariel. Sobre a sua família.”
Dorian mostrou a certidão. Júlia leu o documento e empalideceu.
“Beatriz Cavalcante Moura, a sua irmã. Não pode ser. Ariel é seu sobrinho.”
“E a Beatriz, onde ela está?”
Dorian respirou fundo antes de responder.
“Ela morreu, Júlia, no parto.”
O grito de dor de Júlia acordou Ariel, que começou a chorar. Ela apertou o bebé contra o peito, chorando descontroladamente.
“A minha irmã… Meu Deus, a minha irmãzinha.”
“Ela estava grávida, e eu nem sabia. Morreu sozinha? Não morreu sozinha. Ariel estava com ela.”
“E eu abandonei-a! Se eu tivesse procurado mais, se eu tivesse…”
“Não foi culpa sua. Você era uma criança a cuidar de outra criança. E agora está a cuidar do filho dela, do seu sobrinho, e nem sabia. Mas está a cuidar bem, com amor.”
“Ela devia estar aqui, devia estar viva, a criar o próprio filho, mas não está. E Ariel precisa de você.”
Júlia olhou para o bebé.
“Ele tem os olhos dela. Como eu não percebi? E o cabelo encaracolado, igual ao meu quando era pequena.”
“Ele é um pedacinho da Beatriz que ficou para você.”
“Não quero um pedacinho, quero a minha irmã de volta. Aquele hospital São Benedito, o mesmo onde Helena morreu. Eles mataram as duas. Mataram.”
“Somos todos vítimas do mesmo lugar. Mas agora somos uma família, unida pela dor e pelo amor.”
Um mês depois, Dorian contratou os melhores advogados criminalistas para investigar o Hospital São Benedito. A guerra estava declarada. Edmundo e Carmen convocaram uma reunião familiar na mansão.
No domingo, a sala principal estava cheia.
“Família, estamos reunidos aqui para resolver uma situação que está a prejudicar o nome dos Vasconcelos,” disse Edmundo, batendo na mesa.
“Esta comédia que você está a viver…”
Júlia deu um passo à frente.
“Senhor Edmundo, o nosso amor não é comédia. Amor? Você ama a conta bancária dele.”
“Eu amo o Dorian e amo este bebé como se fosse meu próprio filho. Porque é seu próprio filho,” declarou Dorian.
A sala ficou em silêncio.
“Ariel é sobrinho da Júlia, filho da irmã dela, que morreu no parto. E o hospital que a matou é o mesmo que matou Helena, e no qual o senhor tem investimentos, Edmundo.”
Júlia entregou Ariel a Dorian e virou-se para a família.
“Eu sou filha de um mecânico e uma costureira que morreram quando eu tinha dezassete anos. Trabalhei como faxineira para procurar a minha irmã. Nunca a encontrei. Até à noite em que achei Ariel no lixo e descobri que ele era filho dela. Vocês querem saber se estou aqui pelo dinheiro? Não estou. Estou aqui porque este bebé é a única família que me restou no mundo. E porque o Dorian é o homem que amo.”
“E eu amo-a,” declarou Dorian. “Mais do que amei qualquer pessoa na vida.”
“Uma empregada não pode virar senhora Vasconcelos.”
“Porquê que não pode? Porque você não nasceu para isso?”
“Tia Carmen,” disse Dorian friamente, “a única pessoa aqui que não nasceu para ser Vasconcelos é você, porque os Vasconcelos têm coração.”
“Ou você escolhe essa mulher ou escolhe a sua família.”
Dorian olhou para Júlia, depois para Ariel nos seus braços.
“Eu escolho a minha família. Júlia e Ariel são a minha família.”
“A única coisa de que me arrependo é de ter demorado tanto para ser feliz,” disse Dorian, enquanto a família descontente saía.
Um ano depois, na data do primeiro aniversário de Ariel, a mansão dos Vasconcelos estava decorada com balões azuis e brancos. Dorian levou Júlia para o jardim.
“Júlia Cavalcante Moura, você aceita casar comigo?”
“Não é por obrigação, não é por conveniência. É porque quero passar o resto da vida a acordar ao seu lado e a ver o nosso filho crescer. Quer ser a minha esposa?”
“Quero. Quero muito.”
Um ano depois, numa manhã ensolarada de sábado, o jardim da mansão estava decorado com flores brancas e azuis. Júlia usava um vestido simples, mas elegante. Dorian estava impecável de smoking azul-marinho. Ariel, agora com quinze meses e a caminhar sozinho, carregava as alianças.
“Dorian, você aceita Júlia como esposa?”
“Aceito, e prometo ser o marido que ela merece e o pai que o nosso filho precisa.”
“Júlia, você aceita Dorian como esposo?”
“Aceito, e prometo amá-lo sempre, cuidar da nossa família e fazer a nossa casa cheia de felicidade.”
Naquela noite, depois do casamento, no berçário, Júlia e Dorian sentaram-se na varanda.
“Senhora Vasconcelos,” disse ele, brincando com a aliança dela.
“Obrigada por ter-me dado uma família, por ter feito de mim uma mãe, por ter transformado a dor em amor.”
“Obrigado você por ter salvado a minha vida naquela noite chuvosa. Encontrou a nossa família.”
Acha que ele vai lembrar-se de como chegou até nós?
“Vai lembrar-se do que importa: que foi muito amado desde o primeiro dia. E quando ele crescer e perguntar sobre a mãe biológica, vamos contar que Beatriz era um anjo que preparou o caminho para ele chegar até nós, e que Helena também era um anjo que cuidou de tudo lá de cima.”
Ariel dormia tranquilo, cercado pelo amor de duas pessoas que precisaram de uma tempestade e de uma tragédia para se encontrarem e construírem o seu lar. Uma história de milagres que acontecem quando menos se espera.