A tempestade engolia a planície quando Jake Callahan viu uma luz a tremer na janela da cabana. O cavalo vinha no limite; ele, encharcado de três dias a fugir de memórias piores do que qualquer posse. Tinha deixado sangue em Tombstone e, desde então, era seguido pelo som invisível do que não queria lembrar.
Empurrou a porta com um nó nos ombros.
— Só preciso de um canto para dormir, minha senhora — disse, tirando o chapéu.
Lá dentro, três mulheres sentadas à luz fraca de velas. Viúvas: via-se nos olhos. Carregavam a mesma sombra de quem teve de enterrar o “seu” cedo demais. O ambiente cheirava a lavanda e a algo azedo, como fé mal digerida. Uma cruz pendia na parede, grande, lançando sombras tortas. Livros religiosos alinhados em demasia, cenário de uma peça sombria.
A mais velha, Martha, uns quarenta anos, ergueu-se com esforço contido.
— Entre. A noite está má.
Havia tensão, mas também um cansaço sem fingimentos. Sarah, a mais nova, talvez vinte e cinco, cabelo acobreado a colher o fogo das velas, segurava um Colt antigo com mãos que tremiam só no fim dos gestos. Elena, trinta e poucos, cabelo escuro solto, mantinha-se perto da janela, a ouvir a chuva como quem ouve passos.
— Os nossos maridos morreram há seis meses — disse Martha, sem rodeios. — Mesma noite. Mesmos homens.
Jake pousou as alforjas, a avaliar. Não eram crédulas nem tolas; havia estudo nos livros, disciplina nas prateleiras, cuidado em tudo. A aflição, ali, tinha método.
— Quem lhes meteu a ideia de que um estranho é solução para maldição nenhuma? — perguntou.
Martha olhou para o chão, a voz a roçar o fio.
— O Pastor Jeremiah Blackwood. Disse… que Deus manda provas.
Blackwood chegou na manhã seguinte, como se a tempestade lhe abrisse caminho. Alto, magro, negro no traje e limpo de lama, o cavalo caro, freio de prata a brilhar entre nuvens. Quando passou o umbral, as mulheres encolheram-se meio palmo; Jake reparou: não era respeito, era o condicionamento de meses.
— Irmãs — saudou o pastor, o tom meloso e cortante. — O mensageiro chegou, tal como prometido.
— Sou só um homem à procura de abrigo — devolveu Jake, neutro.
— Só um homem? — Blackwood sorriu sem dentes. — Um instrumento. Há ritos de purificação que eu, servo do Altíssimo, não posso realizar. Mas tu, peregrino em busca de redenção…
Jake sentiu qualquer coisa gelada arranhar-lhe o peito. Aquele homem tinha construído uma teologia para legitimar abuso. Não precisava de mais palavras para perceber.
Nessa noite, sem Blackwood, a cabana falou por sinais. O ranger da madeira fazia-as sobressaltar, a voz baixava mesmo sem necessidade. Sarah limpava o Colt do pai em movimentos repetidos, mas a haste do cano escapava-lhe dos dedos. Elena olhava as mãos como se não fossem suas. Martha esfregava um ponto da mesa, já limpo, como se pudesse apagar a humilhação a polir madeira.
— Tentámos recusar — disse Elena, enfim, baixinho. — Disseram que era condenação eterna.
— E quem correu… não chegou longe — murmurou Sarah, sem levantar os olhos.
Havia nomes que não queriam dizer alto. Jake percebeu que a única maneira de ajudar era furar a bolha com factos. Montou de manhã e foi à vila. A mercearia estava vazia; o dono, Herbert, varria o mesmo pedaço de chão, os olhos a fugirem para a igreja.
— Diz-me o que sabes — pediu Jake, comprando coisas de que não precisava.
Herbert suspirou como quem se entrega.
A história saiu aos bocados, como dentes puxados de uma boca morta: a mina de prata que enriquecera os três maridos; os emissários da ferrovia a rondar, com malas de dinheiro e promessas; a recusa orgulhosa; a emboscada “de bandoleiros” convenientemente informados sobre rotas e horários; um moribundo que, a sangrar, apontou o dedo a “um homem respeitado” que visitava as famílias com frequência. Desde então, o tal homem comprava, barato, as terras das viúvas que já não aguentavam manter tudo sozinhas. Papelada mostrava que por trás estava o consórcio do Norte — mineração, água, servidões de passagem. Precisavam de um rosto local, de batina, para legitimar o saque.
Jake voltou à igreja ao cair da tarde. Blackwood não rezava: desenrolava mapas de agrimensor no altar, como oferendas a um deus de linhas e cifras. Direitos de água a azul, veios de minério a cinzento, traços rectos onde a terra curva.
— Tenho perguntas — disse Jake.
— Estás a fazer as erradas — retorquiu o pastor, sem erguer os olhos. — Isto não é por dinheiro. É por visão. Ordem. Destino.
Ergueu o rosto e os olhos pálidos tinham febre antiga.
— As mulheres? — insistiu Jake.
— Servem o propósito — respondeu Blackwood, sereno. — Quebradas, entregam tudo. Convencidas de que limpam culpas, assinam papéis.
Não brandiu arma nem Escritura; enrolou mapas. Ao sair, rematou:
— Esta noite, termina.
Jake montou sob chuva miúda, o corpo a pedir descanso, a mente num fio. Entrou na cabana pronto para discutir plano — e travou. As três não estavam esmagadas junto ao lume. Estavam em pé, ocupando o centro. A coluna de Martha parecia um cano de espingarda. Sarah tinha o Colt do pai aberto em peças, as mãos firmes. Elena aparelhara o cabelo em tranças apertadas que a avó apache lhe ensinara, não de “boa casa”, de batalha. No chão, uma tábua solta escondia mais do que munições: mapas copiados, recibos, cartas do consórcio. Meses de recolha, de silêncio estratégico, de aprendizagem paciente.
— Ele vem — disse Martha, sem dramatismo. — Sente-se no ar.
— E traz os mesmos de há seis meses — acrescentou Elena. — Vimo-los a pavonear-se no saloon.
— Pensei que eu é que ia proteger-vos — soltou Jake, sincero.
Sarah encaixou o tambor no Colt com um clique seco.
— Esqueceste quem fomos, antes dele querer dizer-nos quem somos. Lembrámos.
As tochas aproximavam-se entre a chuva. Quatro, cinco cavalos. A voz de Blackwood cortou a noite com a segurança de quem dita regras há demasiado tempo.
— Senhor Callahan… Irmãs… Deus espera-nos.
A primeira bala estilhaçou a janela. Ninguém ficou paralisado. Os corpos das três sabiam o que fazer como se tivessem ensaiado ao longo de meio ano — e tinham. Sarah tomou posição atrás da mesa virada. Elena guardou a porta das traseiras, espingarda pronta. Martha colocou-se no batente, Winchester ao ombro.
— Entre, pastor — provocou Jake. — Faça o “trabalho santo” com as suas mãos, por uma vez.
A risada de Blackwood veio com texto decorado. Mas os homens com ele não eram bons de texto. A frente iluminou-se de fogo e ruído. O que se seguiu não foi duelo de cinema; foi defesa de casa feita por gente que já perdera tudo o que podia perder.
Não durou muito. Quando o fumo assentou, a lama à frente da cabana recebia quatro corpos. Um quinto tentou render-se a Elena, mãos ao alto; ela atirou, fria, lembrando a garganta que ele abrira sem misericórdia. Jake não julgou. Apenas respirou.
Blackwood ficara atrás, fora de alcance, mãos erguidas, cálculo nos olhos.
— Sou homem de Deus — gritou. — Não podem executar-me a sangue-frio.
Martha pisou o alpendre. Não tremeu.
— Um homem de Deus não contrata os assassinos do nosso luto — disse.
Elena surgiu de lado, arma segura.
— Nem constrói império sobre os nossos túmulos.
Sarah saiu por último, a chuva a desenhar riscos no rosto.
— Não nos “purifica” com palavras para nos roubar com papéis.
Jake ergueu as mãos, vazias, a mostrar que o que contava agora eram os factos.
— Temos mapas, contratos, recibos. Chega para o marechal territorial o enforcar três vezes.
Por um momento, Blackwood perdeu a máscara. Falou de “histeria”, de “pistoleiro conhecido”, de “respeito do povo”. Martha puxou de uma bolsa de couro.
— Incluindo os contratos com o consórcio, pelo “serviço de aquisição territorial”. Assinados, datados.
O branco na cara de Blackwood não foi de santidade. Foi de perceber que as mulheres que julgara quebradas tinham passado meses a recolher as cordas da sua forca.
— A salvação tem custo, disse-nos — falou Sarah, sem elevar a voz. — Hoje descobre o custo que a fronteira cobra de homens como você.
O disparo veio da Winchester de Martha, limpo. O corpo tombou na lama, a chuva a diluir a poeira do feitio antigo que Blackwood gostava de citar. Não houve gritos. Houve fim.
O amanhecer lavou a planície. Três dias depois, Martha, Sarah e Elena entraram na vila, com as pastas de documentos apertadas contra o peito. Houve sussurros, houve olhares de lado, houve quem dissesse que “mulher não mexe com poder grande”. O juiz ouviu, o marechal leu, Herbert testemunhou o que sabia e o que sempre temera dizer. As terras foram devolvidas, o conluio aberto, as compras “em nome da igreja” contestadas. O consórcio tentou empatar; papéis fazem o que podem, mas há alturas em que a lama pesa mais do que tinta.
— Fica? — perguntou Sarah a Jake, à porta da cabana, meses depois, quando a poeira do tribunal assentou.
— Por um tempo — respondeu ele. — Para ter a certeza de que ninguém volta a confundir vocês com presa.
Martha olhou a pradaria. Elena apertou as tranças com um sorriso curto.
— Não somos as mulheres que te pediram para as salvar — disse Elena. — Nunca fomos. Só precisávamos de lembrar.
Jake assentiu.
— Lobas — disse, sem floreado. — Só tinham de morder outra vez.
Não houve romance apressado. Houve refeições simples, cercas reparadas, visitas do marechal, homens de gravata a serem mandados de volta para a estação com cartas oficiais. Houve noites de chuva em que Sarah dormiu, finalmente, sem acordar ao primeiro estalo da madeira. Houve um caderno onde Martha começou a escrever a história dos três — não como lenda, mas como registo: nomes, datas, recibos. Houve uma manhã em que Elena, do alto da colina, olhou o vale e disse em voz baixa, para ninguém em especial:
— Isto é nosso.
Jake selou o cavalo. Um dia, também ele haveria de partir; homens como ele pertencem mais à estrada do que ao alpendre. Antes de ir, deixou-lhes uma frase simples, a única que importava:
— Se alguém vier com livros e promessas, mostrem os vossos papéis e as vossas armas. A justiça gosta de companhia.
As três riram pouco, mas riram. A chuva tinha parado. O vento, por fim, soava a casa.