O tique-taque do relógio na parede da sala era a banda sonora da vida de Andrew Moore. Cada segundo, uma batida metódica contra o silêncio que se instalara há sete anos. Andrew, um homem de cabelo grisalho e gestos precisos, vivia numa prisão autoimposta de rotinas. 7:45 da manhã: o relógio de pulso era ajustado. O café, moído na mesma quantidade. A lista de tarefas diárias, escrita numa caligrafia meticulosa.

A rotina era o seu refúgio, a sua armadura contra o caos da dor. Há sete anos, a sua esposa, Eleonora, partira, levando consigo o ruído alegre que outrora preenchera aquela casa espaçosa. Agora, o único som, além do relógio, era o ranger previsível do soalho de madeira sob os seus passos medidos.
Na lista daquele dia, o primeiro item: “Consulta com Dr. Peterson, 9:00.” As visitas ao cardiologista tinham-se tornado mais frequentes. “É apenas preventivo”, dizia o médico, mas ambos sabiam que havia mais. A solidão, concluíra Andrew, também atacava o coração.
A clínica ficava a exatos 18 minutos de caminhada. Ele chegava sempre 12 minutos adiantado. Mas, nesse dia, o Dr. Peterson tinha um conselho diferente, menos clínico e mais humano. “Andrew, precisa de andar mais”, disse o médico, os olhos transmitindo uma preocupação que ia além dos exames. “E não apenas pelo coração. Pela mente também. O corpo precisa de movimento e a alma… a alma precisa de novos horizontes.”
Novos Horizontes e Velhas Memórias
Andrew Moore era um homem que seguia regras. Se o médico mandava andar, ele andava. As caminhadas tornaram-se parte da sua rotina nas semanas seguintes. Inicialmente, eram rotas calculadas, com início e fim predeterminados. Mas, gradualmente, algo começou a mudar. Andrew começou a notar detalhes que antes ignorava: o sorriso da florista da esquina, a construção de um novo estabelecimento onde antes funcionava a livraria que Eleonora tanto frequentava.
Numa manhã de sol tímido, ele parou. Observou a instalação da nova placa: “Skye’s Place”. O nome provocou-lhe um desconforto que ele não soube explicar, como o eco distante de uma melodia quase esquecida.
Durante dias, Andrew passou pelo local, observando as preparações. Viu móveis a entrar, paredes a serem pintadas. Uma curiosidade invulgar crescia dentro dele. Numa quinta-feira, viu que o restaurante estava finalmente aberto. O aroma de comida caseira escapava pela porta, envolvendo-o numa nostalgia que ele não conseguia identificar.
Olhou para o relógio. Faltavam 30 minutos para o seu almoço habitual, em casa. Um desvio na rotina seria impensável há uns meses. Mas algo — talvez o conselho do médico, talvez o nome peculiar — compeliu-o a entrar.
O interior do “Skye’s Place” era acolhedor. Mesas de madeira escura, iluminação suave e, ao fundo, um velho piano, silencioso.
“Posso ajudá-lo, senhor?” A voz doce interrompeu os seus pensamentos.
Andrew virou-se e encontrou o olhar gentil de uma jovem com um avental azul-celeste. O seu crachá dizia “Skye”. Havia algo no seu sorriso que despertou um estranho sentimento de reconhecimento em Andrew, como se tivesse visto aquele rosto num sonho antigo.
“Vim almoçar”, respondeu ele, surpreendido pela sua própria espontaneidade.
“Bem-vindo. É a sua primeira vez?”
Andrew acenou, estudando os traços da jovem. Havia algo familiar… “Espero que goste. O menu de hoje tem especialidades que a minha avó me ensinou”, disse ela, entregando-lhe o menu. “Recomendo o guisado de legumes com ervas. É reconfortante.”
A palavra “reconfortante” ecoou na mente de Andrew. O almoço foi tranquilo. A comida era, de facto, reconfortante, com sabores que evocavam memórias da infância. Quando terminou, pagou a conta e dirigiu-se à saída, sentindo uma estranha leveza.
A Música que Parou o Tempo
O sol da tarde tocou-lhe o rosto quando Andrew pisou o passeio. Foi então que ouviu.
No início, pensou ser imaginação. Mas a melodia era inconfundível, vinda de um carro estacionado a poucos metros. Aquela música. Andrew congelou. Cada nota transportou-o para um passado que ele tinha arquivado cuidadosamente num canto inacessível da sua memória.
Era a música que tocava na primeira vez que ele viu Eleonora, sim. Mas era também a música que marcava outro momento. Um segredo guardado entre as dobras do tempo.
Ele aproximou-se lentamente do veículo, um modelo antigo bem preservado. Lá dentro, uma mulher de cabelos prateados olhava atentamente para a entrada do restaurante. Quando os seus olhos se encontraram, o mundo pareceu suspender a sua rotação.
“Elizabeth.”
O rosto que o tempo transformara, mas que mantinha a mesma expressão serena e profunda que ele conhecera décadas atrás. Um arrepio percorreu-lhe o corpo quando ela abriu um sorriso de reconhecimento, e a voz no rádio do carro cantava, como se fosse dirigida especialmente a ele: “Estive à tua espera durante anos.”
O Passado Sentado à Mesa
“Andrew”, a voz dela saiu como um suspiro. “Não mudaste tanto quanto eu imaginava.”
Ele permaneceu imóvel, dividido entre o desejo de fugir de volta para a sua rotina segura e a necessidade de ficar. “Elizabeth. O que… o que estás a fazer aqui?”
“Talvez devêssemos falar num lugar mais calmo”, sugeriu ela, indicando o banco do passageiro. Entrar naquele carro significaria quebrar a ordem meticulosa da sua vida.
“Podemos voltar ao restaurante”, propôs ele, surpreendendo-se a si mesmo.
O regresso ao “Skye’s Place” foi recebido com um sorriso caloroso de Skye, que os sentou numa mesa discreta ao fundo, perto do piano. Andrew notou como Elizabeth observava a jovem com uma intensidade peculiar, quase maternal.
“Ela parece-se contigo”, comentou Andrew. “A Skye. Há algo nos olhos dela.”
Elizabeth sorriu, uma mistura de alegria e melancolia. “Ela é minha neta.”
A revelação caiu como uma pedra em águas paradas. Andrew tentou processar a informação, ligando os pontos de um quebra-cabeças que começava a tomar forma. “A tua neta… abriu um restaurante exatamente onde eu passo todos os dias?”
“Não é coincidência, Andrew. Nada disto é”, disse Elizabeth. “Eu ando à tua procura há muito tempo.”
“Porquê? Depois de tanto tempo?”
“Porque há histórias que precisam de um final adequado”, respondeu ela. “E a nossa nunca teve um.”
A Promessa Sob o Céu
Andrew fechou os olhos, permitindo-se lembrar. Elizabeth aos 20 anos, o cabelo escuro ao vento, a rir enquanto ele tentava explicar a teoria da relatividade na praia. O verão em que se conheceram, o último antes de ele ir para a universidade. As cartas que trocaram durante um ano, até que a distância e as circunstâncias da vida — ele conhecera Eleonora — os afastaram.
“Eu conheci a Eleonora na faculdade”, disse ele, como se precisasse de se justificar.
“Eu sei”, respondeu Elizabeth, suavemente. “Fiquei feliz por ti, Andrew. De verdade.”
“E tu?”
“Eu também me casei. O Richard era um bom homem. Tivemos uma filha, a Lily… a mãe da Skye.” Ela fez uma pausa. “Ele faleceu há 10 anos. Cancro.”
“Eu sinto muito”, murmurou Andrew. “Eleonora também… há 7 anos. Ataque cardíaco.”
Um silêncio respeitoso instalou-se. “Quando soube que estavas sozinho”, continuou Elizabeth, “comecei a pensar em ti. Se te lembravas…”
“… da promessa”, completou Andrew, surpreendendo-a. “Se um dia estivermos ambos livres, havemos de nos encontrar novamente.”
Elizabeth sorriu, os olhos a brilhar. “Tu lembraste-te.”
“Eu nunca me esqueci”, confessou ele. “Apenas aprendi a não pensar nisso.”
A conversa fluiu. E então, o nome do restaurante. “‘Skye’s Place'”, disse Andrew, de repente.
“‘O nosso lugar sob o céu'”, completou Elizabeth.
Andrew acenou, a emoção a apertar-lhe a garganta. Era a frase deles, criada naquele verão distante, quando prometeram que, independentemente de onde estivessem, teriam sempre um lugar especial, só deles, debaixo do mesmo céu (sky).
Elizabeth explicou como, depois de enviuvar, começou a escrever memórias e sentiu a necessidade de procurar respostas. Andrew era uma delas. Com a ajuda da neta, Skye, que dominava a tecnologia, conseguiu localizá-lo.
“A Skye tem estado a preparar este restaurante há meses”, disse Elizabeth. “Quando descobrimos que vivias tão perto e passavas nesta rua todos os dias… pareceu um sinal.”
Naquele momento, Skye aproximou-se com duas chávenas de chá que não tinham pedido. “Pensei que gostariam. É uma mistura especial, com lavanda e baunilha.”
Andrew provou o chá, e o sabor despertou uma memória quase apagada. “A tua mãe fazia este chá”, disse ele, chocado, olhando para Elizabeth.
“Naquela tarde chuvosa em que ficámos presos na varanda”, confirmou ela, comovida.
O piano no canto da sala começou a tocar. As primeiras notas eram impossivelmente familiares. A música deles.
“Eu pedi à Skye para organizar isto”, sussurrou Elizabeth. “Tinha esperança que viesses hoje.”
A melodia encheu o espaço. Andrew fechou os olhos. Quando os abriu, estendeu a mão sobre a mesa e encontrou a dela. O toque, simples, selou um entendimento mútuo. Não era um regresso ao passado. Era um reconhecimento de que o passado sempre fora parte deles.
“E agora?”, perguntou ele.
Elizabeth sorriu, os olhos brilhando com possibilidades. “Agora, escrevemos um novo capítulo. Juntos, ou separados, mas cientes um do outro. Sem arrependimentos. Apenas gratidão pelo tempo que temos.”
Andrew sentiu uma paz que não experimentava há sete anos. Não era o conforto da rotina; era algo mais profundo. Era como voltar a casa, descobrindo que o lar sempre estivera dentro dele, à espera de ser redescoberto.
“Eu gosto dessa ideia”, disse ele, finalmente. “Um novo capítulo.”