O vento de outono cortava a rua principal de Cedar Ridge, Texas, como lâmina seca. Poeira subia em redemoinhos miúdos, picando os olhos de quem ousasse ficar do lado de fora tempo demais. As fachadas de madeira gemiam na aragem, as tábuas desbotadas por anos de sobrevivência. Nos degraus do armazém de Miller, Mary Whitfield apertou o xale em torno de si e da filha. Clara, com sete anos, encostou-se ao seu lado. Estremeceu, apesar da lã.
— Mamãe, estou com fome — sussurrou Clara.
O som quebrou o peito de Mary. Os grandes olhos azuis da menina, tão parecidos com os do pai morto, ergueram-se cheios de confiança. Mary alisou o cabelo loiro embaraçado e fez a voz sair calma.
— Eu sei, meu amor. Só mais um pouco.
A verdade, porém, pesava como pedra. As poucas moedas tinham acabado no dia anterior. Havia três dias ela pedia trabalho: costura, comida, lavagem. Cedar Ridge era pequena, e cada casa tinha seus próprios apertos. As portas se fecharam primeiro com delicadeza; depois, firmes.
O som de passos de bota ecoou na varanda. Mary ergueu o queixo, trazendo Clara para mais perto. Um homem alto aproximava-se, o chapéu de aba larga sombreando um rosto curtido. Os ombros enchiam o casaco; os esporões tilintavam a cada passo. Ethan Cole vinha à cidade a cada duas semanas para suprimentos. Costumava passar sem mais que um aceno, mas naquele dia seus olhos se prenderam na mulher jovem e na criança encolhidas na sombra. Desespero não era raro no Texas, e, ainda assim, havia algo na forma como aquela mulher mantinha a cabeça erguida, mesmo tremendo de fome e cansaço.
— Senhora — disse Ethan, tocando a aba do chapéu.
— Senhor — respondeu Mary, tensa.
Ele as estudou em silêncio: a mulher tinha talvez vinte e cinco anos; cabelo escuro preso num coque simples; vestido gasto de tantas milhas. A menina parecia pior: bochechas cavadas, tecido fino, mãozinhas fechadas para segurar calor.
— São novas em Cedar Ridge?
— Sim, senhor. Chegamos na segunda-feira. Estou procurando trabalho.
— Trabalho é coisa escassa para mulher sozinha.
— Não tenho medo de trabalhar — devolveu Mary, firme.
Ethan mudou o peso no calcanhar, como quem decide por dentro.
— Ethan Cole. Toco o Rancho Double C, cinco milhas ao norte.
O coração de Mary bateu mais forte, parecido com esperança. Ethan tirou o chapéu, passou a mão pelo cabelo escuro.
— Sou viúvo. Perdi minha esposa há dois anos. Tenho uma filha, Sarah, de nove. Preciso de ajuda para criá-la e para a casa.
Os olhos cinzentos dele se fixaram nos dela. A voz saiu simples como a terra sob os pés:
— Sua filha precisa de um lar. Minha cama precisa de uma esposa.
Mary congelou. O rosto esquentou; o braço apertou Clara. Os que passavam diminuíram o passo, farejando fofoca.
— Como se atreve? — sussurrou.
— Me escute — disse Ethan, erguendo a palma. — Não sou nenhum salafrário. Falo de casamento de verdade, perante a lei. Um lar para vocês duas e uma esposa para mim. Aqui é comum: noivas por correspondência, arranjos. Só estou pondo claro.
Mary tornou a sentar; as pernas falharam.
— Está me propondo casamento sem me conhecer.
— Estranhos deixam de ser estranhos quando a vida depende disso. Tenho trezentos acres, gado, uma casa cujo telhado não pinga. Não é riqueza, mas é seguro. Sua menina teria comida e escola. Você teria um lugar. E eu, uma parceira.
Clara ergueu o rosto, olhos redondos.
— De verdade o senhor tem uma casa?
A dureza no semblante de Ethan amaciou.
— Tenho, pequena. Com uma cozinha grande e uma lareira mais alta que sua mãe.
O estômago de Mary doeu. Clara não comia havia dois dias e o frio chegava. Pensou no Colorado, nos homens a quem o marido falecido devia dinheiro, talvez ainda à procura delas. Voltar não era opção. Não havia mais para onde ir.
— Preciso pensar — murmurou.
— Justo — disse Ethan. Pegou algumas moedas e pôs na mão dela. Mary tentou devolver, mas ele manteve a palma firme. — Comprem um prato no Murphy’s. Vou carregar suprimentos por uma hora. Se quiser, levo vocês para ver o rancho. Sem promessa, sem truque. Só para conhecer.
Virou-se e foi embora, deixando Mary olhando a prata que brilhava na sua mão.
Naquela tarde, depois de caldo quente e pão que finalmente encheram a barriga de Clara, Mary subiu na carroça de Ethan Cole. A menina se aninhou no seu flanco, tagarelando sobre a lareira, sobre gatinhos e celeiros.
— Não precisa decidir hoje — disse Ethan, tomando as rédeas. — Conheça Sarah. Veja o lugar. Se não for para vocês, eu as trago de volta. Sem perguntas.
Mary assentiu. O sol afundava, derramando ouro e sombra sobre a pradaria. Mirou o homem ao lado: não era bonito no jeito polido da cidade, mas tinha a firmeza de uma serra distante.
— Por que oferecer isso a nós? — perguntou.
— Porque sei o que é estar sozinho. E porque minha menina anda solta demais sem uma mão de mulher. — A voz baixou, raspada. — E talvez… talvez eu esteja cansado de conversar com gado ao vento.
Pela primeira vez em meses, Mary quase sorriu.
A carroça subiu uma elevação. Ethan apontou:
— Ali é o Double C.
A respiração de Mary suspendeu. Uma casa sólida de dois andares se recortava no céu, fumaça saindo da chaminé. Não era luxuosa, mas era firme — casa onde raízes poderiam crescer. No peito, algo relaxou pela primeira vez desde a fuga.
— É nossa casa agora, mamãe? — sussurrou Clara.
Mary apenas a abraçou, dividida entre o medo e a esperança.
Pararam em frente. A porta se abriu e uma menina de tranças escuras correu para fora. Era alta para nove anos, corpo plantado na terra, os mesmos olhos cinzentos do pai.
— Papai, quem são? — perguntou Sarah, curiosa.
Ethan desceu e, com cuidado inesperado, ergueu Clara da carroça.
— Sarah, esta é a Sra. Whitfield e a filha dela, Clara. Vão ficar como nossas convidadas.
Sarah avaliou, sem timidez.
— É a nova arrumadeira?
— Sarah — advertiu Ethan, sério.
A menina deu de ombros e voltou-se para Clara.
— Quantos anos?
— Sete.
— Tenho nove. Sabe montar?
Clara negou com a cabeça.
— Aqui você vai aprender. Papai diz que toda menina deve cavalgar como se a terra fosse dela.
Entraram. A casa era como Ethan prometera: paredes firmes, lar amplo, cozinha cheirando a café e lenha. Simples, limpa, poucos enfeites. Num aparador, a fotografia de uma mulher de olhar doce — Margaret, a falecida esposa.
Ethan se atrapalhou no fogão.
— Café para a senhora? Leite para as meninas?
— Café serve — disse Mary, sentando-se. Clara se soltava devagar enquanto Sarah mostrava um cavalinho entalhado. Risos leves passaram a ocupar a cozinha.
Por fim, Ethan pigarreou e pousou a caneca diante dela.
— Acho que devo me explicar melhor do que em cidade — começou. — Margaret morreu de febre. Perdemos o segundo filho no mesmo dia. Desde então vou levando, mas Sarah precisa de mais que um pai que mal sabe trançar cabelo. E o rancho precisa tanto de um toque de mulher quanto eu.
— Sr. Cole, sua proposta foi grosseira — disse Mary.
— Eu sei — respondeu Ethan, assentindo. — Não rodeio palavras. O que quis dizer é simples: preciso de parceira, de esposa, e ofereço a você e à sua filha meu nome, minha casa e minha proteção.
As palavras ficaram no ar quente, simples como o crepitar do fogo. As mãos de Mary tremeram na caneca.
— O senhor nem nos conhece.
— Sei o suficiente. — Os olhos dele estavam firmes. — Você tem orgulho, mas não demais para trabalhar. Sua filha confia em você, o que me diz que mãe é. Vi as portas se fechando para as duas, não por falta de tentativa. Você é forte, Sra. Whitfield. Mais do que muita gente. É esse tipo de mulher que preciso ao meu lado.
A garganta de Mary apertou. Homem nenhum lhe falara assim. Pensou nos ombros magros de Clara, nas dívidas deixadas no Colorado, nas noites de fome se dissesse não.
— Por que nós? — sussurrou.
Ethan olhou para Sarah, que agora fazia o cavalo “trocar de marcha” sobre a mesa com Clara.
— Porque quando vi você ali, queixo erguido com nada nas mãos, vi o espírito de Margaret. E porque um homem sabe quando a chance certa cruza o caminho. Não vou deixar passar.
— Fiquem esta noite — acrescentou mais baixo. — Amanhã veem o rancho, conhecem os peões. Se não servir, eu as levo de volta. Se servir… conversamos em fazer desta casa o seu lar.
Mary olhou para Clara, que sorria pela primeira vez em semanas. Algo dentro dela cedeu, frágil e certo.
— Uma noite — disse. — Vemos o amanhã.
Ethan relaxou um fio no maxilar.
— Combinado.
A madrugada trouxe galos, mugidos e o trilhar de cascos. Mary acordou antes de Clara, espiou pela janela do quarto de hóspedes. A terra se estendia sem fim, cor-de-rosa na aurora. Assustava pela vastidão, confortava pela firmeza.
— O café está na mesa! — gritou Sarah do corredor. — Papai disse para vir com fome!
Na cozinha, bacon e biscoitos. Ethan movia-se com eficiência de quem aprendeu a fazer tudo sozinho. As meninas conversavam como velhas amigas. Mary tentava manter a cautela, mas o peso de pertencer começava a puxá-la para o chão daquela casa.
Depois do café, Ethan a guiou pelo rancho: celeiro, fumeiro, galinheiro. Seis homens trabalhavam com ele; cumprimentaram Mary com respeito quando Ethan a apresentou como convidada. Ela notou os olhares que lançavam a Ethan: confiança, lealdade. Ali, liderança não vinha de charme, e sim de constância.
Ao meio-dia, Mary ajoelhou no horto esquecido e deixou a terra escura escorrer pelos dedos.
— Isso aqui volta a dar — murmurou.
— É seu, se ficar — disse Ethan, ao lado.
Os olhos cinzentos dele eram sérios, sem pressão. Mary sentiu o peso da escolha: segurança para Clara, parceria para si, um futuro sólido — se não certo.
Não pôde responder. O troar de cavalos cortou o pátio. Ethan enrijeceu. Três cavaleiros se aproximaram, rostos duros, olhos mais frios ainda. O líder desmontou: magro, sorriso cruel.
— Procuramos uma mulher. Mary Whitfield. Disseram que foi vista aqui.
O sangue de Mary gelou. Clara prendeu sua mão. Ethan deu um passo à frente, rifle ao braço, voz calma.
— Esta é a minha propriedade. E a mulher que está aqui é minha noiva. Qualquer assunto que pensavam ter com ela terminou.
— Dívida não morre com marido, Cole — cuspiu o homem. — Jake Morrison. Não esqueça o que é devido.
— Então trate comigo — respondeu Ethan, mandíbula de pedra. — Digo sem rodeio: esta mulher e sua menina estão sob minha proteção. Quem tentar levá-la, encontra o Double C inteiro pelo caminho.
Os peões surgiram do alojamento, rifles prontos. O ar ficou elétrico. Os homens rangeram dentes, cuspiram no pó e montaram novamente.
— Voltaremos. E quando voltarmos, queremos prova desse casamento.
— Terão — disse Ethan, claro como sino.
Eles partiram, deixando um silêncio pesado. Mary tremia. Ethan virou-se, olhos firmes.
— Sinto muito. Sei que prometi tempo para decidir. Mas eles voltarão. A única maneira de manter você e Clara a salvo é tornar oficial.
Não era a escolha romântica que Mary imaginara um dia. Mas o homem à sua frente havia traçado uma linha e ficado do lado dela sem hesitar. Clara puxou sua manga.
— Mamãe… podemos ficar?
Mary encarou a filha, depois Ethan — sólido, constante, inabalável. Pela primeira vez desde a morte do marido, sentiu o chão firmar.
— Está bem — disse quase num sopro. — Casaremos.
Um alívio breve passou pelo rosto de Ethan; ele manteve a compostura.
— Amanhã vamos à cidade falar com o pastor.
Mary soltou o ar. Não era a história de amor que as moças sonham. Não havia promessas açucaradas, mas havia lareira acesa, terra fértil, mãos estendidas quando ninguém mais estendia. Enquanto Clara entrelaçava os dedos aos de Sarah, e Ethan Cole se punha como muralha contra a tempestade do passado, Mary Whitfield entendeu algo que nunca ousara crer: neste oeste áspero, o amor mais forte talvez não nasça de enfeites, mas de escolha. Como o Double C: resistente, gasto, porém inabalável — um amor construído a martelo e fé, para durar o que for preciso.