Fletcher Knox herdou muitas coisas de seu tio Marcus. Herdou dívidas, frustrações e um rancho esquecido que não via vida havia mais de dois anos. Mas o que ele nunca esperava herdar era o segredo de outra pessoa.
Na cozinha abandonada do rancho, uma mulher se encontrava diante dele. O vestido que um dia fora branco estava rasgado e encardido. O cabelo escuro, embaraçado de poeira e sangue seco. O que mais perturbava Fletcher não era sua aparência, mas a faca enferrujada que ela segurava com firmeza. Não parecia defesa. Era decisão.
— Você vai deitar comigo.
A voz da mulher era firme, ainda que suas mãos tremessem. Fletcher deixou a bolsa de montaria cair. O som ecoou como tiro nas paredes ocas. Mas a mulher, de pé no assoalho gasto, não se moveu. Apenas o encarava, esperando uma resposta, como quem já perdeu tudo e não teme mais nada.
Atrás dela, Fletcher viu sinais de que ela vivia ali. Um canto improvisado como cama, latas vazias cuidadosamente empilhadas e riscos na parede que formavam um calendário. Todos na cidade confirmaram que o rancho estava vazio quando Marcus morrera. Então, quanto tempo ela estava ali?
— Moça, acho que houve um engano.
Os olhos dela faiscaram quando apertou a faca.
— Não há engano. Você chegou, e isso significa que eles logo estarão aqui. Quando vierem, vão querer saber por que você me manteve viva. Ou fazemos do meu jeito, ou os dois morremos.
O assoalho rangeu sob as botas de Fletcher quando ele recuou. Mas a mulher, precisa como predadora, o acompanhou. Aquilo não era loucura. Era cálculo. Era ensaio. Talvez repetido com outros infelizes que não sobreviveram para contar.
— Quem está vindo? — perguntou Fletcher.
A incerteza finalmente cruzou o rosto dela. Olhou a janela. O sol descia, alongando sombras pelo curral vazio.
— Você realmente não sabe, não é? Então por que veio?
Fletcher tirou do bolso os papéis da herança. O título de posse do rancho. Mas, ao desdobrá-los, ficou pálido. A data estava errada. Pior: era impossível. O documento dizia que Marcus assinara a transferência seis meses depois de morrer.
A mulher percebeu a mudança em sua expressão. Um sorriso frio surgiu em seus lábios.
— Agora você entende. Seu tio não deixou apenas um rancho. Deixou um problema que apodreceu estas paredes.
Ela sabia seu nome. Estava esperando por ele. E ao longe, Fletcher jurou ouvir cascos de cavalos se aproximando.
A mulher moveu-se com rapidez. Pegou uma sacola de couro debaixo da cama improvisada e enfiou latas dentro dela. Cada gesto, preciso.
— Quantos vêm? — arriscou Fletcher.
— Não vá à janela — cortou ela. — Se virem sua sombra, queimam a casa conosco dentro.
O som dos cascos estava próximo. Fletcher calculou pelo menos três cavalos, talvez mais.
— Quem são?
Ela deslizou os dedos por um painel da parede e abriu um espaço estreito.
— Homens que acham que podem tomar tudo. Inclusive a mim.
O esconderijo mal comportava uma pessoa. Ainda assim, ela fez sinal para Fletcher entrar. Cada instinto dele gritava para montar seu cavalo e partir. Mas, contra todo senso, enfiou-se atrás dela, o corpo colado ao dela no espaço sufocante. A madeira se fechou. Escuridão.
Pelas fendas, Fletcher viu quando os homens entraram. A porta explodiu em estilhaços. Uma voz estrangeira, talvez alemã, comandava a busca.
— Procurem cada canto. Ela esteve aqui.
A mulher, cuja voz agora se revelava como Tabitha Cross, segurou o braço de Fletcher.
— Se nos acharem, diga que nunca me viu.
Um dos capangas chamou de cima:
— Chefe! Bolsas novas na porta.
Fletcher fechou os olhos. Tinha deixado sua bagagem quando Tabitha fizera aquela proposta brutal.
— Alguém novo está aqui — disse o estrangeiro. — Tragam a sacola dela do quarto.
Momentos depois, voltou carregando cartas amarradas com fita. Leu o nome:
— Catherine Cross. Então é esse o nome que usa agora.
O sangue de Tabitha gelou.
— Não queimem o lugar — ordenou o estrangeiro. — Ela voltará por isso. Esperaremos.
Fletcher suspirava de alívio quando o azar o traiu. O esporão de sua bota arranhou a madeira. Pequeno ruído, mas suficiente.
— Alguém está aqui.
O homem testou o painel com a mão. A madeira gemeu.
— Vou contar até três. Se não saírem, atiro.
Tabitha, sem pensar, abriu um vão acima. Poeira caiu sobre eles. Havia uma saída para o teto.
— Um…
Ela escalou com agilidade. Fletcher seguiu, o coração disparado.
— Três!
O tiro estourou, despedaçando a madeira onde estiveram segundos antes.
No telhado, Tabitha correu até a beira.
— O barril d’água, atrás do celeiro!
E saltou. Acertou em cheio. Fletcher a seguiu, raspou a borda e caiu na lama, com o ombro ardendo. Mas vivo.
Eles correram ao córrego. Tiros explodiram atrás. Mergulharam na água, deixando que a corrente apagasse rastros.
— As cartas… — arfou Fletcher. — Catherine Cross… é você.
Tabitha o fitou.
— Catherine morreu há três anos. Tabitha só tenta continuar morta.
— O que havia nas cartas?
— Provas. O suficiente para destruir Weiss e mais do que apenas a mim.
O nome caiu como pedra. Hinrich Weiss. O mesmo homem de voz dura, dono das cicatrizes nos punhos.
— Ele matou seu tio — disse Tabitha, a voz embargada. — Não foi febre. Ele fez questão de me fazer assistir.
Fletcher sentiu o mundo ruir. Marcus, honesto até o último centavo, torturado.
— Eu era testemunha. Registrava os carregamentos de armas que Weiss vendia para ambos os lados. Marcus queria entregar aos federais. E morreu por isso.
Cães latiam ao longe. O tempo se esgotava. Fletcher tomou uma decisão.
— Então vamos recuperar essas cartas.
Tabitha arregalou os olhos.
— Isso é loucura.
— Mais loucura é deixar o assassino do meu tio livre.
Eles subiram pela estrada de mineração e avistaram o acampamento nas ruínas de uma estação. Weiss lia as cartas ao lado do fogo. Fletcher e Tabitha traçaram um plano.
Ela fez barulho à direita. Ele se lançou pela esquerda. Mergulhou sobre a pedra, espalhando cartas, enfiando-as na camisa. Weiss foi rápido. O revólver já estava em sua mão.
— Marcus Knox era um tolo — disse o alemão. — E você também é.
Um tiro ecoou. Mas não de Weiss. Tabitha surgira, o revólver fumegante. Weiss tombou morto, o sangue manchando as provas.
Fletcher juntou os papéis. Encontraram ainda mapas, nomes de contatos, cartas de um tal “General” que articulava rebelião em três territórios.
— É maior do que pensávamos — disse Fletcher.
— Era — corrigiu Tabitha.
Três semanas depois, Fletcher observava Tabitha no quintal, pendurando roupas limpas. O Marechal Carson viera com agentes federais, prenderam cúmplices e revelaram toda a rede.
Fletcher pensou no tio, na justiça feita e na mulher que começara como ameaça e se tornara sua parceira. Tabitha sorriu, livre pela primeira vez.
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— Sem arrependimentos?
Fletcher apertou sua mão.
— Nenhum.