Riram dela, achando que era só mais uma sem-abrigo – Até descobrirem que ela era a lendária pianista que todos esqueceram!

Podia eu tocar para conseguir comida? Riram-se da mulher sem-abrigo, sem saber que ela era uma lenda do piano. Os candeeiros brilhavam como estrelas capturadas, espalhando a sua luz dourada pelo salão. Risos cristalinos e o tilintar de copos misturavam-se com o suave murmúrio dos violinos.

Era o tipo de noite que pertencia aos ricos, aos refinados, aos intocáveis. Todos usavam vestidos e smokings feitos com precisão, as suas jóias captando a luz, anunciando o seu valor antes de uma palavra sequer sair dos lábios. Mas, na extremidade distante da sala, perto das portas duplas, onde a segurança normalmente mantinha os não convidados afastados, uma figura destacava-se. Uma mulher frágil. O seu casaco, remendado nos cotovelos, estava desbotado na cor da poeira. Avançava com passos incertos. O seu cabelo era grisalho e despenteado, um contraste selvagem com os cachos polidos dos convidados. Os seus sapatos estavam gastos, solas finas pelo desgaste de anos a percorrer ruas que ninguém queria lembrar.

Alguns convidados ficaram boquiabertos, outros esboçaram um sorriso irónico. Alguns tiraram os telemóveis para capturar a estranheza da intrusão. Uma mulher sem-abrigo a tropeçar num palácio de riqueza. Ela era uma sombra de desespero num mar de opulência, e a sua mera presença ameaçava a perfeição que a multidão tinha construído.

— Segurança! — alguém sibilou.

Os seguranças hesitaram. Talvez por piedade, talvez por curiosidade. Antes que pudessem agir, a mulher levantou as mãos trémulas em direção ao grande piano, reluzente sob o candeeiro.

Os seus lábios rachados formaram palavras quase inaudíveis:

— Posso… posso tocar para conseguir comida?

O riso surgiu imediatamente, cruel, depreciativo, cortante como vidro partido. Alguns riram-se por acharem absurdo. Como poderia uma pedinte imaginar tocar num instrumento reservado para a virtuosa contratada da noite? Outros riram-se porque isso os fazia sentir superiores, seguros no seu luxo, enquanto ela expunha a sua fome de forma tão evidente.

A pianista contratada para a noite, uma jovem num vestido de bronze cintilante, parou a meio da execução. Os seus dedos perfeitamente manicurados pairaram sobre as teclas. Os seus olhos, largos com uma mistura de descrença e irritação, voltaram-se para a velha mulher. O sorriso da pianista regressou, mas desta vez com uma pitada de escárnio.

— Oh, querida — disse, alto o suficiente para os mais próximos ouvirem — isto não é uma estação de metro. Este é o Grande Salão. Aqui não se passa o chapéu.

A multidão irrompeu novamente. Telefones erguidos. Alguém murmurou:

— Isto vai ser viral esta noite. Esperem até a internet ver esta velha louca.

A mulher sem-abrigo estremeceu, mas não recuou. Deu um passo em frente, o seu casaco remendado roçando o chão polido. Os seus olhos, cansados e fundos, mas com um eco de fogo, fixaram o piano. Não olhou para a audiência nem para a pianista zombeteira. Apenas olhou para o instrumento como se as teclas de marfim a tivessem chamado através da cidade, através dos anos.

— Só uma música. Por favor. Uma vez mais, por comida.

As palavras pairaram no ar, engolidas pelos murmúrios e risos. Alguém da multidão imitou o seu tom, zombando. Outro sussurrou:

— Vai arruinar a noite.

Mas houve também uma mudança. Alguns convidados mais velhos, daqueles que ainda se lembravam dos nomes de maestros há muito desaparecidos, franziram ligeiramente o sobrolho, a curiosidade a puxar as suas expressões. Algo na postura da mulher não parecia loucura. Havia uma estranha dignidade, como se por baixo das trapos tivesse existido outra vida. Mas ninguém o disse em voz alta.

A pianista voltou-se para a multidão, deixando os dedos cair levemente sobre as teclas.

— Continuamos? — perguntou, ignorando a intrusa. Os violinos seguiram o seu exemplo.

O momento deveria ter terminado ali, mas não terminou. A velha mulher aproximou-se, os sapatos a ranger suavemente contra o chão. Os guardas moveram-se para a bloquear, mas ela ergueu uma mão, frágil, trémula, mas com autoridade própria. A outra mão alcançou o bolso do casaco e retirou algo pequeno, dobrado, quase invisível. Segurou-o junto ao peito por um instante, como se protegesse uma memória. Depois, com coragem súbita, falou. Não para a pianista, não para a multidão, mas para o piano:

— Toquei-lhe uma vez quando era jovem, quando os salões ainda conheciam o meu nome.

O riso vacilou, não todo, mas o suficiente. Alguns convidados trocaram olhares perplexos. A mão da pianista ficou rígida, a sua confiança momentaneamente abalada. A voz da mulher, trémula com a idade, mas carregada de ritmo e verdade, ressoou:

— Chamavam-me Clara Divine.

O nome percorreu a multidão como uma brisa a agitar cortinas esquecidas. Para a maioria significava nada, mas entre os mais velhos, aqueles que haviam enchido salas de concerto décadas atrás, houve um murmúrio. Um homem de cabelo prateado sussurrou à esposa:

— Clara Divine, a prodígio do piano, desapareceu em 1989.

Olhos arregalados, dúvidas a surgir. Poderia esta mulher frágil, esta mendiga de casaco remendado e cabelo grisalho, ser realmente Clara Divine, cujos dedos faziam os Steinways cantar?

A mão de Clara, fina e calejada, estendeu-se novamente em direção ao piano.

— Uma música, por comida.

O silêncio caiu. A pianista no banco riu nervosamente, quebrando o feitiço: impossível, delirante. Diziam que Clara Divine tinha morrido há anos. Mas ninguém a moveu. Ninguém a arrastou. Pela primeira vez, todos na sala se inclinaram, não para zombar, mas para ver. Os joelhos de Clara tremiam, o corpo frágil de fome, mas os olhos carregavam uma tempestade de espírito inquebrável. Ela estava diante do limiar da humilhação e da revelação, com o peso de décadas nos ombros.

E naquele momento, enquanto os candeeiros brilhavam mais e o riso cedia lugar aos murmúrios, ela enfrentava a escolha que definiria a sua vida mais uma vez: afastar-se em silêncio ou deixar que o piano falasse por si.

O silêncio no salão era pesado, do tipo que arrepia a pele. Os candeeiros cintilavam acima, os cristais balançando suavemente como se até eles prendessem a respiração. Clara Divine estava diante do piano negro polido, a sua figura frágil delineada pelo brilho refletido. O riso tinha desaparecido, substituído por inquietação, curiosidade e uma pergunta coletiva que ninguém ousava formular: e se ela realmente fosse quem dizia ser?

Quando finalmente os seus dedos tocaram o marfim, não houve hesitação, apenas certeza. A primeira nota soou clara, nítida, cheia de autoridade. A segunda seguiu-se, mais suave, mas deliberada. Em segundos, a sala que momentos antes a tinha ridicularizado estava cativa. As mãos moveram-se com precisão impossível de falsificar. Décadas de ausência não tinham roubado a sua técnica. O sofrimento, pelo contrário, havia gravado emoção em cada frase. Cada acorde soava como a libertação de correntes de verdade. Cada melodia sussurrava dores suportadas, noites solitárias nas ruas frias, lembrando quem ela fora.

O público ficou estupefato. Telefones que antes levantaram para zombar, agora filmavam com reverência. A pianista de bronze baixou a cabeça, percebendo que fora destronada sem uma palavra. Os guardas recuaram, humildes.

Clara entregou-se à peça. Não era apenas uma performance, era uma confissão, uma autobiografia contada em som. Os dedos tremiam, depois firmaram-se, tecendo notas que subiam como pássaros libertos. Ecos das suas antigas composições, há muito consideradas perdidas, reinterpretadas com a dor e sabedoria de uma vida vivida. Um velho na primeira fila colocou as mãos no rosto.

— É ela — sussurrou, com lágrimas a acumular. — Só Clara Divine podia tocar assim.

A multidão mudou, aplaudindo primeiro timidamente, depois de forma crescente, imparável, não com palmas educadas, mas com uma ovação bruta e estrondosa. Alguns levantaram-se sem perceber, outros choraram abertamente, o peso da música penetrando as cascas de riqueza que tinham construído. E Clara tocava.

Minutos depois, o último acorde caiu no silêncio, as mãos paradas nas teclas, o peito a arfar de exaustão. Por um instante ninguém respirou. Depois, o salão irrompeu em aplausos. Pessoas avançaram, desesperadas por confirmar o que acabavam de testemunhar. Gritaram o seu nome, como se ressuscitassem uma lenda. Mas Clara não se deleitou. Olhou para a multidão, olhos molhados, voz firme:

— Pedi apenas comida.

As palavras cortaram mais fundo que a música. Numa sala que valia milhões, a fome tornou-se o grande equalizador. A vergonha refletiu-se nos rostos. A crueldade do riso voltou-lhes como um espelho. A pianista de bronze afastou-se, incapaz de a encarar. Uma mulher de pérolas baixou o telemóvel, as faces coradas de culpa. Até os que aplaudiram lutaram para reconciliar a admiração com a anterior desdém.

Um homem alto, de ombros largos e smoking preto, avançou, a voz a sobressair:

— És Clara Divine. Vi-te tocar em Viena quando era rapaz, e esta noite… desta noite, deste-nos mais do que música.

Alcançou o bolso, tirando um talão de cheques, rabiscando números com mãos trémulas:

— Mereces muito mais do que comida.

Outros seguiram, dinheiro, jóias, ofertas de ajuda acumuladas junto ao banco do piano. Clara olhou para tudo, impassível:

— Não vim aqui por riqueza — murmurou. — Vim porque tinha fome. Porque me lembrei do que é estar viva.

Os candeeiros brilhavam mais, refletindo lágrimas, vergonha e admiração numa multidão transformada. E Clara, a virtuosa esquecida, permaneceu silenciosa, sabendo que o verdadeiro teste não era se se lembrariam do seu nome, mas se se lembrariam da sua humanidade depois que ela partisse.

Related Posts

Our Privacy policy

https://abc24times.com - © 2025 News