A mulher parada no portão de Virgil Granger não era a noiva que ele esperava. Trazia nas mãos calejadas um contrato de casamento com selo oficial ainda intacto, mas seus olhos carregavam segredos que uma simples “noiva por correspondência” não deveria conhecer. O bilhete que Virgil aguardara por semanas estava amassado no chão, como promessa esquecida.
Virgil havia construído toda a sua rotina solitária em torno da chegada de uma estranha que se tornaria sua esposa. Mas aquela mulher sabia seu nome antes mesmo de ele pronunciar, conhecia cada cerca e cada detalhe da propriedade sem qualquer instrução e se movia com a confiança de quem pertencia mais àquele lugar do que o próprio dono.
Quando disse chamar-se Calabel, algo profundo agitou-se dentro dele, como lembranças enterradas ressurgindo em água turva. O contrato parecia autêntico, mas o tempo havia passado sobre a tinta. Mais do que o incômodo de sua presença, era o modo como ela o olhava: como se estivesse diante de um fantasma.
— Irmã? — repetiu Virgil, a palavra áspera na boca. — Meu pai nunca falou de filhas. Sempre disse que a família estava morta.
— Thomas Granger contou muitas mentiras — respondeu ela, sem emoção. — Disse mentiras para você, como disse para mim. Este contrato deveria trazer Elizabeth Morrison até o seu rancho. Mas Elizabeth morreu de febre, seis meses atrás, no leste. O corretor foi pago para esconder isso.
O chão pareceu vacilar sob as botas de Virgil. Ele recebera cartas no mês anterior, cartas que enchiam suas noites solitárias de esperança.
— Cartas que eu escrevi — disse Calabel. — Precisava conhecer quem você era e o que havia neste lugar.
O golpe não foi apenas o engano, mas a revelação de que a chegada dela significava algo muito mais perigoso. Segundo Calabel, a questão não era por que ela viera fingindo ser noiva, mas quem teria interesse em garantir que Elizabeth nunca chegasse viva àquele rancho.
Na linha do horizonte, a poeira levantada por cavalos anunciou novos visitantes. Eram seis, talvez mais. Calabel lançou um olhar frio ao ver a mão de Virgil instintivamente procurar o revólver.
— Vai sacar contra a própria irmã? — provocou, rindo. — Thomas ficaria orgulhoso.
— Não me lembro de você — disse Virgil. — Nunca tive família além dele.
— Você tinha sete anos quando nos separaram — respondeu Calabel, tirando uma fotografia antiga do bolso. Duas crianças estavam lado a lado junto a uma cerca. A mão do menino repousava sobre o ombro da menina. — Thomas levou você para o oeste. Eu fui deixada com parentes que me rejeitaram.
Virgil tentou resistir, mas a descrição dela rompeu suas defesas: a cicatriz em seu ombro esquerdo, resultado da queda no curral; o sonambulismo que o fazia dormir no celeiro. Segredos que ninguém mais poderia saber.
Os cavaleiros chegaram em formação precisa. O líder, de ombros largos e cabelos prateados, desmontou com a calma de quem domina pela intimidação.
— Virgil Granger — anunciou ele, sorrindo com falsa cordialidade. — Meu nome é Crawford. Represento interesses que têm direito legítimo sobre esta terra.
Calabel deu um passo calculado atrás de Virgil, mas sua postura era estratégica, não de medo.
— Fale a ele sobre a escritura, Crawford — disse ela.
O homem estreitou os olhos.
— Senhorita Bell. Não esperava vê-la tão cedo.
Virgil entendeu de imediato: a chegada dela fazia parte de algo muito maior.
— Seu direito morreu com Thomas Granger — continuou Crawford. — E há dúvidas se você é de fato herdeiro legítimo.
— Papéis podem ser contestados — sorriu ele, com malícia. — Principalmente quando se descobre que Thomas tinha outros filhos de sangue, não apenas um enjeitado.
A palavra golpeou Virgil como um soco. Todo o seu passado tremeu. Calabel apertou seu braço, misturando alerta e consolo.
— Eles planejaram isso por meses — explicou ela. — O contrato, a morte de Elizabeth, a minha chegada. Eu seria a peça usada para derrubar sua posse. Mas entendi o jogo antes de jogá-lo.
Crawford ergueu a mão em direção ao coldre. Calabel foi mais rápida. O disparo de seu pequeno derringer arrancou o chapéu dele, deixando sangue no couro cabeludo.
— O próximo não erra — avisou. — Mas antes de morrerem hoje, talvez queiram ouvir o que encontrei no cartório.
O silêncio ficou denso.
— Thomas nunca adotou Virgil legalmente — disse ela. — Mas deixou um testamento verdadeiro. Nele, a herança está dividida entre nós dois.
Crawford empalideceu. A surpresa dele foi interrompida pelo som de cascos vindos do lado oposto. Três marechais federais entraram no pátio, estrelas brilhando no peito.
— Armas no chão! — ordenou o líder.
Em minutos, os homens de Crawford estavam desarmados. Calabel entregou um estojo de couro com escrituras e transferências forjadas. E acusou Crawford de espalhar febre contaminando poços para forçar vendas de terras.
O bandido tentou avançar, mas Virgil o derrubou com um soco poderoso.
— Isso é pelo que fez com Elizabeth Morrison — disse, baixo.
Algemado, Crawford confessou: a febre deveria apenas atrasar a viagem de Elizabeth, não matá-la. As palavras caíram pesadas. Calabel endureceu o rosto. Ela nunca planejara aquela morte.
Com Crawford levado, restaram Virgil e Calabel diante da casa. O marechal Hayes voltou pouco depois com uma notícia ainda mais sombria:
— Isso vai além. Políticos e comissários de terras estão envolvidos. Crawford era apenas uma peça. Vocês se tornaram alvos.
O dilema era cruel. Fugir sob proteção federal significava abandonar a casa. Ficar significava lutar.
— Há outra opção — disse Calabel. — Fazemos nossa defesa aqui.
Os cascos inimigos chegaram ao pôr do sol. Oito cavaleiros armados avançaram contra o rancho. Mas Virgil e Calabel tinham preparado cada detalhe. O primeiro tiro partiu dela, derrubando o líder. Virgil, atrás do bebedouro, atingiu dois mais. O tiroteio iluminou a noite com clarões.
Quando a poeira assentou, cinco estavam mortos, dois fugiram e um jazia ferido.
— Quem mandou vocês? — perguntou Virgil.
— O comissário Hutchkins — arfou o homem. — Ele opera em quatro territórios. Crawford era só o começo.
O dia nasceu dourado. Exaustos, mas vivos, os irmãos se sentaram nos degraus da varanda.
— E agora? — perguntou Virgil.
Calabel mostrou o estojo com o testamento.
— Reconstruímos. Thomas deixou partes iguais. Podemos trabalhar juntos.
Virgil olhou o pequeno cemitério ao norte. Pela primeira vez em vinte anos, não estava sozinho.
— Sócios?
— Sócios — confirmou ela, estendendo a mão.
O aperto selou mais que um acordo: selou uma família reencontrada.
Meses depois, Hutchkins foi preso, sua rede desmantelada. Os poços limpos, documentos falsos destruídos, famílias indenizadas. No rancho, Virgil e Calabel reconstruíram tudo juntos. Todas as tardes, visitavam o túmulo da mãe.
A noiva por correspondência nunca chegou. Mas Virgil descobriu algo maior: uma irmã, uma parceira e um legado que sobrevivera ao tempo e às mentiras.