Jack regressou com sangue nas mãos, mas o mais inquietante não era o sangue; era o sorriso. Um sorriso calmo, quase paternal, que nos assegurava que “agora, tudo ficaria bem” . Contudo, a quietude que se instalou na caverna, no fundo daquelas montanhas geladas, era a prova do quão errado estava esse otimismo. Três dias antes, pensávamos que a fuga para o alto das montanhas, após o nosso plano no armazém ter corrido mal, nos salvaria. Estávamos errados. O isolamento, a escuridão e, sobretudo, a fome, estavam a matar-nos lentamente .
Sarah, fraca e com os lábios gretados, encolheu-se contra a parede da rocha. Mike, o mais nervoso, verificava o relógio incessantemente, como se o tempo ainda importasse. E eu, o narrador, apenas contava as horas desde a nossa última refeição. Sessenta e oito horas apenas com neve derretida e esperança vazia. Os nossos planos de nos mantermos discretos por uma semana e atravessarmos a fronteira foram esmagados por estômagos vazios e por uma loucura crescente. Mike já falava sozinho, e o seu olhar fixo num escaravelho rastejante era o prenúncio dos pensamentos mais sombrios que nos atormentavam.
Jack, o nosso líder desde o início, tornou-se diferente. Tenso, silencioso. Os seus olhos, ao examinarem os nossos rostos, pareciam calcular o valor de cada um de nós.
“Vou sair,” anunciou ele. “Para encontrar ajuda. Comida. Alguma coisa.”
Quando Mike zombou, lembrando que as pessoas desapareciam ali o tempo todo, Jack ignorou-o. O seu gesto, ao verificar a faca no cinto, não era o de um homem à procura de um acampamento de escuteiros. Era o gesto de um caçador . A sua silhueta desapareceu na vastidão selvagem, deixando-nos sozinhos com a fome e uma dúvida crescente: o que era Jack realmente capaz de fazer lá fora?
As horas passaram como anos. À quarta hora, o pavor instalou-se . E então, ouvimos: um grito. Distante, mas inconfundível. Humano. Agudo, aterrorizado e subitamente interrompido.
“Foi um animal,” tentei convencer Mike e Sarah , mas não acreditei. Pessoas gritam assim. Minutos depois, Mike rastejou para a entrada. “Fumo,” sussurrou ele. “Há fumo a subir do vale.”
Fumo significava fogo. Fogo significava pessoas. O que significava o grito?
Jack regressou após seis horas . Os seus passos eram pesados, deliberados, como se estivesse a carregar algo. Sarah chamou o seu nome. A resposta foi o nosso assobio secreto: três notas curtas, duas longas. Alívio misturado com terror.
Quando Jack se materializou na entrada da caverna, a visão chocou-nos. As suas roupas estavam rasgadas, o rosto arranhado. Mas foram as suas mãos que nos congelaram o sangue . Estavam cobertas de sangue fresco e escuro.
Ele olhou para nós, que o encarávamos com horror, e sorriu. Um sorriso que não era aliviado nem cansado. Era… calculista.
“Encontrei comida,” disse Jack com uma calma terrível. “Vamos ficar bem.”
O silêncio era esmagador. Sarah recuou, Mike agarrou-se a uma pedra. “Que tipo de comida?” perguntei, sabendo que a resposta nos condenaria.
Jack limpou o sangue nas calças, alcançou o interior do casaco e tirou algo embrulhado na sua camisa rasgada: carne fresca .
“Fiz o que tinha de ser feito,” declarou ele. “Íamos morrer aqui. Eu garanti que isso não aconteceria.”
Mike perguntou-lhe sobre o fumo no vale, mas Jack não respondeu. Apenas nos confrontou com uma escolha infernal: “Queres morrer à fome a fazer perguntas? Ou queres comer?”
Jack revelou o embrulho. O cheiro, cru, metálico, estava errado. O meu estômago revolveu-se, mas também rugiu.
“Encontrei um acampamento,” disse Jack. “Dois caminhantes. Tinham mantimentos, tudo o que precisávamos.” Sarah sussurrou: “Eles não precisam mais, pois não?” A verdade pairava no ar como veneno. Mike largou a pedra. O Doc.
Fomos forçados a enfrentar a nossa nova realidade: estávamos presos com um assassino, que era, ironicamente, a nossa única esperança de sobrevivência.
Fui o primeiro a ceder. Peguei num pedaço da carne escura. Estava quente, demasiado quente para algo que deveria ter arrefecido durante horas. Tinha o sabor da sobrevivência, da vergonha, de uma linha moral que nunca poderíamos voltar a cruzar.
“Cometemos um erro,” disse Sarah, as lágrimas a misturarem-se com o sangue nas suas mãos. “Mataste-os. Mataste-os mesmo.”
Uma hora depois, todos comemos. A fome venceu a consciência. Mas a raiva de Mike, alimentada pela carne, cresceu. Exigiu ir ao acampamento.
O cheiro atingiu-nos primeiro: fumo, tecido queimado e algo orgânico, estranho. O acampamento era um desastre de evidências destruídas à pressa.
Encontrámos uma bota de caminhada ligada a um pé. Depois, a carteira, meio queimada, de David Chen, 23 anos, com a foto de uma jovem e um bebé. “Eram apenas crianças,” chorou Sarah .
Jack agarrou a foto. “Eram testemunhas. Destruiriam-nos a todos.”
Mas foi uma observação cruel que selou o nosso destino. A bota de caminhada era demasiado pequena. O pé não pertencia ao homem da carteira. Tinha havido três pessoas naquele acampamento, não duas .
“Onde está o resto da carne?” perguntamos. A resposta de Jack era evasiva, mas o pânico nos seus olhos era claro .
A fome de Jack era uma solução a longo prazo. Ele não matara por uma refeição desesperada; ele matara para nos sustentar durante semanas.
Aproximadamente 50 metros de distância, Sarah encontrou a segunda descoberta. Um acampamento mais antigo. Uma mala de senhora, óculos de leitura, e o urso de pelúcia de uma criança .
“Jack,” sussurrou Sarah, “Quantas pessoas mataste?”
Jack não tinha enlouquecido; ele era um caçador em série . Ele estava a “proteger-nos” eliminando sistematicamente qualquer ameaça que pudesse testemunhar a nossa presença.
“Havia uma criança, Jack,” disse Sarah, o pequeno urso apertado nas mãos .
O monstro sorriu, empunhando a faca. “Essa criança teria crescido e lembrado-se dos nossos rostos. Por vezes, é preciso sacrificar um para salvar muitos.”
Estávamos presos. Dependentes do nosso salvador-assassino. Sem mantimentos, sem saber onde estávamos, seríamos forçados a continuar a comer as vítimas de Jack .
Mas a chegada de dois novos caminhantes, um casal, mudou tudo.
“Temos de nos esconder,” ordenou Jack.
“Não,” disse eu. “Não faremos isto de novo.”
O instinto de sobrevivência de Jack era mais forte. Ele apontou a faca, mas Sarah tomou uma decisão que nos salvou: ela correu em direção aos caminhantes, agitando os braços e gritando por ajuda .
Jack atirou-se a ela, mas Mike interveio, atirando-se a Jack. Mike, o homem que queria morrer de fome, lutava agora pela redenção .
Na confusão, Jack parecia o mais calmo e razoável. O caminhante, um homem de barba grisalha, hesitou . Foi Mike, escondido, que atirou uma pedra na cabeça de Jack .
A luta pela faca foi brutal. Mike, o caminhante e Jack cambalearam sobre a terra. Jack, lutando como um animal encurralado , conseguiu acertar no caminhante com o cotovelo e, no momento seguinte, cravou a faca no peito de Mike .
Mike caiu, os olhos fixos na dor e no choque.
“Agora viste demais,” disse Jack, avançando sobre o caminhante aterrorizado.
Mas Sarah, a mulher que aguentou tudo, deu o golpe final . Com a rocha de Mike, ela atingiu Jack na têmpora com toda a força do seu corpo esfomeado.
Jack não se levantou.
As equipas de resgate, a polícia, os helicópteros, chegaram três horas depois. Mike morreu nos meus braços, um sussurro manchado de sangue a sua última palavra. Jack estava morto.
Sarah e eu fomos tratados por desnutrição e depois presos. A investigação descobriu todos os corpos das vítimas de Jack: sete pessoas, incluindo a menina de seis anos cujo ursinho de pelúcia Sarah segurou até ao fim .
Estou a escrever isto da minha cela, a cumprir 25 anos por envolvimento no assalto que iniciou tudo. Sarah apanhou 15. O caminhante que salvamos testemunhou a nosso favor, o que provavelmente nos salvou do corredor da morte.
Nós sobrevivemos às montanhas. Mas algumas coisas, nunca as sobrevivemos verdadeiramente.