O tampo de mogno da mesa do escritório do meu pai nunca pareceu tão longo quanto naquela manhã. Eu me sentei numa das pontas, observando Diane — minha madrasta — se acomodar na outra extremidade como se estivesse prestes a presidir um tribunal. Kyle, meu meio-irmão mais novo, estava ao lado dela, entretido no celular, com aquele ar entediado de quem já sabia o final do filme.
O advogado da família, Sr. Garrett, ajustou os óculos e abriu sua pasta com um gesto calculado. Era o dia da leitura do testamento, três semanas após o ataque cardíaco que levou meu pai. Estávamos ali para repartir o que restava da vida dele.
Diane tamborilava as unhas perfeitamente feitas na mesa. Casada com meu pai há quatro anos — tempo suficiente para redecorar a casa inteira, mas não para apagar os vestígios da minha mãe. Pelo menos não para mim.
— “Última vontade e testamento de Robert Chun, datado de 15 de março de 2023,” começou o advogado, com a voz seca. Notei um pequeno sorriso no canto dos lábios de Diane. Dois dias após o diagnóstico terminal do câncer. Dois dias após sabermos que não havia retorno.
— “À minha amada esposa, Diane Chun, deixo a casa, as contas bancárias, investimentos e bens pessoais, com as seguintes exceções…”
Meu estômago apertou. Lá vinha.
— “Ao meu filho Kyle Chun, deixo a empresa Chin Industries, a ser gerida por Diane até que Kyle complete 25 anos.”
Kyle nem sequer desviou os olhos do celular.
— “À minha filha, Sarah Chun… deixo minha biblioteca pessoal.”
O silêncio foi mais ensurdecedor que qualquer grito.
— “Os livros?” perguntei, depois de longos segundos.
O advogado hesitou.
— “Aproximadamente 3 mil volumes. Incluindo primeiras edições. Avaliadas em…”
— “Os livros,” repeti, digerindo o gosto amargo da traição.
— “Seu pai sabia o quanto você amava aquelas leituras,” disse Diane com um tom enjoado. “Sempre foi tão estudiosa.”
A olhei com mais atenção: o vestido de grife, os brincos de diamante que foram da minha mãe, o brilho satisfeito nos olhos. Então sorri.
— “Obrigada. Eu vou cuidar deles.”
Kyle levantou os olhos pela primeira vez. Diane estreitou os dela, desconfiada da minha reação serena.
Antes que o advogado encerrasse, a porta se abriu. Era a Sra. Patterson, secretária do meu pai há 30 anos. Trazia um envelope amarelo apertado contra o peito.
— “Desculpem a interrupção, mas… há algo que precisam ver.”
— “Estamos no meio de uma reunião particular,” rosnou Diane.
A Sra. Patterson a ignorou.
— “Quando o Sr. Chun me pediu para esvaziar o cofre, encontrei isto. Datado de 2 de abril. Duas semanas após o testamento lido agora.”
O Sr. Garrett pegou o envelope com mãos trêmulas.
— “Isso é… altamente irregular…”
— “Ele pediu que fosse lido somente após a leitura do primeiro testamento,” explicou ela.
— “Ele estava dopado! Fora de si!” gritou Diane.
— “Sente-se, Diane,” falei, com uma firmeza que me surpreendeu. “Deixe-o ler.”
O novo testamento começava assim:
“Passei duas semanas observando. E o que vi partiu meu coração. Diane, que passou mais tempo com corretores e advogados do que ao meu lado. Kyle, que preferiu um festival de música a me visitar. E Sarah… que nunca perguntou sobre herança, mas quis ouvir minhas histórias, meus medos, minha vida.”
“À Diane, deixo exatamente o que trouxe ao casamento: nada. Ao Kyle, deixo minha coleção de vinis. Talvez aprenda que algumas coisas são mais valiosas que o dinheiro. E à Sarah… deixo tudo o mais.”
A sala explodiu em protestos. Diane vociferava sobre manipulação. Kyle, boquiaberto, só balbuciava “isso não pode ser”. Foi então que a Sra. Patterson tirou um tablet da bolsa.
— “Seu pai gravou uma mensagem.”
O rosto cansado de meu pai surgiu na tela.
“Diane, você comemorou. Marcou visita com corretor pra vender a casa onde a mãe da Sarah morreu. Kyle, você chamou a empresa de ‘dinheiro fácil’. Mas Sarah… Sarah só queria me ouvir. Por isso, deixo tudo a ela.”
“Se tentarem contestar, deixei gravações, mensagens, vídeos. E tudo será tornado público.”
Diane saiu furiosa. Kyle hesitou na porta.
— “Você nunca pediu nada. Nem quando ele ofereceu pagar suas dívidas.”
— “Eu só queria tempo com ele,” respondi.
Nos meses seguintes, Diane tentou brigar judicialmente, mas perdeu logo na primeira audiência. Kyle, surpreendentemente, me procurou. Disse que nunca quis a empresa, só queria fazer música. Dei a ele uma parte do que me deixou — os discos e algum dinheiro. Hoje ele está em Nashville, seguindo seu sonho.
Eu assumi a Chin Industries. Descobri que todas aquelas conversas com meu pai sobre liderança valeram mais do que qualquer MBA. Guardei a casa também. O jardim da mamãe ainda floresce. E a biblioteca virou meu lugar preferido.
No último dia da Sra. Patterson na empresa, ela me entregou uma carta:
“Sarah, se está lendo isso, é porque provou ser a herdeira que eu sempre soube que era. Os livros eram nossas conversas não ditas. Estou orgulhoso de você. Mamãe também estaria.”
https://www.youtube.com/watch?v=e-y2Ka8qcJY
Guardei aquela carta na minha gaveta. E nos dias difíceis, releio. Porque herdei muito mais do que dinheiro. Herdei o amor que ele teve medo de expressar. E os livros… aqueles livros que quase foram tudo, continuam sendo o meu tudo.