A chuva não parava desde o amanhecer e, quando saímos da Igreja de São Matthews, o céu cinza de Charleston parecia ter se instalado nos meus ossos. Arthur Rowan foi mais do que meu avô. Ele foi a voz constante em uma vida que, muitas vezes, foi regida por palavras afiadas e silêncios gélidos. O serviço foi silencioso, digno, repleto de rostos da comunidade que ele tanto ajudou a construir. Meu pai, Malcolm, estava na frente e no centro, aceitando condolências como um político na noite da eleição. Seus aperto de mão eram firmes. Seu sorriso, calculado. Eu pensei que talvez, por uma vez, o luto o tivesse suavizado. Essa esperança, no entanto, não durou muito. Horas depois, com os enlutados já se indo, e o cheiro das flores ainda pesado no ar, eu me encontrava na sala de estar da mansão, tomando um café morno, olhando para a antiga lareira de carvalho onde Arthur costumava apoiar o braço enquanto me contava uma de suas histórias.
Malcolm entrou, com a expressão distante, sem a máscara educada que ele usara o dia inteiro. “Está feito”, disse ele, de forma plana. “A transferência da propriedade está oficializada. 400 milhões de dólares agora estão no meu nome.” Ele disse isso como se estivesse anunciando o clima, deixando um pequeno sorriso se formar em sua boca. Eu assenti lentamente, sem saber o que ele esperava que eu dissesse. Ele não me deu tempo para falar.
“Agora você não serve para nada.” As palavras pairaram no ar, tão absurdas que demoraram a registrar. “Com licença?” “Você já se acomodou tempo demais”, ele disse, seu tom cortando o ar com precisão. “Arrume suas coisas. Quero você fora de casa até amanhã.” Por um momento, não consegui sentir minhas mãos. Esse era o meu pai, o homem que me ensinara a andar de bicicleta, que me falara sobre ambição, agora me olhando como se eu fosse um pedaço de mobiliário indesejado.
Levantei-me, forçando minha espinha a ficar reta, mesmo com o aperto no peito. “Tudo bem.” Minha voz não tremeu. Não ia dar a ele essa satisfação. Saí da sala, o eco dos meus passos me seguindo pelo longo corredor até o quarto que nunca realmente foi meu. Cresci em uma casa onde o silêncio era uma forma de controle. As regras de Malcolm eram precisas e absolutas: nada de portas batendo, nada de responder de volta, e nunca, sob nenhuma circunstância, desafiar suas decisões. Minhas primeiras memórias dele são medidas em correções: postura muito relaxada, tom de voz muito forte, ambições muito irreais.
Quando eu tinha 10 anos, já tinha aprendido a manter minhas vitórias para mim. Se trouxesse para casa um A, ele perguntava por que não era um A+. Se ganhasse um prêmio, ele questionava em voz alta quantos outros não se importaram em competir. Elogios eram raros e, quando vinham, mais pareciam uma nota de rodapé do que uma celebração. Arthur era diferente. A presença dele era como entrar em um pedaço quente de sol depois de estar dentro por muito tempo. Ele não me pressionava a ser perfeita. Ele me perguntava o que eu queria e então ouvia. Quando eu tinha 15 anos, disse a ele que queria trabalhar no setor financeiro para entender os fluxos de dinheiro e poder. Malcolm zombou, chamando isso de “mundo de homens”. Arthur sorriu e me disse para aprender o máximo que eu pudesse. Anos depois, quando fui aceita em um programa competitivo de pós-graduação, Malcolm desconsiderou, chamando de desperdício de tempo e dinheiro.
Lembro-me de estar na varanda com Arthur naquela noite, com a carta de aceitação no meu colo, me perguntando se deveria recusá-la. Ele tomou um gole de chá doce e então deslizou silenciosamente um envelope pela mesa. Dentro, havia um cheque bancário grande o suficiente para cobrir minha matrícula do primeiro ano. “Não conte para ele”, disse Arthur. “Isso é entre nós. Considere isso um investimento em alguém que vale a pena investir.” Era assim que Arthur acreditava em mim, quando isso realmente custava algo. Agora, de pé no meu quarto de infância, com a mala meio feita, pensei naquela noite e no orgulho silencioso nos olhos dele. Malcolm poderia me tirar essa casa, mas ele não poderia apagar os alicerces que Arthur me deu.
Ao alcançar outro cabide, algo duro se moveu dentro do fundo da minha antiga estante de livros. A casa já não parecia minha. Dentro de dias após o funeral, o calor que Arthur havia trazido para a mansão parecia evaporar, substituído por algo mais frio, mais cortante. Portas que sempre haviam ficado abertas agora estavam trancadas. A biblioteca, o solário, até o pequeno escritório onde Arthur guardava seus registros. Cada maçaneta sacudia inutilmente quando eu tentava. A equipe, pessoas que eu conhecia há anos, evitavam meus olhos. Margaret, a empregada, que costumava me dar scones da cozinha, agora só me dava acenos curtos, com as mãos ocupadas em tarefas que não precisavam ser feitas. Quando perguntei se algo estava errado, ela murmurou as instruções de Mr. Rowan antes de sair rapidamente.
Durante o jantar, Malcolm falou como se eu não estivesse lá. Ele discutiu o futuro com um tom definitivo, falando sobre reformas, novos investimentos e a reestruturação da casa de forma que deixou claro que eu não fazia parte de seus planos. Sua voz carregava a satisfação de alguém que cortava o que considerava peso morto. Voltei ao meu quarto, tentando me concentrar em arrumar as malas. Meus dedos passavam pelas lombadas dos livros que eu guardava desde o ensino médio. Conforto em tempos quando eu precisava de um lugar seguro para esconder meus pensamentos. Um. Uma biografia espessa que Arthur me deu no meu 18º aniversário deslizou para frente mais facilmente do que os outros. Quando puxei, algo pequeno e firme se moveu dentro. Abri o livro e encontrei um envelope lacrado, bem escondido entre as últimas páginas. Meu nome, na letra firme de Arthur, se destacava contra o papel cremoso.
Sentei na beirada da cama, rasgando o selo com os dedos cuidadosos. Dentro estava uma única folha de papel. A tinta, embora suave, era deliberada. “O testamento protege aqueles que protegem os outros”. Nenhuma explicação, nenhum contexto, apenas aquela linha, pesada o suficiente para me parar por completo. Li novamente, traçando as palavras como se mais significado pudesse aparecer. Arthur havia escondido isso para eu encontrar. Não Malcolm, nem ninguém mais. Dobrei a nota de volta no envelope e a coloquei na minha bolsa, minha mente já girando sobre o que isso poderia significar.