A estrada poeirenta parecia não ter fim quando Sarah Matthews apertou os gémeos contra o peito. O calor de fim de verão entrava pela lona da diligência e colava-lhe o vestido à pele. Seis meses antes, perdera Michael — marido recente, pai de Emma e James — e desde então tinha apenas uma direção: Willowbrook e o rancho do cunhado de quem ouvira falar a meia voz, Jackson Matthews.
— Última paragem, Willowbrook! — gritou o cocheiro, estacando diante de uma rua curta de madeira e pó.
Sarah desceu com cuidado, um bebé em cada braço. Uma passageira idosa, que viera ao lado, ajeitou-lhe o xale.
— Precisa de ajuda, minha filha?
— Obrigada, eu consigo. Sabe indicar-me o Rancho Matthews?
— O Diamante M? Fica a cinco milhas para norte. — E, depois de um compasso de hesitação: — O senhor Jackson… não é de grandes sorrisos.
Sarah anuiu. “Família é família”, repetiu para dentro, e contratou uma pequena carroça de um comerciante que ia em serviço para aqueles lados.
O rancho surgiu como um mar de relva: reses espalhadas até perder de vista, cercas direitas, uma casa principal alta, de madeira e pedra. No dorso de uma colina, um cavaleiro observava, recortado contra o céu. Ao aproximarem-se, o cavalo desceu a trote; quando a carroça parou, ele já esperava no alpendre.
Era alto, ombros largos sob um colete escuro, mangas enroladas até aos antebraços. O chapéu projetava sombra sobre um rosto queimado de sol.
— Trouxe uma senhora para lhe falar. Diz que é assunto de família — anunciou o cocheiro.
O choro súbito de um bebé cortou o silêncio. Sarah respirou fundo.
— Sou Sarah. Sarah Matthews. Era casada com o Michael.
O nome foi uma pedra lançada a um lago: algo tremeu por dentro do homem. Desceu dois degraus, devagar.
— O meu irmão?
— Deixou uma carta. — Ela tirou um envelope amarrotado da bolsa, sem largar as crianças.
Jackson recebeu a carta com mãos que não eram de ferro como pareciam.

Leu-a junto à janela da sala, costas tensas, enquanto a governanta, Martha, organizava leite morno e um quarto para hóspedes. Quando se virou, os olhos estavam duros de novo, mas havia outra coisa por baixo.
— Ele temia pela vida… e pede-me que vos proteja. — Baixou o olhar para os gémeos. — O que aconteceu entre nós é passado. As crianças são Matthews. Ficam aqui.
Essa noite, Sarah embalou os bebés num berço improvisado e viu, da janela, a figura de Jackson imóvel junto ao curral, cabeça erguida para as estrelas. “Duas pessoas a lidar com fantasmas”, pensou.
De manhã, a casa ordenada do Diamante M acordou em sobressalto com o choro dos gémeos. Sarah pediu desculpa; Jackson, sentado à mesa com papéis, limitou-se a dizer:
— Esta é a casa deles. E casas com bebés fazem barulho.
Pediu-lhe então tudo o que soubesse dos últimos anos de Michael. Sarah sabia pouco. Havia, porém, um nome: Richard Blackwood, “associado” de uma mina nas Black Hills.
O nome caiu mal.
— Blackwood compra meio território à custa dos outros. Se o Michael se meteu com ele…
Não acabou a frase. No pátio, soaram cascos. Jackson ergueu-se, o corpo a mudar de linguagem. — Fique dentro de casa com as crianças.
Do lado de fora, cinco homens apearam. À frente, um sujeito de barba aparada, fato bom demais para aquele pó.
— Matthews, — cantou — que prazer.
— Poupe o teatro, Blackwood. O que o traz?
— Vim buscar o que é meu. A viúva do seu irmão chegou ontem. Ele devia-me algo.
Jackson não cedeu terreno.
— A minha família não é campo de cobrança. Saia da minha propriedade.
O outro sorriu sem sorriso. — Voltarei. O que é meu regressa sempre a mim.
Quando partiram, Sarah percebeu que a morte de Michael talvez não tivesse sido “acidente”. Jackson pediu-lhe qualquer objeto que ele tivesse deixado. Havia um relógio de bolso. Examinou-o e encontrou, num falso fundo, um pequeno documento: escritura de metade de uma mina nas Black Hills. A outra metade, claro, era de Blackwood.
— Agora sabemos o que ele quer — murmurou.
No fim da tarde, sentaram-se no alpendre. Sarah falou de uma tal Rebecca, com quem Michael se ia encontrar na noite em que morreu; Jackson conhecia o nome — professora, antiga namorada de juventude do irmão. No dia seguinte, selou o cavalo ao amanhecer: iria à vila falar com a professora e com o juiz Parker sobre a escritura.
Enquanto isso, Martha contou a Sarah o que os retratos na parede já diziam: dois rapazes lado a lado com os braços pelos ombros, antes de o destino lhes torcer o caminho. Jackson, aos 19, ficou responsável pelos irmãos mais novos; Michael, inquieto, desapareceu após uma falta de dinheiro que sempre lhe colaram.
Em Willowbrook, Rebecca esperou o intervalo das aulas e confirmou os receios: Michael temera por si, entregara-lhe uma pequena chave “para o caso de”. Falara ainda de provas contra Blackwood e deixara uma frase que roeu Jackson por dentro: “o maior erro foi deixarem acreditar numa mentira”.
Quando Jackson regressava, viu de longe o rancho cercado. Blackwood não esperara pelo juiz. Tom, o capataz, alinhará os homens; tiros secos cortavam o ar. Sarah, no piso de cima, fechou as janelas e apertou os gémeos, enquanto Martha sussurrava que havia um alçapão antigo a dar ao regato — rota de recado, se fosse preciso.
Sarah ganhou minutos, dizendo a Blackwood pela janela que precisava de tempo para “ir buscar” o documento. Tentou o relógio outra vez e descobriu, no lado oposto, um segundo compartimento: umas coordenadas e uma combinação. “Caixa de banco?”, pensou.
Ouviram-se disparos na linha de árvores. Jackson voltara com vizinhos e pequenos proprietários fartos das manobras de Blackwood. O tiroteio foi curto e sujo. Dois homens de Blackwood ficaram no chão; os restantes largaram as armas. O próprio, ainda a vociferar, avançou disparando à toa. Um único tiro certeiro calou-o no pó.
O xerife levou os sobreviventes e tomou depoimentos. À noite, na biblioteca, Sarah mostrou a nota com números; Jackson pousou ao lado a chave que Rebecca lhe dera.
— Cheyenne tem o único banco com caixa forte que bate com esta combinação. Se o Michael guardou o que eu penso, está lá.
— Provas?
— Suficientes para arrancar o resto da máscara a Blackwood. — Fez uma pausa. — E talvez para limpar o nome do meu irmão.
Foram dias de idas e vindas. Jackson voltou com registos de subornos, plantas e contratos falsificados, testemunhos de exploração ilegal — e um dossiê que ligava Blackwood a duas mortes. O juiz ordenou a apreensão dos bens e declarou nulas as manobras sobre a mina: a metade de Blackwood revertia para a massa falida; a de Michael, para os herdeiros.
— É dinheiro que dá para muitas vidas — disse Jackson, caminhando ao longo do riacho com Sarah, semanas depois. — Os teus filhos não hão de faltar a nada.
— Dinheiro não é família. — Ela olhou para o braço dele, onde James dormia encostado, natural como se sempre tivera sobrinhos ao colo. — E vocês, o que vão fazer?
Ele respirou fundo.
— Estive sozinho demasiado tempo. Esta casa… com vocês… lembra-me o que interessa.
— Não podemos impor-nos para sempre.
Jackson parou, virando-se para ela.
— Não é imposição. É casa. É onde eles pertencem. Onde tu pertences, se quiseres.
Sarah mediu-lhe o rosto: havia nele o homem duro do pátio e o rapaz dos retratos, o que aprendera a segurar um mundo com pouca idade. A lembrança de Michael não doía menos; doía de outro modo — como as cicatrizes que deixam mexer o braço.
— Os meus filhos precisam de estabilidade — disse, sincera. — E eu… preciso de parceria. De alguém que veja quem eu sou.
— Eu vejo-te, Sarah — respondeu, simples.
No dia seguinte, Jackson foi com ela ao advogado para formalizar tutela e herança, criar um fundo para os gémeos e registar um acordo claro: Sarah ficaria no rancho como administradora associada; Jackson, tutor e coproprietário das quotas destinadas às crianças. Nada de meias-palavras, nada de favores obscuros — papel timbrado, assinaturas, testemunhas.
Com o outono, o Diamante M reencontrou o pulso. Emma ria com o sol; James dormia no ruído dos currais. Martha ensinou Sarah a receita do pão de milho que perfumava as manhãs. Rebecca visitou com livros infantis e, num recanto do alpendre, deixou a Jackson um “adeus sem mágoa” pelo passado. Na vila, os cumprimentos, antes de soslaio, tornaram-se francos. Havia sempre quem murmurasse — há sempre —, mas o xerife respondia com o velho conselho: se não é crime nem prejuízo, é assunto de cada um.
Certa tarde, sentados à sombra, Sarah retirou do bolso o relógio de Michael. Passou o polegar nas marcas do uso.
— Trouxe-me até aqui — disse, sorrindo ao recordar a estrada poeirenta. — Agora já não é bússola. É lembrança.
Jackson tocou a tampa, devagar.
— E lembrete. De que o que partiu pode não voltar, mas o que ficou pode ser cuidado.
Naquele entardecer, Emma agarrou o dedo de Jackson com força desproporcionada ao tamanho. Sarah encostou a cabeça ao ombro dele e ficou a ver o campo dourar. Não fizeram promessas que não pudessem cumprir; combinaram coisas pequenas: refeições às horas certas, contas em dia, visitas à pediatra quando fosse preciso, e — quando o tempo quisesse e o luto deixasse — espaço para um sentimento que nascia com a paciência de quem trata da terra.
A estrada por onde Sarah chegara continuava a perder-se no horizonte. Mas agora, do alpendre do Diamante M, não parecia fuga. Parecia futuro. E, pela primeira vez em muito tempo, futuro era palavra que cabia na boca dos dois.