Ele a abandonou na senzala por ser “quebrada”. Mas ela aprendeu a crueldade dele, e o monstro que ela se tornou voltou para destruir o próprio mestre.

Diziam que a filha do mestre não era certa da cabeça. Que ela sorria para coisas que ninguém mais podia ver e chorava quando o vento mudava. Depois que sua mãe morreu, a casa ficou silenciosa, silenciosa demais, até o dia em que o mestre desceu para a senzala com a garotinha pela mão.

Ele disse que não podia criá-la sozinho, que as mulheres lá de baixo sabiam como cuidar de coisas quebradas. E assim ele a deixou com elas. Sua própria filha, descalça, tremendo, olhando para cima, para rostos que já haviam enterrado filhos demais.

Mas o que eles não sabiam era que a garotinha já havia aprendido como o amor funcionava naquela casa. E o que ela se tornou entre eles quebrou a todos.

Antes de começarmos, certifique-se de se inscrever no “Registro Macabro”. Toque o sino para nunca perder outra história que a história tentou esconder. Agora, vamos voltar ao Mississippi, 1846.

A casa principal caiu em silêncio na semana em que a senhora morreu. Sem choro, sem orações, apenas o som do vento movendo-se pelos longos corredores. O mestre ordenou que os espelhos fossem cobertos e o relógio parado, como se o próprio tempo tivesse sido posto para descansar ao lado dela.

Os escravos não foram autorizados a se aproximar da cerimônia. Ficaram na beira do campo, observando a garotinha, Laya, agarrar o casaco do pai e encarar o caixão que descia à terra. Ela tinha apenas oito anos. Ela não chorou. Apenas observou, com os olhos vagos.

Após o funeral, o mestre trancou-se em seu escritório. Quando finalmente emergiu, três dias depois, seus olhos estavam fundos. A governanta, Essie, disse que a menina estava vagando pelos corredores à noite, carregando o pente da mãe e cantando para si mesma.

A presença de Laya começou a perturbar. Ela sentava-se em cantos por horas, sussurrando. Às vezes, ria de repente, sem motivo. Outras vezes, gritava quando tocada, como se tivesse sido queimada.

O mestre não notou, ou fingiu não notar. Sua dor transformou-se em ressentimento. A visão dela — os olhos da mãe, o cabelo da mãe — era demais para ele.

Na manhã seguinte, os escravos o viram descendo a colina. Sua filha caminhava ao lado dele, descalça, agarrando uma boneca sem um braço. Quando chegaram à senzala, o mestre parou. Disse que a menina ficaria ali, que ele tinha trabalho a fazer e ela precisava de companhia adequada.

Então ele se virou e voltou para a casa, deixando-a lá. Sua única filha, entre as pessoas que haviam enterrado seus próprios filhos por ordem dele.

Na primeira noite, ninguém dormiu. A menina sentou-se em um banquinho perto da lareira, observando o fogo. As mulheres sussurravam em suas camas, sem saber o que fazer. A Velha Mabel, a parteira, finalmente se levantou. Ela se ajoelhou ao lado da menina, oferecendo um copo de leite.

Laya não se moveu. Seus olhos permaneceram fixos nas chamas. Então ela se virou lentamente, a voz mal passando de um sussurro. “Papai diz que o fogo come pessoas quando elas mentem.”

Mabel congelou. As mulheres se entreolharam. “Não, criança,” Mabel disse, forçando um sorriso. “O fogo mantém as pessoas aquecidas. É só isso.”

Mais tarde, Ruth, sobrinha de Essie, acordou com um barulho. Laya estava ao lado de sua cama, segurando a boneca. “Papai disse que meninas más são enviadas para cá,” ela murmurou. “Ele disse que vocês sabem como consertá-las.” Laya se inclinou mais perto, os olhos arregalados e sem piscar. “Você pode me consertar?”

Pela manhã, todos na senzala entenderam uma coisa: a criança não era má, mas ela carregava algo que havia sido quebrado antes mesmo de ela aprender a falar.

Na segunda semana, a menina encontrou seu ritmo. Ela seguia as mulheres, buscando água, descascando batatas. Ela não falava muito, mas observava tudo.

Era fácil esquecer quem ela era, até que vinham os momentos que os perturbavam.

Uma vez, quando o feitor gritou com um dos homens, Laya sussurrou algo. Mabel a ouviu. “O que você disse, criança?”

Laya piscou. “Papai diz que você bate neles até eles ouvirem.”

As palavras foram ditas de forma tão simples que o estômago de Mabel revirou. “Não fale assim,” ela disse com firmeza. “Não é certo.”

A menina apenas inclinou a cabeça. “Papai diz que é certo se isso os torna quietos.”

Pequenos hábitos começaram a aparecer. Laya começou a apontar quando queria algo, em vez de pedir. Ela estalava os dedos para as crianças mais novas, dizendo-lhes para “se moverem rápido”, da mesma forma que ouvira seu pai latir para os servos. Quando os outros a corrigiam, ela murmurava: “Mas papai disse que é assim que as pessoas boas falam.”

As mulheres não a repreendiam. Sabiam que ela não queria fazer mal. Mas cada gesto carregava o eco da crueldade de seu pai, suavizado apenas por sua confusão inocente.

As semanas passaram e a menina se tornou parte do ritmo da senzala. As mulheres começaram a cuidar dela como cuidavam dos seus. Não era pena; era reconhecimento. Algo na maneira como ela olhava o mundo, curiosa, quebrada, nunca entendendo bem por que as pessoas machucavam umas às outras, parecia familiar demais.

Mas coisas estranhas permaneciam. Laya ria da dor, às vezes até da sua. Certa vez, ela tropeçou e ralou os joelhos até sangrar. Quando Ruth correu para ajudar, a menina apenas deu uma risadinha, olhando para o sangue com fascínio. “É vermelho como o vestido da mamãe,” ela disse.

E quando o chicote do feitor estalava ao longe, ela não se encolhia. Ela inclinava a cabeça, ouvindo, e sussurrava: “Papai diz que esse som significa que todos estão sendo bons de novo.”

Mabel lhe disse gentilmente: “Esse som não significa ‘bom’, criança. Esse som significa ‘tristeza’.” Mas Laya apenas pareceu confusa, como se as palavras não se encaixassem.

Naquela noite, o mestre desceu pela primeira vez. “Como está a menina?” ele perguntou a Mabel, o tom seco, como se perguntasse sobre um animal doente.

“Ela come, ela dorme,” Mabel respondeu.

“Bom,” disse ele. “Mantenha-a limpa. Ensine-a a trabalhar. Ela pode debulhar ervilhas, carregar água.” Seus olhos se tornaram frios. “Não a deixe esquecer quem ela é.”

Ele se virou para sair, e foi quando Laya saiu correndo de trás da cabana, descalça e enlameada. Ela parou abruptamente quando o viu. “Papai,” ela sussurrou.

Ele não se abaixou. Não sorriu. “Obedeça ao que elas lhe dizem, menina.” E foi embora.

Laya ficou na chuva até ele desaparecer. Então ela olhou para Mabel e disse: “Papai fala com Deus assim também.” Mabel não conseguiu responder, porque naquele momento ela percebeu que a criança não estava apenas o repetindo. Ela estava se tornando ele.

O ar ficou pesado. Laya havia aprendido rápido demais. Ela imitava como as mulheres dobravam os panos, mas também lembrava o que não deveria.

Certa noite, Ruth pegou Laya repreendendo uma das crianças menores. O menino havia derramado um balde de água, e a pequena mão de Laya desceu com força em sua bochecha. O som foi agudo.

“Não derrame de novo,” ela disse, a voz firme, calma demais. “Papai diz que os maus são consertados assim.”

Ruth agarrou seu pulso. “Laya,” ela sibilou. “Nós não machucamos ninguém aqui.”

A menina congelou. Por um momento, a confusão brilhou em seus olhos. Então as lágrimas brotaram, e ela começou a chorar — não o soluço de uma criança assustada, mas o som seco e trêmulo de alguém que não sabia por que estava arrependida.

Ruth a abraçou. “Ele não está aqui, querida. Você não precisa ser ele.”

Naquela noite, Laya sentou-se do lado de fora, sozinha. Mabel foi vê-la e a encontrou sussurrando para sua boneca. “Eu fiz o que papai disse,” ela murmurou. “Agora eu sou má também.”

Mabel se agachou ao lado dela. “Não, querida. Você não é má. Você só não conhece nada diferente.”

A menina ergueu os olhos. “Então, quem vai me ensinar o diferente?”

Mabel não pôde responder.

No meio do verão, o mestre não desceu novamente até que o algodão florescesse. A menina que ele deixou entre os escravos não parecia mais a mesma. Seu cabelo estava selvagem, sua pele bronzeada pelo sol, seus pés calejados.

Ele a encontrou agachada perto da cerca, cantarolando baixinho para uma pilha de gravetos que ela havia arrumado em fileiras.

“O que ela está fazendo?” ele perguntou a Mabel.

Mabel hesitou. “Ela está… brincando, senhor. Ela constrói coisas.”

“Brincando?” Ele deu um passo mais perto. “Parece que ela está fazendo covas.”

Laya se virou, sorrindo levemente. “Papai. Você veio ver minha casa?”

Ele franziu a testa. “Que casa?”

Ela apontou para os gravetos. “Esta aqui. É para onde os bons vão quando param de chorar.”

O mestre piscou. “Quem lhe disse isso?”

“O senhor,” ela disse com naturalidade.

Por um momento, sua mandíbula se contraiu. Culpa, talvez, ou nojo. Ele se virou para Mabel. “Você a ensinou isso?”

“Não, senhor,” a voz de Mabel falhou.

Ele olhou para a menina, que havia voltado ao seu trabalho, batendo suavemente a terra ao redor de cada minúscula cova.

“Dêem um banho nela,” ele disse friamente. “Ela vai voltar para a casa. Tive o suficiente dessa tolice. Ela é meu sangue. Não vou permitir que viva como uma de vocês.”

Quando ele se foi, Laya olhou para cima. “Eu o deixei com raiva de novo?”

“Não, querida,” Ruth ajoelhou-se ao lado dela.

“Sim, eu deixei.” A voz de Laya tremeu. “Papai diz que os maus o deixam cansado. Eu o deixo cansado.”

No dia em que o mestre veio buscá-la, a senzala ficou em silêncio. Ele veio a cavalo, polido, como se as aparências pudessem desfazer a podridão.

Laya estava sentada nos degraus, cantarolando. “Papai,” ela disse, como se o esperasse.

Ele desceu e estendeu a mão para colocá-la no cavalo. Ela se encolheu. Apenas um pequeno espasmo, mas o suficiente para que a mão dele congelasse no ar. Sua expressão escureceu. “Não aja com medo. Não há motivo para isso.”

As mulheres observaram em silêncio enquanto eles subiam a colina, a pequena figura da criança pressionada contra o casaco dele, o rosto voltado para o vento. Naquela noite, a casa grande foi iluminada novamente. Da senzala, as mulheres ouviram. Mabel murmurou uma oração. Ruth apenas encarou as luzes e sussurrou: “Ele a levou de volta para matar o que resta dela.”

Dentro da casa, a menina sentou-se à mesa de jantar, as mãos postas. O mestre serviu-se de uísque. “Você viveu como eles por tempo suficiente,” ele disse. “Você vai comer direito agora. Falar direito.”

Ela assentiu, os olhos baixos. “Sim, senhor.” Mas enquanto falava, sua voz mudou, baixa, fria, imitando a dele.

Ele congelou. “O que você disse?”

Ela piscou. “Eu disse ‘sim, senhor’.” Mas não era confusão. Era repetição.

Ele percebeu então que ela estava devolvendo suas palavras exatamente como ele as dava aos outros. Pela primeira vez, ele se viu sentado ali, não no espelho, mas do outro lado da mesa, no corpo de uma menina pequena e quebrada.

Ele se virou, a mão tremendo. “Vá para a cama. Você fala demais.”

Ela se levantou obedientemente. Mas antes de desaparecer pelo corredor, ela sussurrou: “Papai fala demais também.” O som de seus passos desapareceu, deixando-o sozinho com o eco.

Depois daquela manhã no espelho, a casa pareceu se fechar sobre si mesma. A criança, que antes cantarolava, agora se movia sem som.

No início, o mestre disse a si mesmo que isso era bom. Obediência era paz. Mas o silêncio tinha um peso que o perturbava. Ele acordava à noite e a encontrava parada na porta, observando-o dormir.

“O que está fazendo aí, menina?” ele latia.

Sua voz vinha suave: “Esperando o senhor parar de gritar enquanto dorme.”

Certa manhã, ele a encontrou sentada à mesa da cozinha, olhando para seu copo de leite, os lábios mal se movendo. Quando perguntada o que estava sussurrando, ela respondia: “Pedindo desculpas, porque o papai esqueceu como.”

A culpa do mestre azedou. Ele começou a confundir a dor dela com desafio. Cada vez que olhava para ela, via a esposa que não podia controlar. Os mesmos olhos, a mesma quietude. E ele a odiava por isso.

Uma tarde, ele a encontrou olhando para o espelho do quarto da mãe novamente. “Você acha que ela está aí?” ele gritou.

Laya piscou, lenta. “Ela não está observando. Ela está esperando.”

Ele a agarrou pelos ombros, sacudindo-a. “Pare de falar assim! Pare!”

Sua voz saiu pequena. “Estou tentando, papai. Mas a sua voz não sai.”

Ele a soltou tão de repente que ela tropeçou. Ele se virou, respirando com dificuldade, as mãos tremendo. “Suba,” ele disse roucamente. “Antes que eu esqueça que você é meu sangue.”

Naquela noite, Mabel e Ruth se esgueiraram até a casa grande. O cheiro de uísque flutuava pela janela aberta do salão. Lá dentro, o mestre estava caído em sua cadeira. Laya estava ajoelhada no chão ao lado dele, catando cacos de vidro.

Ele a observava como um homem observa seu próprio reflexo: enojado, mas incapaz de se desviar. “Você vai continuar fingindo que não pode me entender?” ele arrastou as palavras.

Ela não respondeu.

Ele se inclinou. “Você está me ouvindo?”

Finalmente, ela ergueu os olhos. “Eu sempre ouço o senhor,” ela disse suavemente. “Mesmo quando o senhor não está falando.”

Algo naquela resposta o quebrou. Ele atirou a garrafa contra a parede. “Você não é ela!” ele gritou. “Você nunca será ela!”

Laya não se moveu. Ela apenas sussurrou: “Eu sei. O senhor garantiu isso.”

Mabel puxou Ruth para trás da janela. “Não podemos ficar.” Mas, enquanto se viravam, ouviram um som fraco vindo da sala: uma única tecla de piano, pressionada no escuro.

Depois daquela noite, algo no mestre se quebrou de vez. Ele parou de sair de casa. Apenas Laya permanecia perto dele, não por amor ou medo. Era dever. Ela se levantava quando ele se levantava, imitava seus passos, como se os dois estivessem ligados pela mesma alma cansada.

Uma noite, ele estava bêbado no antigo quarto de sua esposa. Atrás dele, Laya observava em silêncio. Ele olhou para o reflexo dela. “Por que você está me olhando assim?” ele disse baixinho.

Ela não respondeu.

Ele riu amargamente. “Você é a única coisa que resta que olha para mim.” Ele se virou, estendendo a mão para tocar seu rosto, mas ela recuou.

“Você tem medo de mim?”

Seus olhos não se moveram. “O senhor me disse para ter.”

O silêncio se instalou. Então ela disse suavemente: “Quando o senhor me machuca, eu pareço com o senhor. Quando estou quieta, pareço com a mamãe. Eu não sei qual dos dois devo ser.”

O copo de uísque deslizou de seus dedos. E pela primeira vez, o mestre começou a chorar.

Por dias, ninguém viu o mestre. As cortinas permaneceram fechadas. O som do piano era a única prova de que ainda havia vida lá dentro.

Mabel ouviu primeiro. Não era uma melodia. Eram notas soltas, irregulares, como alguém tentando se lembrar de uma música.

Naquela noite, Mabel acendeu um lampião e foi até a casa. A porta estava destrancada. O ar estava pesado com uísque e cera de vela. A sala estava revirada. E no meio de tudo, Laya estava sentada ao piano. Suas pequenas mãos pairavam sobre as teclas, movendo-se sem som. Seus olhos estavam abertos, mas distantes.

“Laya. Querida, sou eu.”

A menina piscou, como se acordasse. “Mabel. Estive esperando por você.”

“Vamos para casa.”

Mas antes que ela pudesse levantá-la, uma voz baixa veio da porta. “Ela está em casa.”

O mestre estava lá, meio nas sombras, uma pistola pendurada frouxamente ao seu lado. “Ela não pertence mais lá embaixo. Ela é minha.”

Mabel se virou, desafiadora. “Ela não pertence a ninguém. O senhor se certificou disso.”

A mão do mestre tremeu. “Você acha que pode tirá-la de mim?”

Atrás delas, Laya falou baixinho. “Você não precisa me levar.”

Ambos se viraram. Ela estava de pé agora, a voz calma e estranha. “Eu já fui.”

O mestre vacilou. “Não fale tolices, menina.”

“Eu também não estou aqui,” disse ela.

Ele deu um passo à frente, a voz quebrando. “Eu lhe dei tudo o que me restava.”

Mabel se colocou na frente de Laya. “O senhor não deu a ela nada além de seus fantasmas.”

“Saia da frente.”

“Não.”

Por um momento, ninguém respirou. A pistola subiu um centímetro. Mas então Laya saiu de trás de Mabel.

“Você pode me bater,” ela disse suavemente. “É o que você faz quando ama alguém, certo?”

Ele congelou. “Quem lhe disse isso?”

“O senhor,” ela respondeu. “Toda vez que o senhor chorava por ela.”

As palavras o atingiram mais fundo do que qualquer bala. Seu braço caiu. Ele olhou para ela, realmente olhou para ela: o rosto da esposa, mas arruinado por ele. “Eu não queria…”

Ela deu um passo mais perto. “Eu sei. É por isso que doía mais.”

A pistola deslizou de sua mão. Atingiu o chão e disparou com um trovão que rasgou a sala. Fumaça encheu o ar. As mulheres gritaram.

Quando a fumaça se dissipou, o mestre ainda estava de pé, olhando para sua filha, que não havia se movido. A bala havia atingido o piano, estilhaçando a madeira.

Laya não se encolheu. Ela apenas olhou para ele. “Viu?” ela sussurrou. “Você não pode matar o que você já quebrou.”

O mestre caiu de joelhos, o som de seus soluços baixo e desesperado. “Deus me perdoe.”

Mabel cruzou a sala, a voz trêmula. “Venha, criança. Você terminou aqui.”

Laya não resistiu. Ela olhou para o pai uma última vez, não com ódio, mas com a calma vazia de quem finalmente ficou sem medo. Então ela se virou e seguiu Mabel para fora.

O mestre chamou o nome dela. “Laya! Eu não queria que fosse assim.”

A menina parou na porta, mas não se virou. “O senhor nunca quer.” E então ela se foi.

Naquela noite, Laya perguntou se podia ficar na senzala. “O senhor disse que eu pertenço a ele,” ela sussurrou.

A voz de Mabel falhou. “Você não pertence mais a ninguém.”

No dia seguinte, ninguém viu o mestre. Na manhã seguinte, a fumaça de sua chaminé parou de subir.

Laya ficou quieta por dias. Ela dormia perto do fogo, abraçada à boneca. Quando falava, era apenas para dizer: “A casa do papai não faz mais barulho.” Ninguém a corrigiu. A casa na colina havia caído em silêncio. E o silêncio era tudo o que ele tinha deixado para ela.

A plantação Brantham apodreceu por dentro. A casa principal não enviava mais ordens. E no centro desses ecos estava Laya. Ela vivia entre eles, compartilhando suas refeições, dormindo no chão. As mulheres a tratavam com delicadeza, como uma criança que fora deixada no frio por tempo demais.

Mas ela não era mais a mesma. À noite, ela ainda cantarolava, mas sussurrava para sua boneca palavras novas. “Não chore, mamãe. Ele não pode mais nos alcançar.”

Mabel disse uma vez: “Anjos não nascem da dor, criança. Eles apenas a visitam.”

Mas, com o tempo, o ar na plantação tornou-se pesado. Diziam que a casa os observava. Mas Laya ia até lá. Ela subia a colina descalça. Quando voltava, ficava quieta por horas, como se tivesse ouvido algo.

Ruth tentou impedi-la. “Não há nada lá para você, a não ser dor.”

Laya apenas sorriu levemente. “Não dói mais. Apenas lembra.”

Mabel sabia que não podia esperar mais. O que quer que tivesse se instalado dentro da menina estava se espalhando. Certa manhã, ela a encontrou perto do fogo, os lábios se movendo sem som.

“Papai não gosta que eu fale muito alto,” ela sussurrou.

Naquela noite, Mabel a levou ao rio onde sua mãe foi enterrada. “Este é o lugar onde a mamãe dorme,” Laya disse suavemente.

“Sim.”

“Papai chorou quando a colocaram aqui.”

“Isso não é choro, querida,” disse Mabel. “Isso é culpa. Não é a mesma coisa.”

Laya ficou quieta. Então ela sussurrou: “Ele ainda quer que eu peça desculpas.”

Mabel segurou suas mãos. “Você não deve desculpas a esse homem.”

“Se eu não disser, ele não dorme.”

“Então deixe-o ficar acordado,” disse Mabel. “Essa é a carga dele, não a sua.”

O vento mudou, trazendo um som fraco, uma única nota de piano. Laya se levantou. “Ele diz que está cansado. Ele diz que não consegue encontrar a porta. Ele quer que eu a abra.”

“Não se atreva,” Mabel avisou.

Laya virou a cabeça. “Talvez eu seja a porta.”

Ela pressionou as palmas das mãos contra a água. A superfície do rio brilhou com uma luz branca e leitosa.

“Laya!” Mabel gritou, agarrando-a. Mas a menina não resistiu. Ela apenas virou a cabeça lentamente e disse, quase gentilmente: “Ele diz que não dói mais.”

E então ela sorriu. Não era o sorriso de uma criança. Era cansado demais.

Um estrondo baixo rolou pelo chão. O rio se agitou. Mabel a puxou para trás, ambas caindo na lama. Quando olharam de novo, o brilho havia sumido. O rio estava escuro.

Laya estava quieta nos braços de Mabel, pálida, mas pacífica. “Ele está quieto agora,” ela sussurrou. “Ele foi.” E então, mais suave: “Mas ele disse ‘obrigado’.”

Mabel entendeu. A menina não o havia libertado por perdão. Ela o libertou porque não podia mais carregá-lo. Mas quando Mabel olhou para baixo, os lábios da menina estavam azuis, e seu pulso estava desaparecendo.

“Aguente firme, querida,” ela implorou.

A boca de Laya se moveu. “Mamãe… está esperando.” E então seu corpo amoleceu, e sua pequena mão caiu na água, deixando uma leve onda branca se espalhando na escuridão.

O mundo pareceu parar. Mabel sentou-se na lama, segurando o corpo pequeno e imóvel. Eles a levaram de volta para a senzala. O amanhecer estava sangrando no horizonte.

Três noites depois, Ruth acordou com o som de passos descalços lá fora. A sombra de uma criança moveu-se pelo quintal. Na manhã seguinte, havia uma pequena marca de mão na terra perto da fogueira, perfeitamente desenhada, levemente branca.

A casa na colina permaneceu vazia. Mas em noites paradas, quando o vento soprava certo, o som fraco de um piano podia ser ouvido, tocando uma melodia lenta e quebrada. E sempre depois da nota final, a voz de uma criança sussurrando: “Eu ainda estou ouvindo.”

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