Parte 2 – A Escolha da Luna
O aroma de chuva e pinho molhado preenchia a cabana. Era um cheiro que se tornara meu novo normal, um contraste nítido com a poluição e o ar estagnado da cidade. Passei a mão sobre a madeira áspera da mesa da cozinha, ainda sentindo o peso de uma planilha na minha mente. Minha vida anterior parecia um fantasma, desaparecendo a cada dia. Ree era uma criatura de hábito. Ele acordava com o sol, fazia uma corrida que deixaria a maioria dos homens sem fôlego e voltava com uma energia silenciosa que tomava conta da pequena cabana. Ele era um alfa natural, mesmo nos momentos mais comuns. O modo como se movia, como se mantinha, era um testemunho silencioso de seu poder. Mas foi nos espaços tranquilos, aqueles sem ameaça ou matilha para liderar, que as rachaduras na nossa fundação começaram a aparecer. Não éramos um casal normal. Não havia o ritmo fácil da vida doméstica, nem a troca confortável de palavras. Nosso relacionamento havia sido forjado em um cadinho de medo e sobrevivência.
A matriarca Mave aceitou nosso vínculo e, com essa aceitação, veio uma nova realidade. Minha vida era ali agora, com ele. Ree era ferozmente protetor, sempre sabendo onde eu estava, seu olhar me seguindo, mesmo quando fingia estar ocupado com um relatório. Seu toque era uma presença constante, uma mão nas minhas costas, um polegar traçando meus nós enquanto ficávamos em silêncio. Era uma conexão física poderosa, quase inegável. Mas minha mente humana, a mesma que costumava se perder em balanços de contabilidade, não conseguia evitar calcular os números. Isso era afeição genuína de Ree por mim, Clara? Ou era seu instinto alfa, uma necessidade primal de proteger e possuir sua Luna?
Naquela manhã, enquanto tomava uma xícara de chá, ele se aproximou por trás e descansou as mãos sobre meus ombros, seus polegares massageando suavemente meu pescoço.
“Você está pensando demais de novo”, ele murmurou, sua voz um ronco baixo.
“Eu só estava pensando em como tudo é diferente”, respondi, uma mentira pesada na língua. Eu queria perguntar, “Isso é você, Ree, ou é o vínculo?” Mas tinha medo da resposta. Ele apenas apertou seu abraço, um pequeno gesto territorial que eu começava a reconhecer. A tensão nos seguiu até a Cúpula de Midsummer, um encontro anual das matilhas do Norte da América. O alfa de cada matilha era obrigado a comparecer com sua companheira. Era uma demonstração de poder, de alianças, e de unidade.
Senti a ansiedade familiar subir pela minha espinha assim que chegamos à vasta propriedade cercada por árvores. Esse era um mundo de lobisomens, de honra, de tradições antigas, e eu era a humana entre eles. Os sussurros começaram imediatamente. Uma humana Luna? Isso é realmente possível? Seus olhares me avaliavam. Ree era uma parede sólida e inabalável ao meu lado. Sua mão estava nas minhas costas, o polegar fazendo pequenos círculos, uma âncora silenciosa em um mar turbulento. Fomos uma exibição, um testemunho de uma velha profecia, e eu podia sentir os olhos de todos os lobos em cima de nós.
As apresentações formais começaram, mas meu foco estava em outro lugar. Um novo alfa havia chegado, um homem que irradiava um tipo diferente de poder de Ree. Ele era bonito, com um sorriso encantador que parecia ter vida própria. Movia-se pela multidão com uma confiança tranquila, apertando mãos, trocando cumprimentos e deixando todos à vontade. Ele era o tipo de alfa que liderava com um sorriso e um aperto de mão, não apenas com um olhar e uma ordem. Seus olhos encontraram os meus e ele me olhou com um sorriso avaliador nos lábios.
Senti minhas bochechas corarem. Desviei o olhar rapidamente, mas quando olhei de volta, ele já estava vindo em nossa direção.
“Ree”, disse ele, sua voz suave como uísque envelhecido. “Faz tempo. E você deve ser Clara. Sou Kian, Alfa da Matilha Blackwood.”
“Ouvi ótimas coisas sobre você”, disse ele. E eu podia sentir a mão de Ree nas minhas costas tensa.
“Uma humana Luna. Um desenvolvimento realmente fascinante. Deve ser uma grande mudança, de bem, da contabilidade, não é?” Seus olhos estavam fixos em mim, sabendo demais. “É”, respondi, minha voz um pouco trêmula. Kian riu, um som caloroso e genuíno.
“Eu imagino”, ele disse. “Ree aqui tem a reputação de ser uma verdadeira força da natureza. Eu tenho certeza de que você não sabia no que estava se metendo.” Ele virou-se para Ree, o sorriso se ampliando. “Certo, velho amigo? Você teve que convencê-la a entrar no seu mundo, não é? Uma venda de coração, tenho certeza. Ela deve ter visto o contrato como uma saída, e você o viu como uma entrada.”
A alfinetada foi sutil, mas o significado estava claro. Ele sabia. Ele sabia que nosso vínculo não tinha começado em um furor de destino romântico. Ele sabia que havia começado com um pedaço de papel e um acordo desesperado. Senti uma onda de vergonha. A mentira que nos salvara agora estava sendo usada contra nós.
A mão de Ree apertou minha costas. Eu podia sentir a inveja crua irradiando dele. Um zumbido baixo e perigoso. O alfa dentro dele queria desafiar o homem, fazê-lo recuar. Mas o sorriso de Kian não vacilou. Ele tinha uma estratégia diferente, uma que não envolvia uma briga física. Era um jogo de guerra emocional, e pela primeira vez, senti que Ree estava em desvantagem.
Foi uma conversa difícil, Ree disse, sua voz uma advertência baixa e fria. Mas, como você pode ver, o resultado valeu a pena.
Kian deu um último sorriso encantador e se afastou. Mas o dano estava feito. A semente da dúvida fora plantada. Olhei para Ree, e pela primeira vez desde aquele casamento, o vínculo entre nós parecia uma jaula, não um santuário. A pergunta que eu temia fazer agora pairava no ar entre nós. Eu estava com ele por quem ele era, ou por uma mentira que se tornara uma verdade muito real?