ANA DO AÇOITE – A NEGRA QUE ARRANCOU A LÍNGUA DO PADRE E INCENDIOU A FAZENDA BOM DESPACHO

Eu lhe digo, meu filho, o ano era 1783, e o mar já tinha bebido tanto sangue preto que as ondas chegavam escuras no cais de Salvador. Naqueles tempos de pecado grande, o navio português, que trazia a mentira no nome — Nossa Senhora da Guia —, atracou na Bahia. Vinha de terras do Daomé, e das 412 almas que partiram, apenas 391 chegaram.

O sol queimava a pele no cais. Os homens brancos, comerciantes e senhores de engenho, se espremiam nas sombras dos armazéns por causa do fedor que vinha do navio. Cheiro de morte, de carne podre misturada com sangue e suor. O que saiu dali não parecia gente, parecia sombra. Corpos magros, olhos fundos que já tinham visto o outro lado da vida.

E foi ali, no meio daquela confusão, que ela apareceu.

Ana ainda não era do Açoite, era só Ana, menina de 12 anos, corpo miúdo, mas firme, pele preta retinta. Ela desceu do navio acorrentada a outras mulheres, que vinham de cabeça baixa, tremendo. Ana, porém, vinha de cabeça erguida. Os olhos dela eram brasa, não piscavam, não lacrimejavam. Olhavam fixo, feito olho de cobra antes do bote.

Um feitor gordo, sem-vergonha, de nome Joaquim Tigre, viu a menina e riu. “Ô negrinha atrevida, vamos quebrar esse orgulho logo, que aqui é terra de cristão e escravo que olha de frente, apanha até virar poeira.”

Ele se aproximou, pegou o queixo de Ana com a mão suja de gordura e cachaça, levantou o rosto dela para a luz. E Ana não desviou o olhar, ficou encarando o homem, não chorou, não implorou, só olhou. E naquele olhar tinha uma promessa que o feitor ainda não sabia ler: Você vai pagar por essa mão.


A noite caiu feito maldição. No galpão onde os africanos esperavam a feira do dia seguinte, só havia chão de barro e cheiro de medo. Ana ficou sentada num canto de costas para a parede. Uma velha magra, que tinha sido griô em Angola, sussurrou: “Menina, abaixa esse olhar. Abaixa que o orgulho mata mais rápido que fome.”

Ana respondeu em voz baixa, mas firme, feito raiz de Baobá. “Na minha terra, minha mãe era rainha. Rainha não abaixa o olhar, nem quando a matam.”

No dia seguinte, Ana foi vendida junto com outras 13 mulheres para o Comendador Manuel Pinto de Souza, dono da fazenda do Bom Despacho. Homem gordo, branco feito sebo, que batizava escravo com a mão direita e mandava açoitar com a esquerda.

Levaram as mulheres para o pátio da alfândega. Acenderam a fornalha, colocaram o ferro em brasa para esquentar. Ferro em forma de cruz. O ferrador aproximou o ferro. A cruz estava vermelha, chiando, fumegando. Ele encostou no ombro esquerdo de Ana.

O cheiro de carne queimada subiu, a pele estalou. E Ana não gritou, não deu um gemido, não derramou uma lágrima, só cerrou os dentes e olhou pro céu. Naquele silêncio de dor, ela fez uma promessa que ninguém ouviu: Essa cruz queima minha carne, mas vai queimar a alma de quem mandou. Não vai morrer. Vai virar raiva.

Quando tiraram o ferro, a marca ficou perfeita. Cruz gravada funda, carne viva sangrando. Ana olhou para o ferrador, sorriu, um sorriso pequeno, mas que fez o homem dar um passo para trás. “Até a sua morte,” ela sussurrou em Fon, língua que ninguém entendeu, mas que carregava uma maldição antiga.

Naquela noite, a Dama Gertrude decidiu que Ana seria instrumento. Instrumento de justiça, instrumento de vingança. Naquela noite nasceu Ana do Açoite.


A fazenda do Bom Despacho era um engenho grande. A Casa Grande, branca feito ossada ao sol, ficava no alto do morro. Embaixo, como ferida na terra, ficavam as senzalas.

Joaquim Tigre, o feitor-mor, recebeu as mulheres novas. “Aqui vocês vão aprender o que é trabalho de verdade.” As outras mulheres baixaram a cabeça. Ana continuou olhando para ele.

“Ô negrinha, você não aprendeu ainda. Escravo olha pro chão, não olha para branco no olho,” gritou o feitor.

Ana não desviou o olhar.

Naquele momento, Dona Feliciana de Bragança e Souza, esposa do Comendador, chamou da varanda. Mulher branca, de pele mole, invejosa das negras que pariam filhos. Ela olhou Ana de cima a baixo. “Que negrinha feia, toda marcada. Manda essa pro eito, longe da minha vista.”

Naquele momento, Ana abriu a boca e falou, não em português, mas em Fon. As palavras saíram claras, com a cadência de uma reza, mas com o peso de uma maldição: “O Enun Madó no Kung Be Dó.” (O céu não cai, mas o ventre da senhora cairá.)

O Padre Inácio de Almeida, capelão da fazenda, magro de olhos fundos, aproximou-se. “Essa é possuída. Traz o mal de África na alma. Precisa ser domada.”

Dona Feliciana mandou: “Joaquim, leve essa negra pro tronco agora. 50 chibatadas e depois passa sal. Quero que ela aprenda que aqui não tem língua de diabo.”


Levaram-na para o terreiro. Amarraram Ana no tronco, tiraram a camisa. A marca da cruz no ombro ainda estava viva. Joaquim Tigre desenrolou o chicote de couro cru.

Pá! O estalo ecoou. O sangue começou a escorrer. Ana não gritou, não gemeu, não derramou uma lágrima.

O feitor bateu, bateu, bateu. A cada golpe, a pele de Ana se abria mais. Mas ela tinha aprendido no ventre da mãe-rainha: Silêncio também é arma. Quem grita perde.

“Por que essa maldita não chora?”, ele gritou quase desesperado.

A anciã de Angola, que assistia, sussurrou: “Porque ela não é daqui. Quem vem de lá com axé de rainha não se quebra com chicote de branco.”

Quando chegou à quinquagésima chibatada, as costas de Ana eram só sangue e carne viva. Jogaram o sal grosso nas feridas abertas. A dor era excruciante, mas Ana não desmaiou. Ela jurou ali, no tronco, com as costas em fogo: Cada chibatada que levei hoje vai voltar para quem mandou. O tronco vai me ver de pé um dia e o feitor vai me ver com chicote na mão.


Ana levou três semanas para conseguir se levantar. As costas eram um mapa de cicatrizes, mas ela carregava as marcas como medalhas de guerra. Voltou para o eito, trabalhando em silêncio.

Dois anos se passaram. O Comendador, bêbado e gordo, desceu à senzala numa noite de chuva grossa, acompanhado de Joaquim Tigre. Ele parou em Ana. “A negrinha atrevida, a que não gritou no tronco. Quero ver se na cama ela também não grita.”

Arrastaram-na pela lama até a Casa Grande, levaram-na para o quarto de hóspedes. O Comendador, corpo branco, gordo, fedendo a suor velho e vinho azedo, a violentou com a ajuda de Joaquim.

Jogaram Ana no terreiro na chuva. Ela ficou ali, sangrando, tremendo, com o corpo dilacerado e a alma quebrada. Ela não chorou, não gritou, pois tinha aprendido: Lágrima é alegria para o opressor. Ela guardou a raiva, guardou a dor, guardou a promessa de vingança.


Seis semanas depois, a barriga de Ana começou a crescer. Gravidez. Filho do Comendador, semente branca plantada à força em ventre preto.

“Não vão tirar,” Ana disse para a anciã, pondo a mão na barriga. “Essa criança é minha.”

Mas Sinhá Feliciana tinha olho de cobra. Chamou Ana na varanda. “Sua negra desgraçada, está prenha de quem?” O Comendador deu de ombros: “E daí? É escrava. É minha. Faço o que quero.”

Sinhá Feliciana ficou roxa de raiva. “Joaquim! Leva essa negra na cozinha. Manda a cozinheira fazer chá de erva de Santa Maria. Dose tripla. Vai tirar essa criança dela agora.”

Fizeram Ana beber três canecas do chá amargo e venenoso. A dor veio em ondas, fazendo o corpo inteiro se retorcer. Ana sangrou por três horas.

Quando a dor finalmente parou, o filho tinha saído. Saiu morto, com sete meses, com os olhos fechados que nunca iam se abrir. Filho de ninguém, filho de violência.

Ana pegou o corpo, não chorou, mas a dor que sentiu foi pior que tudo. Naquela noite, depois que todos dormiram, Ana levou o corpinho do filho para a capela. Cavou um buraco no chão, bem embaixo do altar, onde o Padre pisava todo dia.

Enquanto cobria o buraco, ela fez um juramento: Filho meu, você não pediu para nascer, não pediu para morrer, mas juro pela terra que te recebe. O homem que te fez vai pagar, a mulher que mandou te matar vai pagar. E essa igreja que benzia tudo isso vai virar cinza.

Ela enterrou junto uma cabaça velha com terra do túmulo, uma mecha do próprio cabelo e três gotas de sangue que escorria entre suas pernas. Naquela noite, Ana plantou o Ebó mais poderoso.


Três meses depois, a maldição começou. Dona Feliciana perdeu 15 quilos, ficou amarela, com os olhos fundos. O Comendador teve três quedas em duas semanas. O feitor Joaquim andava com as mãos na virilha, sentindo uma dor que nenhum médico curava.

O Padre Inácio, ao abrir a boca para rezar a missa, sentiu a língua pesada, grossa, inchada.

Naquela segunda-feira, três negras velhas foram lavar a capela. Maria Gorda limpou o altar e viu. Os olhos da imagem de Nossa Senhora do Rosário estavam furados. E dos buracos escorria líquido vermelho, sangue.

A capela explodiu. O Comendador, mancando, reuniu 450 escravos no terreiro. “Quem foi que profanou a imagem?”

O Padre Inácio, com a voz fanhosa, apontou para Ana. “Foi ela! A negra atrevida! Ela que fez feitiço de África!”

Mandaram amarrar Ana no tronco. O Comendador exigiu confissão. Queria Ana queimada viva. O Bispo Auxiliar, Dom Fernando, que viera para o espetáculo, concordou.

Marcaram o castigo para a Quinta-feira Santa.


A Quinta-feira Santa amanheceu vermelha. Trezentas pessoas brancas encheram a capela. Ana foi trazida nua, acorrentada, mas o rosto sereno, como se fosse a juíza.

O Bispo pregou sobre a justiça de Deus. O Comendador bateu a bengala. Joaquim Tigre trouxe uma tesoura de podar parreira. O Padre Inácio desceu do altar, trêmulo, segurando a tesoura para arrancar a língua de Ana.

Mas antes que pudesse fazer qualquer coisa, Ana abriu a boca e sorriu.

“Não preciso arrancar a sua, padre, você mesmo vai oferecer.”

E então ela avançou.

Ana, com as mãos acorrentadas, com os pés sangrando, cravou os dentes na língua do Padre Inácio. Ela puxou. Puxou com a força da raiva de quatro anos de cativeiro. Crack! O som foi de algo se partindo. A língua do Padre Inácio se soltou.

Ana cuspiu no chão. O Padre caiu para trás, sangrando, tentando gritar, mas não tinha mais como.

A capela explodiu. Os brancos gritaram. Ana pegou o cálice que tinha caído, encheu com a mistura do sangue do Padre e do vinho consagrado. E bebeu.

“Agora o sangue de Deus branco desceu pela garganta de negra. Agora estamos quites!”, ela gritou.


As negras do fundo da capela começaram a cantar em Yorubá. Os homens pegaram enxadas. A capela virou prisão.

Ana se aproximou do Bispo, que tremia de medo. “O Senhor não vai morrer hoje,” ela disse. “Vai viver, vai voltar para Salvador. Vai contar o que viu. O tempo de vocês acabou.”

Os escravos tinham espalhado pólvora ao redor. Ana olhou os brancos aterrorizados, olhou os negros com olhos brilhando. Ela ergueu o cálice ensanguentado e disse: “O fogo que vocês prometeram para o inferno dos pretos agora vai queimar o paraíso dos brancos. Soltem as tochas!

As tochas caíram. O fogo consumiu a capela.

Ana saiu. As correntes ainda prendiam os pulsos, mas ela andava como se estivesse solta. A Casa Grande foi invadida e queimada. Dona Feliciana morreu ali, engolida pelo fogo que ajudou a acender.

O Comendador, rastejando no canavial, foi encontrado por Tomé, pai da filha de Ana. Tomé enfiou terra na boca dele. “Engole a terra que você tanto amou! Engole o açúcar que valeu mais que nossas vidas!”


Ao cair da tarde, a fazenda do Bom Despacho era só ruína fumegante. O tronco, quebrado em pedaços, foi jogado no fogo.

Quatrocentos ex-escravos se reuniram no terreiro. Ana subiu nos restos da varanda. “O inferno que eles prometiam pros pretos desceu e engoliu os brancos, mas não acabou. Eles vão voltar, vão trazer exército, vão trazer corrente nova. Então nós vamos embora. Vamos fundar quilombo.”

Sob o céu vermelho, 400 ex-escravos deixaram as cinzas da fazenda e entraram na mata. Ana ia na frente. A promessa tinha sido cumprida.

O fogo tinha nascido do altar. E daquela destruição nasceu o quilombo, resistência, a lenda que duraria mais que qualquer império. Ana do Açoite tinha virado vento. E o açoite, meu filho, não era mais o chicote que cortava as costas dela, era ela mesma.

Related Posts

Our Privacy policy

https://abc24times.com - © 2025 News