A madrugada cobria a vila de São Francisco do Conde com seu manto escuro e silencioso. No engenho Santo Rosário, a luz fantasmagórica da lua cheia iluminava os intermináveis canaviais do Recôncavo Baiano. Joaquina, uma das escravas mais antigas da propriedade, carregava água para a senzala quando um som a fez parar. Era um choro abafado, angustiante, vindo da direção da mata fechada que cercava a plantação.
Joaquina largou o pote no chão. O coração disparou, pois aquela angústia não era de animal, mas de gente sofrendo em segredo. Ela adentrou a plantação de cana com passos rápidos e cautelosos. O orvalho da madrugada molhava seus pés descalços enquanto ela se movia entre as plantas pontiagudas, sentindo o coração martelar de temor.
Finalmente, após minutos que pareceram horas, ela alcançou a origem do lamento. Quando seus olhos se acostumaram com a penumbra, Joaquina sentiu as pernas fraquejarem diante da cena horrível.

Ali estava Ritinha, a filha mais nova da sinhá Lucrécia, amarrada a um velho tronco de castigo. O tronco estava esquecido entre as canas, coberto de musgo e marcas antigas de sofrimento. A jovem tinha os pulsos feridos pelas cordas grossas, a camisola rasgada e suja de terra vermelha. Um pano imundo cobria parcialmente seu rosto, inchado de tanto chorar.
Ritinha era uma moça de corpo robusto, que vivia reclusa na casa-grande, sempre à sombra da irmã, considerada mais bela e digna.
Joaquina aproximou-se com mãos trêmulas e começou a soltar as amarras. “Quem fez isso com a sinhazinha? Quem teve coragem de amarrar a senhora desse jeito cruel?”, sussurrou Joaquina, com a voz embargada. Ela olhava nervosamente ao redor, trabalhando rapidamente nos nós apertados.
Ritinha tremia tanto que mal conseguia se manter em pé quando as cordas finalmente se soltaram. Joaquina a envolveu em seus braços protetores. A jovem soluçava convulsivamente, incapaz de formar palavras.
Finalmente, Ritinha conseguiu murmurar entre soluços: “Foi mamãe. Ela mesma me trouxe aqui.”
“A sinhá diz que eu era uma vergonha para a família, que eu tinha que desaparecer para sempre”, continuou a moça. Joaquina sentiu um aperto no peito, assustada com tamanha desumanidade vinda da própria mãe.
“Você vai ficar bem, minha flor”, prometeu a escrava. Mas ela precisava entender o que havia provocado aquela violência absurda.
Ritinha hesitou longamente, buscando o chão com os olhos, lutando contra o medo de revelar seu segredo. “É que… é que eu estou esperando um filho, dona Joaquina,” disse finalmente, com a voz falhada pela vergonha.
As palavras seguintes foram ainda mais difíceis de pronunciar, presas na garganta. “E o pai… o pai dessa criança é…”
Um barulho vindo da casa-grande interrompeu abruptamente a confissão. Os cães de guarda começaram a latir furiosamente, quebrando o silêncio. Alguém na casa-grande havia percebido a ausência de Ritinha e dado o alarme.
Joaquina agarrou Ritinha pelo braço e a empurrou para dentro da plantação mais densa. “Fique aqui escondida e não faça barulho nenhum, pelo amor de Deus”, ordenou em sussurro urgente. A escrava então correu de volta para a trilha principal, fingindo estar apenas cumprindo suas tarefas noturnas.
Dentro de seu peito, uma tormenta se formava. Lucrécia, tão devota aos santos e orgulhosa de sua posição social, seria capaz de condenar a própria filha à morte por vergonha? E quem seria o pai daquela criança, que causava tanto desespero? Joaquina sentia que algo muito maior e perigoso estava escondido por trás daquela punição cruel.
O dia seguinte amanheceu com um sol escaldante. Na Casa-Grande, o clima era sombrio e pesado. Sinhá Lucrécia mandara trancar todos os quartos e dispensara as mucamas. Ninguém entrava nem saía sem sua ordem.
Enquanto isso, Joaquina escondia Ritinha em um pequeno casebre abandonado perto do rio, trazendo comida e roupa limpa, tudo escondido no fundo de seu balaio.
“Ele não sabe de nada. Ele nem imagina o que está acontecendo”, dizia Ritinha entre soluços de culpa, com a mão sobre o ventre.
“Eu vou proteger a sinhazinha com minha própria vida. Pode ter certeza disso”, prometia a escrava.
Na Casa-Grande, o feitor Justino, brutal e sem escrúpulos, escutava a conversa alterada de sinhá Lucrécia e do Coronel Amâncio, seu marido.
“Aquele desgraçado miserável vai pagar caro por isso. Ele seduziu minha filha inocente,” gritava Lucrécia. “A culpa não é da menina, a culpa é toda dele. E ainda por cima, um negro, um maldito escravo.”
O Coronel, visivelmente embriagado, apenas murmurava com a voz pastosa: “Enterre isso logo e que ninguém mais fale no assunto jamais.”
Joaquina, que havia voltado para a casa para não levantar suspeitas, escutou tudo pela janela dos fundos. Suas pernas fraquejaram quando compreendeu. Ritinha estava grávida de um escravo do engenho. Era por isso que a sinhá queria vê-la morta. Se descobrissem a identidade do pai, os senhores não hesitariam em mandá-lo ao tronco, ou pior, direto para a morte.
Naquela mesma noite, Joaquina confrontou Ritinha com o coração apertado. “Me diga agora, menina, quem é o pai dessa criança que a senhora carrega no ventre?” perguntou com firmeza.
Ritinha chorou copiosamente, demorou uma eternidade para responder, retorcendo as mãos de nervosismo e vergonha. Olhava para todos os lados, temendo ser ouvida através das paredes.
Até que finalmente, ela murmurou: “Foi Pedro, o rapaz que trabalha na moenda.”
Pedro era um jovem de olhos gentis e voz suave, filho de africanos escravizados. Apesar de toda a brutalidade que sofrera, ele tinha um coração puro.
“Foi só uma vez lá na beira do rio, no fim da tarde. Ele me tratou com carinho”, contou Ritinha. “Ele me tratou diferente de todo mundo aqui, como se eu realmente importasse, como se eu fosse alguém especial.”
Joaquina sentiu o mundo girar ao redor. Aquilo podia custar a vida de Pedro, a vida da criança inocente, e a vida de todos que tentassem protegê-los. A tempestade estava apenas começando.
No domingo seguinte, durante a missa obrigatória na capela do Engenho, sinhá Lucrécia mandou chamar Pedro discretamente.
“Você foi visto rondando a varanda da Casa-Grande várias vezes nos últimos meses. Tem algo a dizer sobre isso?”, perguntou ela, com os olhos faiscando crueldade.
Pedro, com a cabeça respeitosamente baixa, respondeu com dignidade: “Nunca faria nada contra a sinhazinha. Posso jurar pelos santos.”
Mas o olhar gélido de Lucrécia já era uma sentença de morte. “Levem esse insolente ao tronco imediatamente. Vamos arrancar a verdade dele na chibata!”, ordenou Lucrécia com voz estridente.
O feitor Justino e seus capangas agarraram Pedro pelos braços e o arrastaram à força diante de todos. O chicote estalou no ar como um trovão aterrorizante, e o primeiro grito de Pedro ecoou até a mata fechada.
O som alcançou a moita distante onde Ritinha, escondida com Joaquina, assistia à cena horrível através de uma fresta. “Pelo amor de Deus, ele vai morrer e é tudo culpa minha! Eu não posso deixar isso acontecer!”, gritava desesperada.
Ritinha tentava correr para se entregar e salvar Pedro, mas Joaquina a segurava com toda a força. “Não, sinhazinha, se você aparecer agora, eles matam os dois sem pensar duas vezes. Espere, tenha fé”, implorava a escrava.
Pedro já não sentia mais as costas destroçadas pelos açoites. Seus gritos haviam cessado, substituídos por gemidos baixos de agonia. Mas o que doía mais profundamente era saber que Ritinha talvez estivesse morta.
Foi então que, como um raio, surgiu a figura dela no meio da clareira. Ritinha, suja de terra, com a barriga já visível e os cabelos desgrenhados. Ela berrava com uma força que ninguém imaginava que possuísse.
“Parem imediatamente! Foi por amor! Eu que escolhi ele!“
Todos os presentes pararam, congelados como estátuas de sal. O feitor Justino hesitou com o chicote ainda erguido no ar. O Coronel Amâncio, que observava da varanda, jogou fora o copo e desceu as escadas cambaleante, tentando compreender o escândalo.
Sinhá Lucrécia soltou um grito agudo de desespero e correu até a filha, tentando cobri-la. “Você enlouqueceu completamente, menina! Está perdida!”
Ritinha se desvencilhou com uma determinação feroz. Ela estava disposta a enfrentar qualquer consequência para salvar o homem que amava.
“Pedro. Ele é o pai da criança que carrego e se ele morrer aqui hoje, eu morro também,” declarou Ritinha. Sua voz ecoou por todo o engenho com clareza absoluta.
O silêncio que se seguiu foi ensurdecedor. O Coronel, envergonhado diante dos olhares dos outros senhores, mandou soltar Pedro, mas ordenou que o levassem acorrentado ao cárcere escuro e úmido.
Durante a noite, Joaquina entrou sorrateiramente no cárcere. Ela limpava as feridas terríveis de Pedro com água e ervas. “Por que, meu filho? Por que você não negou tudo quando teve a chance de se salvar?”, perguntou baixinho.
Pedro olhou nos olhos dela com a serenidade surpreendente dos justos. Sua voz estava rouca, mas suas palavras saíram claras e firmes. “Porque pela primeira vez na minha vida, eu fui verdadeiramente amado. E não por uma escrava como eu, mas por uma sinhá que me viu como homem, não como animal.”
Havia uma dignidade em suas palavras que fez Joaquina chorar silenciosamente. “Mesmo que isso me custe a vida aqui neste cárcere imundo, eu não vou negar nosso amor,” continuou Pedro.
Na manhã seguinte, Lucrécia mandou chamar Joaquina para uma conversa particular. A sinhá estava pálida, com os olhos fundos.
“Você sabia de tudo desde o começo, não sabia? Você ajudou a esconder minha filha de mim,” acusou com voz trêmula.
Joaquina a sentiu firmemente. “Sabia sim, sinhá, e sei mais. Sei que essa criança pode ser a salvação desta casa amaldiçoada.”
Lucrécia riu de forma amarga e histérica. “Salvação? Isso é uma mancha eterna!”
Joaquina se aproximou corajosamente. “A vergonha não está no amor que eles sentem um pelo outro. A vergonha está na forma cruel como a senhora trata as pessoas que ama.”
As palavras caíram como pedras pesadas no coração de Lucrécia.
Naquela mesma tarde, uma carta chegou do Rio de Janeiro. O irmão de Lucrécia, um deputado imperial, enviava um aviso urgente: os abolicionistas estavam pressionando o governo por investigações rigorosas em engenhos acusados de maus-tratos. Lucrécia sentiu um frio percorrer a espinha. Se descobrissem que ela havia mandado castigar a própria filha no tronco dos escravos, o nome da família estaria destruído.
Nesse exato momento de tensão, Ritinha convocou todos ao alpendre da Casa-Grande: senhores, feitores, escravizados e vizinhos. Diante de todos, ela fez um anúncio que ninguém jamais esqueceria.
“Pedro é o pai do meu bebê. Eu vou me casar com ele, com ou sem a bênção desta família.”
Um burburinho imenso tomou conta do engenho. O Coronel levantou a mão para protestar, mas foi interrompido por um detalhe que ninguém ali sabia.
Ritinha tirou do pescoço uma correntinha antiga e delicada com uma medalhinha de ouro. “Essa medalha foi dada pela minha avó africana antes de morrer,” revelou Ritinha. “Antes de ser escravizada e trazida à força para o Brasil, ela era princesa em sua terra natal.”
Todos ficaram em silêncio absoluto, tentando processar a magnitude daquela revelação inesperada.
“Mamãe nunca quis que eu dissesse isso para ninguém, mas corre sangue africano nas veias desta casa, desta família tão orgulhosa.”
Todos os olhares se voltaram para Lucrécia, que ficou lívida, e abaixou a cabeça em silêncio pela primeira vez.
A verdade libertadora era essa. O pai de Lucrécia havia engravidado uma escrava da casa há décadas atrás. Lucrécia nascera desse pecado racial que ela tentara esconder a vida toda, negando suas próprias raízes.
Diante dessa verdade impossível de negar, não houve mais gritos, nem castigos. Pedro foi solto do cárcere imediatamente.
Joaquina segurou a mão trêmula de Ritinha e sussurrou com lágrimas: “Agora você entende por que estava protegida? Porque essa criança que você carrega, minha filha querida, ela é esperança viva.”
No mês seguinte, quando as feridas de Pedro estavam cicatrizadas, eles se casaram na pequena capela do engenho.
Nascia ali uma nova era. Aos poucos, sob a pressão das novas leis e da própria consciência despertada, os castigos brutais cessaram. E quando a filha de Pedro e Ritinha nasceu meses depois, ela foi batizada com o nome significativo e poderoso de Esperança.
Naquele lugar marcado por dor, um amor proibido, uma escrava corajosa e uma verdade esquecida foram capazes de plantar as sementes da liberdade futura.