Ele era considerado incapaz de se reproduzir… seu pai o entregou à escrava mais forte em 1859.

A Fazenda San Rafael estendia-se sob o sol implacável do vale de Oaxaca, como uma cicatriz sobre a terra. Era 1859 e as paredes de adobe branco brilhavam com o calor de agosto, refletindo a luz até cegar qualquer um que se atrevesse a olhar diretamente.

Dentro da casa principal, Dom Sebastián Belarde observava o seu filho mais novo com uma mistura de desprezo e resignação que aperfeiçoara durante 23 anos. Rodrigo Belarde permanecia sentado na sua cadeira de rodas de madeira escura com aros de metal que rangiam levemente a cada movimento. Era magro, pálido, com mãos que tremiam ao segurar qualquer coisa mais pesada do que uma chávena de chá.

A escarlatina tinha-o atingido quando tinha 6 anos e, embora tivesse sobrevivido, as suas pernas não. Ficaram fracas, inúteis, condenando-o a uma vida sobre rodas enquanto outros homens caminhavam. Três médicos diferentes, incluindo um trazido especialmente da Cidade do México, tinham declarado o mesmo. O rapaz era provavelmente estéril.

As febres infantis tinham danificado algo essencial nele. “És o último do meu sangue”, disse Dom Sebastián, a sua voz a ecoar no escritório escuro. “O teu irmão morreu há 2 anos. A tua mãe está no seu túmulo e tu és isto.” Rodrigo mantinha o olhar baixo, estudando as rodas da sua cadeira. Conhecia cada risco na madeira, cada irregularidade no metal; tinha-as memorizado durante anos de repreensões semelhantes.

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“Tomei uma decisão”, continuou o seu pai, servindo-se de mezcal de uma jarra de barro. “Se os médicos estiverem errados, vamos comprovar. E se tiverem razão, pelo menos saberei que tentei tudo antes que esta fazenda passe para as mãos dos teus primos em Puebla.”

Rodrigo levantou o olhar lentamente. Havia algo no tom do seu pai que lhe gelou o sangue. “O que queres dizer?”

Dom Sebastián bebeu um longo gole, saboreando a ardência do álcool antes de responder. “Inés, a mais forte de todas. Se alguém pode dar-te um filho, é ela. Observei-a durante anos. É como uma égua de criação, perfeita. E se funcionar, o menino será teu legalmente. O meu sangue continuará, ainda que diluído.”

O estômago de Rodrigo contraiu-se. Inés. Todos na fazenda conheciam Inés. Era impossível não a conhecer. Alta, com braços que podiam carregar sacos de milho que faziam dois homens cambalear, pele escura curtida pelo sol e um olhar que podia atravessar o aço. Tinha 32 anos e tinha sobrevivido a coisas que matariam a maioria: um marido que tinha morrido enforcado por roubar, dois filhos que não sobreviveram à infância e anos de trabalho que teriam destruído qualquer um.

“Pai, não podes”, começou Rodrigo.

“Que não posso?” A voz de Dom Sebastián tornou-se afiada como navalha. “Dizer ao meu bem o que fazer ou dar ao meu filho inválido uma última oportunidade de ser um homem?”

Rodrigo sentiu as palavras como bofetadas. Cada uma aterrando com precisão cirúrgica nas suas inseguranças mais profundas.

“Irás à cabana dela esta noite”, ordenou Dom Sebastián. “Tomás te levará e voltarás nas noites seguintes até cumprires o teu dever ou até que fique claro que és verdadeiramente inútil. Entendes?”

O quarto parecia girar. Rodrigo procurou algo, qualquer coisa para dizer, mas a sua boca estava seca como o pó do caminho.

“Sim, pai.”


Inés estava a moer milho quando o feitor veio buscá-la. O metate de pedra produzia aquele som rítmico que tinha acompanhado toda a sua vida, um sussurro áspero que lhe recordava as mãos da sua avó, que lhe tinha ensinado tudo o que sabia sobre sobreviver. A tarde caía sobre a fazenda, tingindo tudo de laranja e púrpura.

“O patrão quer ver-te”, disse Tomás, o feitor, sem a olhar diretamente. Nunca a olhava diretamente. Nenhum dos homens o fazia. Inés intimidava até aqueles que carregavam chicote e pistola.

Deixou o moedor de pedra de lado e limpou as mãos no avental manchado. 32 anos na Fazenda San Rafael tinham-lhe ensinado que quando o patrão chamava, um obedecia. Não havia alternativa, não havia escape.

Dom Sebastián esperava-a no escritório, aquele lugar que cheirava a tabaco de cachimbo e papel velho. Rodrigo estava ali também, sentado na sua cadeira de rodas junto à janela, olhando para fora como se quisesse desaparecer na paisagem. Inés conhecia-o vagamente, o filho doentio que não podia andar, que passava os dias a ler livros e a escrever cartas que ninguém entendia.

“Inés”, começou Dom Sebastián, sem preâmbulos, “vais ajudar o meu filho. Ele precisa de uma mulher forte e tu és a mais forte que eu tenho.”

Ela entendeu imediatamente. Não era estúpida. Tinha visto esta história desenrolar-se antes em outras fazendas. Tinha ouvido os sussurros sobre patrões que usavam as suas escravas como gado de criação. Sentiu algo frio e pesado a assentar no seu estômago.

“Irás à tua cabana nas noites seguintes”, continuou o patrão. “Rodrigo te visitará. Se ficares grávida, o menino será reconhecido como Belarde. Terás melhor comida, melhor alojamento. Se for varão, talvez até a liberdade, eventualmente.”

A palavra “liberdade” flutuou no ar como um pássaro morto. Inés olhou para Rodrigo, que mantinha os olhos fixos nas suas próprias mãos inúteis sobre as rodas. Parecia doente, parecia aterrorizado.

“E se eu disser que não?”, perguntou ela. As palavras saíram antes que pudesse detê-las.

A expressão de Dom Sebastián endureceu. “Então as tuas rações serão reduzidas para metade. Trabalharás nos campos mais duros e quando te tornares demasiado fraca para ser útil, vender-te-ei a uma fazenda de açúcar em Veracruz, onde a vida média é de 3 anos. Isso responde à tua pergunta.”

Inés apertou os dentes. Claro que respondia à sua pergunta. Havia sempre apenas uma resposta real.

“Sim, patrão.”

“Bem, começas esta noite. Tomás levará Rodrigo à tua cabana depois do anoitecer.”


A cabana de Inés era pequena, mas limpa, com paredes de adobe rachado e um teto de palma que sussurrava a cada brisa. Havia uma cama estreita, uma mesa de madeira rústica e poucos objetos pessoais, uma cruz de madeira que tinha pertencido à sua mãe, um cântaro de barro para água e uma manta tecida que tinha feito ela mesma durante os longos invernos.

Esperou sentada na cama, ouvindo os sons da noite. Os grilos cantavam a sua sinfonia eterna. Algum cão ladrava na distância. O vento movia as folhas secas pelo chão de terra batida. Quando ouviu o ranger das rodas a aproximar-se, soube que tinha chegado o momento.

Tomás apareceu na porta, empurrando a cadeira de Rodrigo. O feitor deixou-o mesmo dentro do limiar, murmurou algo inaudível e desapareceu na escuridão. Rodrigo e ela ficaram a olhar um para o outro em silêncio. Ele parecia mais um condenado do que um homem vindo para um encontro. As suas mãos descansavam tensas sobre os braços da cadeira e os seus olhos evitavam os dela com determinação.

“Posso, posso entrar mais?”, perguntou com voz quase inaudível. A pergunta era tão absurda que Inés quase se riu, como se ela pudesse recusar, como se qualquer um dos dois tivesse escolha.

“Entra”, disse simplesmente, levantando-se para o ajudar a rolar mais para dentro.

Rodrigo moveu as rodas com dificuldade sobre o chão irregular de terra. Ficou perto da mesa como se não soubesse o que fazer a seguir. O silêncio estendeu-se entre eles, pesado e sufocante.

“Eu”, começou ele, depois parou. “Não quero isto. Quero que saibas.”

Inés estudou-o com olhos que tinham visto demasiado para se surpreenderem com nada. “E tu achas que eu quero?”

A pergunta fê-lo recuar na cadeira como se o tivesse atingido. Ficou a olhar para ela, realmente a olhar para ela. Talvez pela primeira vez viu não apenas a força física que todos comentavam, mas também as cicatrizes nos seus braços, as linhas à volta dos seus olhos, a forma como segurava o seu corpo como se estivesse sempre preparada para se defender.

“Não”, disse finalmente. “Suponho que não.”

Outro silêncio. Lá fora, uma coruja ululou. Era um som que os camponeses consideravam de mau presságio.

“Então, fica aí”, disse Inés, apontando para onde ele estava. “Se vamos fazer isto, pelo menos falemos primeiro. Não fiques calado como pedra.”

Rodrigo assentiu, agradecido por ter algo para fazer além de se sentir miserável.

“Os médicos dizem que provavelmente não posso ter filhos”, disse de repente. “A febre quando era criança, a mesma que me deixou assim…” Bateu nas rodas com frustração. “Danificou algo em mim. Eu sei, toda a gente sabe. Então, isto é…” Fez um gesto vago com a mão. “É só para o meu pai poder dizer que tentou, para ele poder culpar-me oficialmente quando não funcionar.”

Havia tanta amargura na sua voz que Inés sentiu algo parecido com compaixão, embora lutasse contra esse sentimento. A compaixão era perigosa. A compaixão fazia com que baixasses a guarda.

“E o que acontece contigo se não funcionar?”, perguntou ela.

Rodrigo encolheu os ombros, um gesto de derrota total. “Provavelmente me envia para um mosteiro ou me casa com alguma prima distante que precise de dinheiro ou simplesmente me ignora até que eu morra, o que provavelmente não demorará muito.”

A honestidade brutal da sua resposta surpreendeu Inés. Os filhos de patrões não costumavam falar assim com essa classe de nudez emocional.

“E eu”, continuou Rodrigo, olhando-a finalmente nos olhos. “Se ficares grávida e for menina, o quê? Então foste um fracasso útil. Dar-te-ão trabalho na casa grande, suponho, melhor do que os campos. E se for menino, então és a minha salvação.” A sua voz quebrou ligeiramente na última palavra, traindo mais emoção do que pretendia mostrar. “Um menino Belarde, mesmo um com o meu sangue, vale mais do que eu. O meu pai vai reconhecê-lo, criá-lo como herdeiro e talvez, só talvez me deixem viver o resto dos meus dias sem ser completamente inútil.”

Inés processou isto. Era uma equação brutal: o seu corpo como recipiente, um menino como moeda de troca, duas vidas presas nos planos de um homem velho que via as pessoas como peças num tabuleiro.

“Tenho que te perguntar uma coisa”, disse ela depois de um longo momento.

“O quê? Alguma vez estiveste com uma mulher?”

Rodrigo corou violentamente, o vermelho estendendo-se do seu pescoço às suas orelhas. “Eu não. Nunca. Quem é que ia querer estar com alguém como eu?” O autodesprezo na sua voz era palpável.

Inés sentiu algo a amolecer no seu peito. “Então teremos que aprender juntos”, disse finalmente. “Porque eu não sei tu, mas eu preferiria que isto funcionasse de alguma forma. Preferiria ter algum tipo de futuro, mesmo que seja um que eu não escolhi.”

Rodrigo olhou para ela com algo parecido com gratidão. “Como? Como fazemos isto?”

Inés levantou-se, os seus movimentos deliberados e medidos. Aproximou-se dele devagar, ajoelhando-se para ficar ao seu nível. Os seus olhos ficaram à mesma altura.

“Primeiro”, disse ela, “deixamos de nos tratar como estranhos obrigados. Se vamos partilhar isto, precisamos de, pelo menos, nos entender.” Estendeu a sua mão grande e calejada para ele.

Rodrigo olhou para ela por um longo momento antes de lhe pegar na mão com a sua, pálida e suave. O contraste era absoluto. Ela toda força e sobrevivência, ele toda fragilidade e dúvida.

“Sou Inés”, disse ela, “e tu és Rodrigo, não o filho do patrão, não a escrava. Apenas duas pessoas presas na mesma jaula.”

“Inés”, repetiu ele como se estivesse a provar o nome pela primeira vez.

“Está bem, sejamos pessoas.”


Então, naquela primeira noite, não aconteceu nada além de conversa. Sentaram-se, ela na cama e ele na sua cadeira e falaram até as velas se consumirem. Falaram sobre coisas pequenas, primeiro o clima, os campos, a comida, depois gradualmente sobre coisas maiores, medos, sonhos, os fantasmas dos seus passados.

Rodrigo contou-lhe sobre o seu irmão mais velho, forte e cruel, que o tinha empurrado pelas escadas mais do que uma vez para ver se conseguia fazê-lo andar de novo. Contou-lhe sobre a sua mãe, distante e fria, que desviava o olhar cada vez que o via na cadeira. Contou-lhe sobre os livros que lia, histórias de lugares distantes onde as pessoas eram livres de escolher as suas próprias vidas.

Inés contou-lhe sobre o seu marido, um homem que tinha tentado roubar comida para a alimentar durante uma seca e tinha acabado pendurado numa árvore enquanto ela era obrigada a olhar. Contou-lhe sobre os seus filhos mortos, sobre como tinha aprendido a endurecer o seu coração para que a dor não a destruísse. Contou-lhe sobre os campos, sobre o trabalho que quebrava costas e matava almas, sobre a forma como tinha sobrevivido, tornando-se algo em que ninguém se atrevia a tocar.

Quando finalmente se separaram, pouco antes do amanhecer, ela ajudando-o a posicionar a sua cadeira para que Tomás o encontrasse, algo tinha mudado. Não era amizade exatamente, nem confiança, mas era um entendimento, uma trégua entre dois prisioneiros que partilhavam uma cela.


As noites seguintes estabeleceram um padrão. Tomás trazia Rodrigo depois de o sol se pôr, quando as sombras se alongavam e os trabalhadores regressavam exaustos às suas cabanas. Rodrigo trazia coisas. Primeiro ninharias como fruta extra ou pão mais fresco, depois coisas mais significativas como uma manta nova quando notou que a de Inés estava gasta, ou azeite para a lamparina quando a vela acabava demasiado depressa. Falavam, sempre, falavam primeiro.

Inés descobriu que Rodrigo tinha uma mente afiada presa num corpo que não lhe obedecia. Conhecia história, filosofia. Podia ler em três línguas. Contou-lhe sobre revoluções noutros países, sobre ideias perigosas, sobre liberdade e igualdade que circulavam entre os intelectuais da cidade.

“Sabes ler?”, perguntou-lhe uma noite, por volta da segunda semana.

“Não”, admitiu Inés. “Nunca tive a oportunidade. Os escravos não precisam de ler, segundo o teu pai.”

Rodrigo franziu o sobrolho, aquele gesto pensativo que ela tinha aprendido a reconhecer. “Eu poderia ensinar-te, se quiseres. Tenho livros.”

Era uma oferta perigosa. Os escravos encontrados com materiais de leitura podiam ser castigados severamente. Mas algo em Inés respondeu à ideia, uma fome que não sabia que tinha.

“Sim”, disse, “ensina-me.”

E assim começaram as lições. Rodrigo trazia páginas arrancadas de livros velhos. Praticavam letras desenhadas na terra com paus. Sussurravam palavras na escuridão. Inés provou ser uma aluna rápida, a sua mente absorvendo informação com a mesma determinação com que o seu corpo tinha aprendido a suportar trabalho brutal.


Mas também havia o outro, a razão pela qual Dom Sebastián os tinha juntado em primeiro lugar. Essa parte foi mais difícil, mais desajeitada. Inés tinha que ajudá-lo a mover-se da cadeira para a cama, e a vulnerabilidade disso, de precisar de ser carregado, de depender completamente dela, fazia Rodrigo sentir-se ainda mais exposto.

As primeiras vezes foram rápidas e marcadas pela vergonha mútua. Rodrigo, desculpando-se constantemente pela sua inabilidade, pela sua fraqueza, por precisar tanto dela, mas gradualmente, à medida que as semanas passavam, encontraram um ritmo. Aprenderam os corpos um do outro, não com paixão, mas com uma espécie de curiosidade paciente que lentamente, muito lentamente, se transformou em algo mais próximo de ternura. Inés descobriu que havia gentileza em ajudá-lo, em ser forte por ambos. E Rodrigo descobriu que havia dignidade em aceitar ajuda, em permitir-se ser vulnerável com alguém que não o julgava por isso.

Uma noite, aproximadamente um mês após o início deste arranjo, Rodrigo chegou com um hematoma escuro na sua face e arranhões nos seus braços. “O que aconteceu?”, perguntou Inés, tocando as marcas com dedos surpreendentemente gentis.

“O meu pai”, disse Rodrigo simplesmente. “Está impaciente, quer resultados. Atirou-me da cadeira quando lhe disse que era demasiado cedo para saber. ‘Não funciona assim. Um mês não é suficiente.'”

“Eu sei, tu sabes, mas ele”, encolheu os ombros. “Ele vê o que quer ver e agora vê fracasso.”

Inés sentiu algo perigoso a acordar no seu peito, raiva, não por ela, mas por este homem frágil que nunca tinha pedido nada disto, que era tão vítima do seu pai quanto ela o era.

“Magoadas-te muitas vezes?”

Rodrigo não respondeu, mas o seu silêncio era resposta suficiente. Naquela noite, depois, enquanto descansavam na escuridão a ouvir o vento, Rodrigo na cama e Inés a ajudá-lo a acomodar-se, ele falou com voz tão baixa que Inés quase não o ouviu.

“Às vezes penso em fugir, apenas desaparecer. Há lugares no norte, dizem, onde os fugitivos podem encontrar trabalho e começar de novo, mudar os seus nomes, viver como quiserem.”

“Isso é para escravos que fogem”, assinalou Inés, “não para filhos de fazendeiros e menos para um que precisa de uma cadeira.”

“Que diferença faz?” A sua voz tinha um gume amargo. “Estou tão preso quanto tu, só que as minhas correntes são de madeira e metal.”

Inés considerou isto. Havia verdade nisso, embora não verdade completa. Rodrigo podia comer quando quisesse, dormir sob um teto sólido. Nunca temeu o chicote ou ser vendido. Mas também entendeu o que ele queria dizer. A prisão das expectativas, o peso de um apelido, a impotência absoluta do seu próprio corpo.

“Se fosses fugir”, disse cuidadosamente. “Farias sozinho?”

Rodrigo virou-se para ela na escuridão. Embora não pudesse ver a sua expressão claramente, sentiu a intensidade do seu olhar.

“Não”, disse finalmente, “não faria sozinho, embora não saiba como funcionaria. Um homem em cadeira de rodas e uma escrava fugitiva. Não iríamos muito longe. Mas pensarias em tentar contigo?”

“Sim. Pensaria em tentar.”

O significado dessas palavras flutuou entre eles como fumo. Era uma sugestão impossível, um sonho de loucos. Mas por um momento, naquele espaço liminar entre a vigília e o sono, parecia quase possível.


O segundo mês trouxe mudanças subtis. Inés notou que o seu corpo se sentia diferente, embora não pudesse identificar exatamente como. Os seus seios estavam mais sensíveis e certas comidas que antes desfrutava agora lhe reviravam o estômago. Disse a si mesma que era apenas o stress, o esgotamento, o peso de tudo o que estava a acontecer.

Juana, uma mulher mais velha que trabalhava na cozinha da casa grande, olhou para ela com olhos conhecedores um dia enquanto Inés carregava água. “Estás grávida”, disse sem preâmbulo. “Vejo isso na tua cara, na forma como te moves.”

Inés quase deixou cair o cântaro. “Não sabes, é demasiado cedo.”

“Tenho 60 anos, menina. Já vi mulheres grávidas suficientes para saber. Dois meses, diria eu, talvez menos.”

O coração de Inés batia como um tambor de guerra. Era possível, realmente tinha funcionado. E o que significaria se fosse verdade?

Nessa noite, quando Rodrigo chegou, Tomás empurrando a sua cadeira como sempre, ela contou-lhe. Ele ficou imóvel por um longo momento, as suas mãos congeladas sobre as rodas.

“Tens a certeza?”

“Não, mas Juana acha que sim, e ela percebe destas coisas. Juana da cozinha.” A sua voz tensou-se. “Disseste-lhe?”

“Não precisei. Ela simplesmente sabia.”

Rodrigo tentou virar a sua cadeira nervosamente, mas as rodas prenderam-se no chão irregular. Inés aproximou-se para o ajudar e ele deixou cair a cabeça entre as mãos.

“Se for verdade, se estiveres realmente grávida, tudo muda. O meu pai, ele vai querer confirmação, vai trazer médicos, vão vigiar-te constantemente. E eu”, levantou o olhar, olhando-a com expressão estranha. “Eu quero que seja verdade. Não é horrível? Quero que funcione. Embora tudo isto tenha começado como algo que nenhum de nós queria.”

Inés entendeu. Ela também sentia essa mistura confusa de emoções, esperança, medo, culpa por ter esperança, porque um bebé significava mudança, significava possibilidade, mesmo que essa possibilidade viesse envolta em complicações impossíveis.

“Esperemos”, disse finalmente, “esperemos até termos a certeza antes de dizermos ao teu pai, não precisamos de lhe dar falsas esperanças ou falsas razões para nos castigar se estivermos enganados.”

Rodrigo assentiu, mas nessa noite não conseguiu ficar quieto. As suas mãos continuavam a mover-se nervosamente sobre as rodas, fazendo pequenas voltas de um lado para o outro. Finalmente, Inés ajoelhou-se à frente dele e pegou nas suas mãos.

“Se for verdade”, disse ele, “se houver um bebé, eu protegê-lo-ei do meu pai, de quem for. Não deixarei que o usem como peão nos seus jogos.”

Era uma promessa impossível de cumprir e ambos o sabiam. Mas Inés apertou as suas mãos de qualquer maneira, aceitando o gesto pelo que era, uma tentativa de lhe dar algo parecido com segurança num mundo que oferecia muito pouca.


As semanas seguintes foram tensas. Inés continuou a trabalhar, embora começasse a sentir ondas de náusea que a atingiam sem aviso. Ocultava isto o melhor que podia, sabendo que qualquer sinal de fraqueza podia ser usado contra ela, mas o seu corpo traía os seus segredos de formas subtis, a forma como evitava certos cheiros, como precisava de descansar mais frequentemente, o leve arredondamento do seu ventre que só alguém que a conhecesse bem notaria.

Rodrigo estava cada vez mais tenso. Dom Sebastián tinha começado a fazer perguntas incisivas durante os jantares, perguntando sobre o progresso com um tom que fazia cada palavra soar como ameaça.

Uma noite, Rodrigo não apareceu na cabana. Inés esperou até ao amanhecer, preocupada, até que Juana veio com notícias. “O patrão tem-no trancado no seu quarto”, sussurrou. “Diz que é um castigo por ser lento nas suas obrigações.”

Inés sentiu a raiva ferver no seu estômago. Três dias depois, quando finalmente Rodrigo regressou, tinha mais hematomas e um olhar vazio que Inés não tinha visto antes. “Trará o médico na próxima semana”, disse sem preâmbulo. “‘Examinará a escrava’, foram as suas palavras. Se não houver nada, então considerará outras opções.”

“Que opções?”

“Uma prima em Guadalajara precisa de marido. Diz que se isto falhar, me enviará com ela, que pelo menos posso ser útil a administrar as suas terras, embora não possa dar-lhe herdeiros próprios.” Inés viu o terror nos seus olhos. Ser enviado para longe significava perdê-la, perder qualquer pequena liberdade que tinham encontrado nas suas conversas noturnas.

“Deixa-o trazer o médico”, disse ela com mais calma do que sentia. “Se eu estiver grávida, ele confirmará. Se não estiver, pelo menos saberemos.”

“E depois o quê?”

“Então sobrevivemos como sempre fizemos.”


Na noite anterior à chegada do médico, nem Rodrigo nem Inés dormiram. Ele permanecia na sua cadeira junto à cama onde ela estava deitada, as suas mãos entrelaçadas no espaço entre eles.

“Se estiveres grávida”, disse Rodrigo finalmente, “e for menino, o meu pai vai pegá-lo, vai criá-lo para ser como ele, cruel, calculista, a ver as pessoas como propriedade. Eu sei. E se for menina, provavelmente a ignora. Poderia crescer contigo, mas será sempre tratada como menos do que nada. Eu sei. Então, o que fazemos?”

Inés virou-se para ele, os seus olhos a brilhar na escuridão. “Sobrevivemos como sempre fizemos. E se houver um bebé, ensinamos-lhe a sobreviver também. Ensinamos-lhe a ser forte, a ser inteligente. Ensinamos-lhe a ler.” Sorriu ligeiramente. “Como me ensinaste a mim?”

Rodrigo fechou os olhos e ela viu uma lágrima escapar pela sua face. “Não sei como fazer isto”, sussurrou. “Não sei como ser pai. Não sei como proteger alguém quando nem sequer me posso proteger a mim mesmo.”

Inés sentou-se e pegou no seu rosto entre as suas mãos. “Ninguém sabe até que tem que ser, mas aprenderemos juntos.”


O Doutor Méndez chegou numa carruagem poeirenta três dias depois. Um homem pequeno e nervoso com óculos que constantemente escorregavam pelo seu nariz. Dom Sebastián escoltou-o pessoalmente até à cabana de Inés, a sua presença a preencher o pequeno espaço com autoridade ameaçadora.

“Examine-a”, ordenou, “e diga-me se o meu tempo e esforço foram desperdiçados.”

Inés submeteu-se ao exame com dignidade estoica, embora cada toque do médico se sentisse como invasão. O doutor apalpava o seu ventre, fazia perguntas sobre os seus ciclos menstruais, estudava os seus olhos e língua com a distância clínica de alguém a examinar gado.

Rodrigo esperava lá fora na sua cadeira, imóvel sob o sol. Podia ouvir murmúrios de conversa, mas não palavras específicas. Os minutos arrastavam-se como horas. As suas mãos apertavam os braços da cadeira até os nós dos dedos ficarem brancos.

Finalmente, o Doutor Méndez emergiu, limpando as mãos num lenço. “Bem, Dom Sebastián, parece que a sua experiência foi bem-sucedida. A mulher está definitivamente grávida. Eu diria que com aproximadamente 10 semanas, talvez 11. Saudável, tanto quanto posso determinar.”

Dom Sebastián ficou imóvel por um momento, processando esta informação. Depois, lentamente, um sorriso espalhou-se pelo seu rosto. Não era um sorriso caloroso, mas sim o sorriso de um homem que tinha ganho uma aposta impossível.

“Ouviste, Rodrigo?”, chamou, aproximando-se da cadeira do seu filho. “Funcionou. Aqueles médicos idiotas estavam errados. Até tu, com tudo o que está errado contigo, consegues reproduzir-te, afinal.”

Rodrigo sentiu uma mistura violenta de emoções, alívio, terror, alegria, culpa. Forçou-se a assentir. “Sim, pai, isto muda tudo.”

Dom Sebastián estava praticamente efervescente. “Se for varão, será o herdeiro, o teu filho, o meu neto. A linha Belarde continuará apesar de tudo.” Virou-se para a cabana onde Inés ainda estava lá dentro. “A mulher receberá melhor comida imediatamente. Nada de trabalho pesado. Quero esse bebé saudável.”

O Doutor Méndez tossiu desconfortavelmente. “Devo avisá-lo, Dom Sebastián, que a gravidez sempre acarreta riscos. A mulher é forte, sim, mas isso não garante nada. E dado que o pai é…” Olhou para Rodrigo com algo parecido com pena. “…Constitucionalmente delicado, a criança pode herdar certas características.”

“Então, teremos cuidado extra.” Dom Sebastián não ia deixar que nada manchasse a sua vitória. “Temos 7 meses para nos prepararmos. Até lá, tudo estará no seu lugar.”


Depois de o doutor partir e Dom Sebastián regressar à casa grande, Rodrigo finalmente rolou a sua cadeira para dentro da cabana. Inés estava sentada na cama, as suas mãos a repousar protetoramente sobre o seu ventre.

“É real, então”, disse ele.

“Sim, é real.”

Ficaram em silêncio por um longo momento. O peso desta nova realidade assentava sobre eles como um cobertor pesado.

“O meu pai está eufórico”, disse finalmente Rodrigo. “Nunca o tinha visto assim.”

“Claro que está. Obteve o que queria: um herdeiro, sem ter que admitir que o seu filho inválido é algo mais do que o fracasso que ele sempre acreditou que eras.” Havia amargura na sua voz, mas também algo mais. Rodrigo reconheceu esse algo. Era a ferocidade protetora de uma mãe que já amava o seu filho não-nascido, que já se estava a preparar para lutar por ele.

“Inés”, começou ele sem saber como continuar.

“Não”, interrompeu ela, “não me dês promessas que não podes cumprir. Não me digas que tudo vai ficar bem, porque sabemos que não vai. Apenas, apenas fica aqui comigo só por agora.”

Então foi isso que ele fez, ficou na sua cadeira junto à cama e depois de um momento ela guiou a sua mão para que repousasse sobre o seu ventre, onde o seu filho crescia invisível ainda, mas inegavelmente real. “Sinto algo”, mentiu Rodrigo, porque queria sentir algo. Queria acreditar neste milagre impossível que tinham criado juntos.

“Ainda é demasiado cedo”, disse Inés, mas sorriu levemente. “Mas em breve, em breve sentirás pontapés e movimentos. É aí que se torna real, dizem as mulheres. Quando já não podes fingir que é apenas um sonho.”


Os meses seguintes trouxeram mudanças dramáticas. Inés foi transferida do trabalho de campo para tarefas mais leves na casa grande, preparação de comida, costura, coisas que a mantinham à sombra e afastada do trabalho extenuante. Recebia rações extra de carne e leite, e a sua cabana foi reparada com novas paredes de adobe e um teto adequado que não pingava quando chovia.

Outros escravos olhavam-na com uma mistura de inveja e receio. Alguns murmuravam que se tinha vendido ao patrão por privilégios. Outros, especialmente as mulheres mais velhas, que tinham sobrevivido aos seus próprios horrores, entendiam que ela não tinha tido mais escolha do que eles em qualquer aspeto da sua vida.

Rodrigo visitava-a ainda todas as noites, Tomás empurrando a sua cadeira fielmente, mas agora os seus encontros tinham mudado. Já não havia pressão para nada além de simples companhia. Liam juntos. Inés tinha progredido até poder decifrar frases completas lentamente.

Falavam sobre o bebé, inventando histórias sobre como ele poderia ser, o que poderia vir a fazer. “Se for varão”, dizia Rodrigo, “deveria aprender tanto sobre o campo quanto sobre os livros. Deveria saber como o milho cresce e também como se escreve poesia.”

“E se for menina”, acrescentava Inés, “deveria ser forte, não apenas fisicamente forte. Aqui”, tocava a sua cabeça, “e aqui”, tocava o seu coração.

À medida que o seu ventre crescia, outros na fazenda começaram a tratar Inés com uma estranha deferência. Não era respeito exatamente, mas era reconhecimento da sua nova posição, portadora do herdeiro Belarde, embora fosse apenas por acidente de biologia. Dom Sebastián começou a comportar-se como se o bebé já fosse seu. Falava de planos, educação, propriedade, casamento eventual com alguma família apropriada.

Tudo isto assumindo, claro, que o bebé seria varão. Se fosse menina, ninguém mencionava o que aconteceria.


Então, uma noite, quando Inés estava no seu quinto mês e o seu ventre era inegavelmente proeminente, Rodrigo chegou com notícias perturbadoras.

“O meu pai tem estado a fazer planos”, disse ele, “legais. Se o bebé for varão, será oficialmente reconhecido como Belarde e tu serás alforriada, livre.”

Deveria ter sido uma boa notícia, mas o tom de Rodrigo sugeria complicações.

“Mas… mas só depois de o bebé ser desmamado e só se entregares o menino completamente à família, sem direitos, sem contacto, a menos que o meu pai o permita. Serias livre, mas o teu filho não seria teu.”

Inés sentiu algo frio e duro a assentar no seu estômago. “Claro, a liberdade em troca do meu filho. Essa é a armadilha.”

“Podemos recusar”, disse Rodrigo rapidamente, as suas mãos a girar as rodas nervosamente. “Podemos, podemos o quê?” A sua voz era afiada. “Fugir, tu na tua cadeira e eu com um bebé, viver como fugitivos, ser caçados como animais. Não sejas tolo, Rodrigo. Não há saída boa aqui. Nunca houve.”

“Tem que haver algo, algo que possamos fazer.”

Inés levantou-se com dificuldade. O peso extra tornava cada movimento mais laborioso e caminhou para a janela pequena. Lá fora, a lua iluminava os campos prateados, fazendo tudo parecer bonito e tranquilo. Era mentira, claro. Tudo era mentira.

“Há uma coisa”, disse finalmente, “uma coisa que poderíamos fazer.”

“O quê?”

Virou-se para olhá-lo, a sua expressão feroz à luz da lua. “Poderíamos criar este bebé, varão ou menina, para ser melhor do que todos nós, mais inteligente do que o teu pai, mais forte do que eu, mais corajoso do que tu. Poderíamos dar-lhe todas as armas que temos: conhecimento, força, astúcia e depois esperar. Esperar que ele mude o seu próprio destino, que encontre a liberdade que nós não podemos alcançar.”

Era um plano a longo prazo, um que exigia fé num futuro que nenhum deles poderia ver, mas era algo, era esperança. E às vezes a esperança era a única coisa que restava.

Rodrigo rolou a sua cadeira para ela, aproximando-se o máximo que pôde. “Então, é isso que faremos. Ensinar-lhe-emos tudo e talvez, só talvez, seja suficiente.”


O sexto mês trouxe complicações. Inés começou a inchar, especialmente nos pés e mãos. A sua respiração tornava-se difícil com o mínimo esforço. O Doutor Méndez foi chamado novamente e expressou preocupação sobre a sua pressão arterial.

“Precisa de repouso completo”, ordenou, “e devem vigiá-la constantemente. Isto pode tornar-se perigoso.”

Dom Sebastián, subitamente preocupado com o facto de o seu investimento estar em risco, ordenou que Inés fosse transferida para um quarto na casa grande, um quarto pequeno perto da cozinha onde pudesse ser vigiada dia e noite. Era uma honra estranha, esta prisão de conforto onde era alimentada e assistida, mas nunca deixada sozinha.

Rodrigo não podia visitá-la abertamente ali, não sem despertar mais suspeitas do que as que já existiam. Então, comunicavam-se através de mensagens secretas, notas que ele escrevia e Juana entregava, palavras cuidadosamente escolhidas que não revelassem demasiado se fossem intercetadas. Num, ele escreveu: “O bebé chuta fortemente, acho que será lutador.” Noutro: “Sinto falta das nossas lições de leitura, sinto falta de falar contigo.” E noutro mais atrevido: “Continuo a pensar no norte, na liberdade, em como poderia ser se as coisas fossem diferentes.”

Inés lia cada nota múltiplas vezes antes de as queimar cuidadosamente na lamparina, destruindo a evidência, mas memorizando cada palavra.


O sétimo mês passou numa névoa de mal-estar e antecipação. Inés sentia o bebé constantemente agora, movimentos fortes que às vezes a acordavam na noite. Juana sentava-se com ela frequentemente, partilhando histórias dos seus próprios partos, preparando-a para o que estava por vir.

“Vai doer mais do que podes imaginar”, disse a mulher mais velha sem rodeios. “Mas és forte, vais sobreviver. E quando vires esse bebé, quando o tiveres nos teus braços, vais entender porque é que as mulheres o fazemos uma e outra vez, mesmo que nos tirem os nossos filhos.”

Juana ficou em silêncio por um longo momento. “Mesmo então, porque por uns momentos, uns dias, umas semanas, se tiveres sorte, esse bebé é completamente teu. Ninguém pode tirar-te isso. Essa memória, esse amor vive para sempre.” Era um consolo frio, mas era o único disponível.

No oitavo mês, o bebé moveu-se para baixo, preparando-se. Inés sentia pressão constante, dor surda que nunca a deixava completamente. Dormia mal, comia pouco e passava os seus dias numa espécie de limbo à espera que o inevitável começasse.

Dom Sebastián rondava, ansioso e exigente. Tinha contratado não apenas o Doutor Méndez, mas também uma parteira da cidade, uma mulher séria chamada Dona Carmen, que tinha assistido a centenas de nascimentos. Queria garantias de que tudo correria bem, de que o herdeiro chegaria são e salvo.

“Não posso garantir nada”, disse Dona Carmen bruscamente. “O parto é perigoso, especialmente os primeiros. Se o bebé for grande ou estiver em posição incorreta ou se algo correr mal…” Ela encolheu os ombros. “Então, rezamos.”

“Então reze”, rosnou Dom Sebastián. “Reze muito porque se algo acontecer a esse bebé, todos sofrerão.” Não era uma ameaça vazia, todos o sabiam.


As dores começaram numa tarde chuvosa de setembro, 8 meses e meio depois de tudo isto ter começado. Inés estava sentada no seu quarto quando sentiu a primeira contração, um aperto firme que a fez ofegar. Juana, que estava a tricotar no canto, levantou o olhar imediatamente.

“Chegou a hora.”

“Acho que sim.”

“Então, prepara-te, menina. Vai ser uma noite longa.”

Ela tinha razão. As contrações chegavam irregularmente ao princípio, depois com mais frequência, mais intensas. Dona Carmen foi chamada, preparando o seu equipamento com eficiência prática. Dom Sebastián passeava no corredor lá fora, visível através da porta aberta, a sua ansiedade palpável.

Rodrigo não era permitido estar ali, claro. Isso seria inapropriado. Mas Inés sabia que ele estava em algum lugar próximo, provavelmente no seu quarto, imóvel na sua cadeira, à espera, preocupado, incapaz de fazer mais nada do que existir na agonia de não saber.

A dor aumentou. Ondas que a atingiam como marés, cada uma mais forte do que a anterior. Inés mordia os lábios até sangrar, recusando-se a gritar, recusando-se a mostrar fraqueza. Mas finalmente, quando a dor se tornou insuportável, soltou um gemido baixo que se transformou em grito.

“Quase”, disse Dona Carmen. “Vejo a cabeça, mais uma grande, mamã, podes fazê-lo.”

Com um último esforço monumental, sentindo como se estivesse a partir-se ao meio, Inés empurrou e depois, milagrosamente, o peso desapareceu. Por um momento houve silêncio absoluto. Então um choro forte, furioso e cheio de vida.

“É menino”, anunciou Dona Carmen, segurando o bebé ao alto, “e saudável, pelos sinais.”

Inés mal conseguia focar a vista, exausta para além da compreensão, mas viu o seu filho, pequeno e enrugado e perfeito, gritando a sua indignação ao mundo.

“Deixe-me segurá-lo”, sussurrou, “por favor.”

Dona Carmen limpou o bebé rapidamente e colocou-o nos braços de Inés. O peso era insignificante, mas sentia-se como uma âncora para o mundo. Ela olhou para baixo, para aquela pequena cara vermelha, aqueles olhos cegos que se abriam e fechavam, aquelas mãos minúsculas que se fechavam em punhos.

“Olá”, sussurrou. “Olá, pequeno lutador.”

A porta abriu-se bruscamente. Dom Sebastián entrou como uma tempestade, os seus olhos fixos no bebé.

“É varão, está saudável?”

“Sim, a ambas as perguntas”, disse Dona Carmen. “Parabéns, Dom Sebastián, tem um neto.”

Por um momento, algo parecido com verdadeira alegria atravessou o rosto do velho. Depois, como se se lembrasse de quem era, a sua expressão endureceu novamente.

“Bem, muito bem.” Aproximou-se, estendendo os braços. “Dê-mo. Deixe-me ver o herdeiro Belarde.”

Inés sentiu os seus braços apertarem instintivamente à volta do bebé. Cada fibra do seu ser gritava contra soltar aquela criança que acabara de nascer, aquele pedaço de si mesma.

“Só mais um momento”, implorou, “por favor.”

Dom Sebastián franziu o sobrolho, mas Dona Carmen interveio. “Deixe-a, Dom Sebastián. A mãe precisa destes primeiros momentos. É natural. Terá uma vida inteira com a criança.”

Ele resmungou, mas recuou. “Muito bem, uns minutos, mas depois é meu.”

Inés usou esses minutos preciosos para memorizar cada detalhe. O suave remoinho de cabelo escuro no topo da cabeça do bebé. A forma perfeita das suas orelhas, o calor da sua pele contra a dela. Sussurrou palavras que só ele podia ouvir, promessas que tentaria cumprir mesmo que nunca mais o segurasse.

“Eu amo-te”, sussurrou. “E amar-te-ei sempre, não importa o que aconteça, lembra-te disso. A tua mãe amou-te desde o primeiro momento.”

Então, com mãos que tremiam, entregou-o. Dom Sebastián pegou no bebé com surpreendente gentileza, segurando o seu neto com algo parecido com reverência. Olhou para baixo, para aquele rosto minúsculo, e por um momento foi apenas um homem velho a segurar nova vida.

“Sebastián”, disse, “chamar-se-á Sebastián como eu, como o meu pai antes de mim. O nome continuará.”

No corredor, finalmente permitiram que Rodrigo se aproximasse. Tomás empurrou a sua cadeira para o quarto e ele ficou à porta, pálido e trémulo, a olhar para o seu pai a segurar o seu filho.

“Vem”, ordenou Dom Sebastián, “vem conhecer o teu herdeiro.”

Tomás empurrou a cadeira mais perto. Os olhos de Rodrigo moviam-se entre o bebé e o rosto exausto de Inés. Quando estava suficientemente perto, estendeu um dedo trémulo, tocando suavemente a face do bebé.

“Olá, Sebastián”, murmurou. “Sou o teu pai.”

O bebé fez um pequeno som, algo entre choro e suspiro. As suas mãozinhas agitavam-se à procura de algo que não conseguia nomear.

“É perfeito”, disse Rodrigo, a sua voz a quebrar. “Absolutamente perfeito.”

“Claro que é”, Dom Sebastián irradiava satisfação. “É um Belarde e crescerá para fazer grandes coisas. Eu o educarei adequadamente. Eu o moldarei num homem que este vale possa respeitar.”

Inés ouvia isto da cama, cada palavra uma faca. Já estava a perder o seu filho, mesmo enquanto ainda podia vê-lo. A liberdade prometida parecia um preço vazio agora.

Mas então Rodrigo olhou para ela e nos seus olhos viu algo. Determinação, reconhecimento. A promessa que tinham feito na escuridão da cabana meses atrás. Ensinariam a esta criança, dar-lhe-iam todas as armas que pudessem e esperariam.


Os dias seguintes foram um borrão para Inés. O seu corpo recuperava lentamente do trauma do parto, mas o seu coração sangrava de maneiras que nenhuma medicina podia curar. Permitiam-lhe amamentar o bebé a cada poucas horas. Mesmo Dom Sebastián reconhecia a necessidade prática disso, mas cada sessão terminava com a criança a ser levada de volta para o quarto especial que tinham preparado na casa grande.

Uma ama-de-leite tinha sido contratada também, uma jovem da cidade, cujo próprio bebé tinha morrido ao nascer. Alimentaria Sebastián quando Inés não pudesse, garantindo que o herdeiro nunca passasse fome. Era eficiente, prático e absolutamente devastador.

Rodrigo vinha quando podia, Tomás empurrando a sua cadeira em visitas breves e vigiadas. O seu pai tinha-o confinado mais estritamente agora, garantindo que Rodrigo entendesse que o seu papel tinha terminado. Tinha cumprido a sua função. O bebé estava aqui. Agora precisava de se concentrar em aprender a administrar a fazenda, preparar-se para eventualmente herdá-la juntamente com a criança.

“Está a treinar-me”, disse-lhe Rodrigo numa dessas visitas. “Quer que eu aprenda tudo, as contas, as negociações, como lidar com os trabalhadores. Diz que agora que tenho um herdeiro, preciso de agir como um homem, mesmo que nunca possa andar como um.”

“E tu és?”, perguntou Inés, o seu tom mais afiado do que pretendia. “Um homem agora que produziste um filho?”

Rodrigo recuou na sua cadeira como se a tivesse atingido. “Não é assim. Sabes que não é assim?”

Ela suspirou, esfregando os olhos cansados. “Eu sei, desculpa, estou apenas… Cada vez que o alimento, cada vez que o seguro, sei que é temporário. Sei que em breve nem sequer terei isso.”

“O acordo diz 3 meses”, disse Rodrigo em voz baixa. “3 meses a amamentá-lo. Depois serás alforriada e ele será completamente do meu pai.”

“Três meses.” Repetiu as palavras como se fossem uma sentença de morte. “90 dias para ser mãe, depois nada.”

“Não, nada.” Rodrigo girou as suas rodas para se aproximar mais da sua cama. “Ouve, tenho estado a pensar, quando fores livre, poderias ficar por perto, encontrar trabalho na vila, vê-lo crescer de longe e eu assegurar-me-ei de que ele saiba sobre ti, de que ele entenda quem tu és realmente.”

“O teu pai nunca o permitirá.”

“O meu Pai não viverá para sempre.” Havia algo escuro na voz de Rodrigo, algo que Inés não tinha ouvido antes. “É velho, está doente, embora não o admita, e quando ele se for, tudo muda. Eu terei o controlo e então poderemos fazer as coisas de maneira diferente.”

Era esperança perigosa, o tipo que podia destruir-te se te agarrasses demasiado forte. Mas Inés permitiu-se acreditar um pouco, apenas o suficiente para seguir em frente.


Os três meses passaram como uma respiração, demasiado rápido, nunca suficiente. Inés memorizava cada momento com o seu filho, a forma como os seus olhos começaram a focar, reconhecendo-a. O seu primeiro sorriso real, não apenas gás, mas verdadeira alegria ao vê-la. Os sons que ele fazia, como se estivesse a tentar falar-lhe numa língua que só os dois partilhavam.

Juana sentava-se frequentemente com ela durante estas sessões de alimentação, oferecendo companhia silenciosa. “É mais difícil quando os amas”, disse a mulher mais velha um dia. “Quando são apenas trabalho, apenas mais uma boca para alimentar, é mais fácil deixá-los ir. Mas quando amas…” Sacudiu a cabeça. “É como arrancares o coração.”

“Como é que aguentaste?”, perguntou Inés. “Sei que tiveste filhos. Onde estão eles agora?”

O rosto de Juana endureceu. “Vendidos, todos, quando eram grandes o suficiente para trabalhar, foram vendidos para outras fazendas. Nunca mais os vi. Isso foi há 30 anos e ainda…” A sua voz quebrou. “Ainda os vejo nos meus sonhos. Ainda me pergunto se estão vivos.”

Inés segurou Sebastián com mais força. “Não sei se consigo fazer isto.”

“Consegues porque não tens escolha.” Juana pôs uma mão no seu ombro. “Mas podes fazê-lo sabendo que lhe deste o melhor que pudeste no tempo que tiveste. Esse é o teu presente para ele. Estes meses, este amor, ninguém pode tirar-te isso.”


Quando chegou o dia final, Inés soube-o antes que alguém dissesse algo. Havia uma tensão no ar, um peso que pressionava contra o seu peito. Dom Sebastián veio pessoalmente acompanhado por Dona Carmen e um escrivão da cidade.

“Chegou a hora”, disse simplesmente. “A criança foi desmamada com sucesso. O acordo foi cumprido.”

O escrivão desenrolou um documento, lendo em voz monótona. “Pelo presente, Inés, escrava da Fazenda San Rafael, é alforriada e libertada de toda a servidão, tendo cumprido os termos acordados. A partir deste dia é uma mulher livre, com todos os direitos associados, com a exceção de que renuncia a qualquer reivindicação sobre a criança nascida dela, reconhecida como Sebastián Belarde, herdeiro legítimo desta fazenda.”

Puseram papéis à sua frente. Alguém pôs uma pena na sua mão. “Apenas faça a sua marca”, instruiu o escrivão. “Um ‘X’ servirá se não puder escrever.”

Mas Inés podia escrever. Rodrigo tinha-a ensinado. Lenta e cuidadosamente, com mão trémula, escreveu o seu nome completo, Inés María Flores. Era a primeira vez que assinava algo. A primeira vez que o seu nome existia em papel oficial. Era liberdade e perda, tudo no mesmo momento.

“Excelente.” Dom Sebastián pegou nos papéis. “Agora a ama levará a criança. Tens até ao anoitecer para recolher as tuas posses e deixar a fazenda. Foi-te dada uma pequena quantia de dinheiro, suficiente para começares noutro lugar.”

Inés olhou para Sebastián, que dormia nos seus braços pela última vez. Memorizou cada detalhe, o peso dele, o seu cheiro, o som da sua respiração. Depois, com mãos que pareciam pertencer a outra pessoa, entregou-o à ama. O bebé agitou-se, sentindo a mudança, e começou a chorar.

Esse som seguiu Inés enquanto saía do quarto, do corredor, da casa grande. Perseguiu-a mesmo quando estava lá fora, a juntar as poucas coisas que possuía.


Rodrigo encontrou-a na sua antiga cabana a fazer as malas. Tomás tinha deixado a sua cadeira na porta e tinha-se retirado discretamente.

“Inés…”, começou ele, mas não tinha palavras.

“Não”, disse ela bruscamente. “Não digas nada, não há nada a dizer.”

“Vais voltar. De alguma forma encontraremos a maneira.”

“Não mintas.” Finalmente olhou para ele e ele viu que os seus olhos estavam secos para além das lágrimas. “Não tornes as coisas mais fáceis para nenhum de nós com mentiras confortáveis.”

“Não é mentira. Quando o meu pai morrer…”

“Quando? Daqui a um ano, daqui a 10, daqui a 20?” A sua voz subiu. “Até lá, Sebastián não se lembrará de mim. Serei apenas uma história, se tanto, a escrava que o pariu. Eu contar-lhe-ei sobre ti.”

Rodrigo tentou aproximar a sua cadeira, mas as rodas prenderam-se no chão irregular. “Todos os dias eu lhe contarei sobre a sua mãe, sobre a tua força, a tua inteligência, o teu…”

“O meu quê? O meu amor?” Ela riu amargamente. “Como lhe vais explicar isso? Como lhe vais dizer que a mãe o amava tanto que o entregou, que escolheu a sua liberdade em vez dele?”

“Não tiveste escolha.”

“Eu sei.” A sua voz suavizou-se. “Eu sei, Rodrigo, e essa é a parte mais difícil, saber que tudo isto, tu e eu, o bebé, cada momento, nunca foi realmente nosso. Sempre foi do teu pai, o seu plano, a sua vitória.”

Ficaram assim por um longo momento, duas pessoas que tinham partilhado algo extraordinário e terrível, sabendo que provavelmente nunca mais se veriam assim.

“Ensina-o a ler”, disse Inés finalmente, “como me ensinaste. E ensina-o sobre o mundo para além desta fazenda. Fá-lo melhor do que o avô, melhor do que nós.”

“Prometo.”

“E se alguma vez perguntar sobre mim, diz-lhe a verdade. Diz-lhe que o amei, que cada segundo com ele foi o mais precioso da minha vida.”

“Eu direi.”

Inés recolheu o seu pequeno embrulho de posses. No fundo, escondido onde ninguém o veria, havia um livro fino que Rodrigo lhe tinha dado, as páginas cheias de lições que tinham partilhado. Era a única coisa que levaria daquele lugar, além de memórias e cicatrizes.

“Adeus, Rodrigo.”

“Não, adeus. Até nos vermos de novo.” Mas ambos sabiam que era adeus. Algumas separações são finais, por muito que se deseje o contrário.


Inés caminhou pelo caminho poeirento enquanto o sol se punha, transformando o céu em fogo. Não olhou para trás. Olhar para trás teria sido impossível de suportar. Caminhou em direção à vila mais próxima, depois para uma maior. Encontrou trabalho. Primeiro a lavar roupa, depois a cozinhar numa posada. Era trabalho duro, mas era o seu trabalho feito por sua própria escolha.

A liberdade, descobriu, não era a alegria gloriosa que tinha imaginado, era responsabilidade e solidão e a constante agonia de sentir falta de alguém que nunca poderia ter. À noite, sozinha no pequeno quarto que alugava, praticava a sua leitura.

Lia o livro que Rodrigo lhe tinha dado uma e outra vez até memorizar cada palavra. E às vezes, quando a dor era demasiado grande, permitia-se chorar.


Na Fazenda San Rafael, Sebastián crescia, tornando-se um menino bonito, forte e saudável, com a determinação da sua mãe e a inteligência do seu pai. As suas pernas eram fortes, não tinha herdado a fraqueza de Rodrigo, e corria pelos campos com energia que fazia o seu avô sorrir com satisfação.

Rodrigo manteve a sua promessa. Contava à criança sobre Inés, embora Dom Sebastián desaprovasse. “A tua mãe era a mulher mais forte que eu conheci”, dizia-lhe sentado na sua cadeira enquanto o menino brincava aos seus pés. “E amava-te mais do que as palavras podem expressar.”

“Porque é que ela foi embora, então?”, perguntava Sebastián com a lógica simples de uma criança de 5 anos.

“Porque às vezes amar alguém significa deixá-los ir para que tenham uma vida melhor e porque não teve escolha.”

Quando Sebastián tinha 7 anos, Dom Sebastián Belarde finalmente morreu, o seu coração cedendo uma noite depois de demasiado mezcal e raiva acumulada. Rodrigo herdou a fazenda e uma das suas primeiras ações foi libertar todos os escravos que restavam, dando-lhes terra para trabalhar como sua ou dinheiro para começar noutro lugar.

Procurou Inés, enviando mensageiros a cada vila num raio de 100 km. Demorou 2 anos, mas finalmente a encontraram a trabalhar numa pequena escola em Oaxaca, ensinando a ler a crianças cujos pais nunca tinham tido essa oportunidade.

Quando a mensagem chegou, Inés ficou a olhar para o papel por muito tempo. Sebastián tinha 9 anos agora. Rodrigo convidava-a a regressar, a conhecer o seu filho, a fazer parte da sua vida. Era a segunda oportunidade mais impossível e desta vez a escolha era sua.

Fez as malas das suas poucas posses, incluindo o livro gasto, e começou a viagem de regresso à Fazenda San Rafael. Não sabia o que encontraria ali, que tipo de receção a esperava, mas sabia disto. Tinha sobrevivido ao impossível uma vez. Podia fazê-lo de novo.


Quando finalmente chegou, Sebastián estava a brincar no pátio, um menino magro, mas forte, com cabelo escuro e olhos brilhantes. Viu-a aproximar-se e parou, curioso.

“Quem és tu?”, perguntou com a franqueza da infância.

Inés ajoelhou-se para ficar ao seu nível, o seu coração a bater tão forte que pensou que poderia partir-se. “Sou Inés”, disse, “o teu pai me contou sobre mim.”

O rosto da criança iluminou-se com reconhecimento. “A minha outra mãe!” Correu para ela, abraçando-a com a confiança despreocupada de uma criança que tinha sido criada com amor. “Pai diz que me ensinaste a ser forte mesmo antes de eu me lembrar.”

Inés abraçou-o. Esta criança que era sua e não sua, este milagre que tinha custado tudo, sentiu lágrimas finalmente, não de dor, mas de algo mais complexo. Alívio talvez, gratidão, a possibilidade frágil de algo parecido com redenção.

Rodrigo apareceu à porta da casa, Tomás empurrando a sua cadeira. Mais velho agora, com fios grisalhos no seu cabelo, mas a sorrir de uma forma que Inés nunca tinha visto antes.

“Bem-vinda a casa”, disse ele.

E pela primeira vez em 9 anos Inés pensou que talvez, só talvez houvesse um lugar neste mundo a que podia chamar lar. Não porque fosse fácil e não porque o passado pudesse ser desfeito, mas porque ambos tinham sobrevivido. E nessa sobrevivência tinham encontrado algo que nem as correntes nem os contratos podiam tirar-lhes: a sua humanidade, a sua dignidade e o seu amor por esta criança que representava tanta dor e tanta esperança.


A história não terminou ali, claro. As histórias nunca terminam realmente. Sebastián cresceu para se tornar um homem que transformou a fazenda, tratando os seus trabalhadores com respeito, pagando salários justos, reconhecendo a humanidade em todos.

Carregava dentro de si a força da sua mãe e a compaixão do seu pai, e usava ambas para tornar o mundo um lugar ligeiramente menos cruel. E Inés, que tinha sido escrava e mãe e mulher livre e professora, viveu para ver o seu filho tornar-se o tipo de homem que tinham sonhado naquelas noites escuras anos atrás.

Viveu para ver que o seu sofrimento, embora injusto e terrível, não tinha sido completamente em vão. Rodrigo, da sua cadeira de rodas, observava tudo isto com orgulho silencioso. Tinha passado a sua vida a sentir-se inútil, quebrado, menos do que um homem, mas tinha criado um filho, que era tudo o que ele nunca pôde ser fisicamente e tudo o que ele escolheu ser moralmente. E isso, descobriu, era suficiente, porque às vezes, mesmo nas histórias mais escuras, mesmo quando tudo parece perdido, a vida encontra o seu caminho e o amor real, complicado, imperfeito, pode sobreviver mesmo às circunstâncias mais impossíveis.

Esta é a história de como em 1859, numa fazenda perdida no vale de Oaxaca, três pessoas presas num sistema brutal encontraram maneiras de preservar a sua humanidade e de como, contra todas as probabilidades, criaram algo que nem mesmo a escravidão podia destruir. Uma família escolhida, um amor incondicional e um futuro que nenhum deles tinha ousado imaginar. M.

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