O Escravo Que Dormiu na Quarto da Sinhá… e Acabou Casado Com Ela

Durante séculos, paredes brancas esconderam segredos escuros, memórias silenciadas, pactos, tragédias, crimes e pecados que moldaram o país. Aqui cada documento, cada relato e cada voz esquecida finalmente ganha luz. Seja bem-vindo a Relatos da Casagre. Antes de começar, te convido a deixar nos comentários de onde você está nos assistindo e o horário exato em que está ouvindo esta narração.
Queremos saber até onde e em que momentos do dia ou da noite chegam estes relatos documentados. Consta nos registros do cartório de Valença, província do Rio de Janeiro, que no dia 12 de maio de 1864 foi lavrado um assento de casamento que causou escândalo silencioso por gerações. O noivo Joaquim Antônio da Costa, 28 anos, Pardo Liberto.


noiva, dona Amélia Leopoldina da Fonseca Drumon, 23 anos, filha única do finado comendador Antônio Drumon, proprietário da fazenda Santa Eufrásia. O padre que celebrou a cerimônia, Monsenhor Albino Tavares, anotou à margem do livro paroquial, com letra trêmula: Casamento realizado sob protestos da família materna. Que Deus os ampare.
Ninguém da família Drumon compareceu à igreja naquele dia. A fazenda Santa Eufrásia ficava a três léguas do centro da cidade, no alto de uma colina cercada por cafezais que se estendiam até onde a vista alcançava. A casa grande, de dois andares, paredes caiadas e janelas de treliça azul, dominava a paisagem como um navio ancorado em mar verde.
Nos fundos, as cenzalas formavam um corredor comprido e baixo, com portas estreitas que se abriam para um pátio de terra batida. Foi ali, naquele mundo dividido entre o Sobrado e a Cenzala, que Joaquim nasceu em 1836, filho de Maria Benedita, cozinheira da Casa Grande e de Pai Desconhecido. O nome do pai nunca foi pronunciado.
Maria Benedita morreu de febre quando o menino tinha 7 anos e ele passou a dormir nos fundos da cozinha sobre esteiras ao lado do fogão de lenha. Joaquim cresceu servindo, levava água, acendia lamparinas, carregava trouxas, limpava botas. Aos 12 anos já sabia ler um pouco. Ensinado as escondidas por dona Mariana, a avó de Amélia, que achava cruel que uma criança vivesse sem conhecer as letras.
Aos 15 foi promovido a pagem do comendador. Vestia calças brancas bem passadas, camisa de linho e carregava o cachimbo, o chapéu e a bengala do Senhor aonde quer que ele fosse. O comendador Antônio Drumon era homem de poucas palavras e muitas dívidas. Jogava cartas, bebia conhaque francês e tratava os escravizados com indiferença calculada.
Não batia, não gritava, apenas ignorava. Para ele, Joaquim era sombra útil, nada mais. Amélia nasceu em 1841, filha única de um casamento arranjado entre o comendador e dona Leopoldina, mulher frágil de saúde e temperamento melancólico. A menina foi criada entre bonecas de porcelana, aulas de piano e bordados intermináveis. cresceu sozinha.
A mãe passava os dias trancada no quarto com enchaquecas. O pai viajava constantemente para a corte. Joaquim, três anos mais velho, sempre esteve ali quieto, atento, próximo. Nos corredores da Casa Grande era ele quem entregava bilhetes, quem buscava o chale esquecido, quem acendia as velas do oratório.
Amélia o via todos os dias, mas durante anos não o enxergou de verdade. Ele era parte da mobília, parte do silêncio. Tudo mudou em 1857. Amélia tinha 16 anos quando a febre amarela varreu a região. Dona Leopoldina foi uma das primeiras a adoecer. Passou três semanas delirando, chamando por nomes que ninguém conhecia, até que morreu numa manhã de outubro, cercada de velas e rezas.
O comendador não chorou, mandou celebrar missa, vestiu luto por seis meses e voltou a viajar. Amélia ficou sozinha na fazenda, sob a tutela distante de uma tia materna que morava em Vassouras e raramente aparecia. Foi nesse período que ela começou a notar Joaquim de outro modo. Ele tinha 21 anos, alto, ombros largos, mãos fortes de quem carregava peso desde criança.
Os olhos eram escuros e fundos, o rosto sério, a voz baixa, não sorria, não falava mais do que o necessário, mas estava sempre ali. Quando Amélia chorava sozinha no quarto, era Joaquim quem deixava um copo de água na mesinha de cabeceira, sem dizer nada. Quando ela passava noite sem dormir, caminhando pela varanda, ele ficava sentado nos degraus da escada, em silêncio, como um guardião invisível. Ela começou a chamá-lo pelo nome.
Ele começou a responder com os olhos. Ninguém percebeu. A fazenda seguia seu ritmo. O café era colhido, processado, vendido. Os escravizados trabalhavam sob o sol inclemente. O feitor gritava, as panelas fumegavam, a vida continuava como sempre continuara, mas algo havia mudado entre aquelas duas pessoas.
Amélia passou a pedir que Joaquim a acompanhasse nas caminhadas pela propriedade. Ele ia atrás. três passos de distância, como convinha. Ela falava sobre a mãe, sobre a solidão, sobre o medo de envelhecer sozinha naquela casa enorme. Ele ouvia, nunca interrompia, às vezes apenas concordava com a cabeça. Um dia ela perguntou: “Você nunca teve vontade de sair daqui, Joaquim?” Ele demorou a responder.
“Não sei para onde eu iria, senh E se pudesse escolher outro silêncio?” Escolher não é coisa para gente como eu. Amélia sentiu algo apertar no peito. Pela primeira vez enxergou o abismo que o separava. Não era apenas a cor da pele, era tudo, a lei, o costume, a ordem do mundo. E mesmo assim ela continuou caminhando ao lado dele.
Os meses passaram. O comendador voltou da corte com uma notícia. Havia arranjado um casamento para a filha. O noivo era doutor Augusto Ribeiro de Melo, advogado de vassouras, viúvo de 40 anos, dono de terras e bem relacionado. O casamento seria em junho de 1858. Amélia recebeu a notícia em silêncio. Não protestou, não chorou, apenas acenou com a cabeça.
Naquela noite, ela chamou Joaquim ao quarto pela primeira vez. Ele entrou com o chapéu na mão, olhos baixos, esperando ordens. Amélia estava sentada na beira da cama com o vestido branco de dormir e os cabelos soltos. A vela sobre a cômoda tremia. “Sente-se”, ela disse, apontando para a cadeira ao lado da janela. Joaquim hesitou.
“Sente-se, por favor.” Ele obedeceu. Ficaram em silêncio por muito tempo. Do lado de fora, a noite era de cigarras e vento. Vão me casar com um homem que eu nunca vi. Amélia disse finalmente. Um homem que meu pai escolheu porque tem terras. Joaquim não respondeu. E você? Ela perguntou.
Você vai continuar aqui servindo a próxima geração até morrer? Ele ergueu os olhos pela primeira vez. Isso não depende de mim, Siná. Depende sim. Ela disse a voz tremendo. Depende de mim. Amélia levantou-se, atravessou o quarto e parou na frente dele. Joaquim ficou imóvel, como se qualquer movimento pudesse quebrar o mundo.
“Eu posso te libertar”, ela disse. “Meu pai me deixou uma pequena herança da minha mãe. Posso usar para comprar tua alforria.” Joaquim fechou os olhos. Por quê? Porque eu não quero que você seja escravo. E depois Amélia engoliu seco. Depois você escolhe. Ele abriu os olhos e olhou para ela de um jeito que ela nunca tinha visto antes.
Não era gratidão, não era medo, era algo mais perigoso, era igualdade. E se eu escolher ficar? Ele perguntou. Amélia sentiu o chão sumir debaixo dos pés. Então fica. Ela sussurrou. Joaquim levantou-se devagar. Eles ficaram frente à frente, separados por um palmo de ar e séculos de história. E então, pela primeira vez, ele tocou a mão dela.
Naquela noite, Joaquim não dormiu na cozinha, dormiu no quarto da Cinha. E o mundo silencioso e cruel começou a ruir. O comendador Antônio Drumon voltou de vassouras três dias depois, trazendo tecidos para o enxoval e notícias sobre os preparativos do casamento. Encontrou a filha sentada na varanda bordando um lenço com as iniciais que nunca usaria.
Ela ergueu os olhos quando ele subiu os degraus, mas não sorriu. Amélia, ele disse tirando o chapéu. O doutor Augusto virá nos visitar na próxima semana. Quero que você esteja apresentável. Sim, pai. Ele observou a filha por um instante, desconfiado da docilidade. Está tudo bem? Está. O comendador acenou com a cabeça e entrou na casa.
Joaquim esperava no corredor com a mala do Senhor já preparada para ser levada ao quarto. Os dois homens se cruzaram sem trocar uma palavra, mas algo no ar estava diferente. Amélia continuou bordando até o sol se pôr. Naquela noite, ela não chamou Joaquim. Ele também não apareceu. Cada um ficou no seu lugar designado, como sempre fora. Mas ambos sabiam que algo havia sido atravessado.
Uma linha invisível, tecida por séculos de costume e medo, tinha sido cortada e não havia como costurá-la de volta. Nos dias seguintes, a rotina da fazenda seguiu inalterada. O café foi colhido. As refeições foram servidas. O comendador leu jornais da corte e bebeu vinho do porto. Amélia tocou o piano. Joaquim serviu em silêncio.
Mas à noite, quando a casa adormecia, ele voltava. Ninguém sabia, ninguém via. Amélia trancava a porta do quarto, apagava a vela e, nos minutos curtos e arriscados que precediam a madrugada, eles conversavam sobre tudo, sobre nada, sobre o impossível. Joaquim contava histórias da infância, das surras que viu, das injustiças que calou.
Amélia falava do medo, da prisão dourada em que vivia, do casamento que a esperava como uma sentença. E aos poucos, sem perceber, eles se tornaram cúmplices. Foi Amélia quem sugeriu numa dessas noites: “Eu vou te alforrear”. Joaquim ficou calado. Tenho o dinheiro da herança de minha mãe. Está guardado no cofre do meu pai, mas posso pegar.
Compro tua carta de alforria e te dou o suficiente para começar uma vida longe daqui. E você? Ele perguntou. Eu caso com o Dr. Augusto. Cumpro meu papel. Joaquim balançou a cabeça devagar. Não quero tua pena. Não é pena. Ela disse a voz firme. É justiça. Ele olhou para ela na penumbra.
Justiça seria eu nunca ter nascido escravo. Isso que você tá oferecendo é só um pedaço de papel. Não muda nada. Amélia sentiu lágrimas arderem nos olhos. Então, o que você quer? Joaquim demorou a responder. Quero que você não case com ele. Silêncio. Não posso ela sussurrou. Por quê? Porque não tenho escolha.
Tem sim, ele disse a voz baixa e tensa. Você sempre teve. Só nunca quis enxergar. Amélia virou o rosto, as lágrimas desceram. E o que eu faço, Joaquim? Fujo? Para onde? Com quê? Vou virar páia? Vou perder tudo? Vou ser livre. Ele interrompeu. Ela olhou para ele, os olhos brilhando na escuridão. Livre como você.
A pergunta cortou o ar como lâmina. Joaquim levantou-se e caminhou até a janela. Ficou ali parado, olhando a noite sem estrelas. “Eu nunca fui livre”, ele disse. “Mas se você sair dessa casa comigo, pela primeira vez na vida, eu vou ser”. Amélia levou a mão à boca, sufocando um soluço. Eles vão nos matar.


Talvez vão dizer que você me seduziu, que me enfeitiçou. Vão te linchar. Eu sei. Então, por que você tá pedindo isso? Joaquim virou-se. O rosto estava sério, mas os olhos brilhavam. Porque eu te amo. A palavra caiu no quarto como pedra em poço fundo. Amélia ficou sem ar. Ninguém nunca tinha dito aquilo para ela. Nem a mãe, nem o pai, ninguém.
E agora ali naquele quarto proibido, um homem que o mundo inteiro dizia ser inferior a ela estava oferecendo a única coisa que tinha, a verdade nua. Amélia levantou-se, atravessou o quarto e segurou o rosto dele com as duas mãos. “Eu também te amo”, ela disse. E naquela noite, pela primeira vez, eles não apenas conversaram, eles se prometeram. O Dr.
Augusto Ribeiro de Melo chegou à fazenda Santa Eufrásia numa manhã de abril, trazendo presentes e boas maneiras. Era homem alto, grisalho, de barba bem aparada e voz grave. cumprimentou o comendador com um aperto de mão firme e beijou a mão de Amélia com a reverência calculada de quem conhece as regras do jogo.
Amélia sorriu, respondeu perguntas, tocou o piano, serviu chá e por dentro sentia-se morrer. O Dr. Augusto ficou três dias na fazenda. Passeava pelos cafezais, discutia negócios com o comendador, elogiava a comida. À noite jantava com a família e contava histórias da corte. dos bailes, das intrigas políticas. Era inteligente, educado, tedioso. Amélia o observava e via o futuro.
Uma vida inteira de jantares silenciosos, filhos criados por amas, envelhecimento solitário numa casa grande demais. No terceiro dia, o Dr. Augusto pediu licença para conversar com ela a sós. Foram até a varanda. Ele ficou de pé, as mãos cruzadas nas costas. olhando os cafezais. “Sei que este casamento não foi sua escolha”, ele disse, sem rodeios.
“Também não foi minha, mas acredito que podemos construir uma vida respeitável. Eu lhe darei conforto, segurança e o nome de uma família tradicional. Em troca, espero apenas que cumpra suas obrigações como esposa.” Amélia engoliu seco. “Que obrigações?” Ele olhou para ela. Gerir a casa, receber visitas, dar-me filhos.
Nada de amor, nada de companheirismo, apenas função. Amélia acenou com a cabeça. Entendo. O doutor Augusto sorriu. Ótimo. Então está acertado. O casamento será em junho. Mando buscar você uma semana antes. Ele estendeu a mão. Amélia a apertou. A mão dele era fria. Naquela noite, quando a casa dormiu, Amélia trancou a porta do quarto e esperou. Joaquim não demorou.
Entrou pela janela, como sempre fazia nas últimas semanas. Ele veio pedir minha mão. Amélia disse antes mesmo que Joaquim falasse. Eu sei. O casamento é em junho. Joaquim sentou-se na beira da cama. Então a gente tem dois meses. Amélia sentou-se ao lado dele. Para quê? Para sumir. Ela olhou para ele assustada.
Você tá falando sério? Nunca falei tão sério na vida. Amélia levantou-se, andando de um lado para o outro. É loucura. A gente não tem dinheiro, não tem para onde ir. Vão nos perseguir. Vão, Amélia. Joaquim interrompeu, levantando-se também. Se você casar com ele, eu vou ficar aqui. Vou te ver envelhecer ao lado de outro homem. Vou servir teus filhos.
Vou morrer escravo, ou pior, vou morrer liberto, mas preso para sempre, na lembrança do que a gente podia ter sido. Ela parou, o peito subia e descia rápido. E se a gente fugir e der errado, pelo menos a gente tentou. Amélia fechou os olhos. Meu pai nunca vai perdoar. Eu sei. A sociedade inteira vai nos condenar. Eu sei.
Vão dizer que você me corrompeu, que me enfeitiçou. Vão te chamar de Eu sei de tudo isso. Joaquim disse a voz firme. E mesmo assim eu quero tentar, porque eu prefiro morrer livre contigo do que viver escravo sem ti. Amélia abriu os olhos. Lágrimas desciam. Onde a gente iria? Joaquim deu um passo à frente. Pro rio. De lá a gente pega um navio pro sul.
Ouvi dizer que em São Paulo e no Rio Grande as coisas estão mudando, tem gente fugindo, tem quilombos urbanos, tem abolicionistas que ajudam. Amélia balançou a cabeça incrédula. Você pensou em tudo isso? Penso nisso todo dia desde que te conheci de verdade. Ela deu um passo à frente também. Agora estavam frente à frente, tão perto que ela sentia a respiração dele.
E o dinheiro? Você pega a herança, a gente vende algumas joias, dá para começar. E se não der, a gente trabalha. Eu sei fazer de tudo. Você aprende. Amélia soltou uma risada nervosa. Eu nunca trabalhei na vida, então tá na hora de começar. Ela olhou nos olhos dele e, pela primeira vez viu o futuro de outro jeito, não dourado, não confortável, mas livre.
A gente precisa de um plano”, ela disse. Joaquim sorriu. Era a primeira vez que ela ouvia sorrir de verdade. Já tenho. E naquela noite, trancados no quarto, iluminados apenas pela vela que tremia na cômoda, eles traçaram o impossível. O plano era simples e arriscado.
Na noite do dia 28 de maio, véspera da festa de Corpus Criste, toda a fazenda estaria envolvida nos preparativos. O comendador viajaria para vassouras pela manhã e só voltaria no dia seguinte. A criadagem estaria ocupada com os arranjos da capela. Seria a única janela. Amélia pegaria o dinheiro da herança guardado no cofre do escritório do pai. Joaquim prepararia dois cavalos e mantimentos para três dias de viagem.
Eles sairiam antes do amanhecer, cortariam caminho pelo mato, evitariam as estradas principais e chegariam ao Rio de Janeiro em menos de uma semana. De lá embarcariam num navio para santos e desapareceriam. Simples, mortal. Nas semanas que antecederam a fuga, Amélia começou a se preparar. Separou joias discretas que podiam ser vendidas.
Guardou dinheiro em pequenas quantias. Costurou um saco de pano onde escondeu tudo. Joaquim fez sua parte. Conseguiu uma carta de alforria falsa através de um escrivão corrupto de Valença. Roubou um mapa das estradas. Comprou em segredo roupas simples e um par de botas resistentes para Amélia.
Eles mal conversavam durante o dia, mas à noite, no quarto trancado, repassavam cada detalhe do plano, cada risco, cada possibilidade, e, em meio ao medo, algo crescia entre eles, esperança. No dia 27 de maio, véspera da véspera, o comendador chamou Amélia ao escritório. “Amanhã eu viajo para Vassouras”, ele disse.
“Vou acertar os últimos detalhes do teu casamento. O Dr. Augusto está ansioso. Amélia acenou com a cabeça. Sim, pai. Ele a observou por um instante. Você tem estado estranha. O coração dela disparou. Estranha. Quieta demais, distante. Amélia forçou um sorriso. É só o nervosismo do casamento. O comendador não pareceu convencido, mas não insistiu. Vá descansar. Amanhã será um dia longo.
Amélia saiu do escritório com as pernas tremendo. Naquela noite, Joaquim entrou no quarto pela última vez antes da fuga. Amanhã, ele disse, amanhã, ela repetiu. Eles ficaram abraçados até o primeiro canto do galo. O dia 28 de maio amanheceu nublado. O comendador partiu cedo, levando dois escravizados como escolta. A casa ficou quieta. A criadagem começou os preparativos para a festa do dia seguinte.
Amélia trancou-se no quarto, fingindo dor de cabeça. Joaquim trabalhou o dia inteiro, como sempre, mas a cada movimento, a cada ordem cumprida, ele sabia. Era a última vez. À noite, quando a casa adormeceu, ele selou os cavalos, preparou os mantimentos, colocou tudo num canto escondido do pasto e esperou. Amélia desceu as escadas às 3 da madrugada, vestia um vestido simples, escuro, e trazia o saco de pano com o dinheiro e as joias.
O coração batia tão forte que ela tinha certeza de que todos na casa iriam acordar, mas ninguém acordou. Ela atravessou a cozinha, saiu pela porta dos fundos e caminhou até o pasto. Joaquim estava lá segurando os cavalos. Quando a viu, ele soltou o ar que nem sabia que estava segurando. “Conseguiu?” “Consegui”, ela disse, mostrando o saco.
Ele ajudou ela a subir no cavalo, montou no dele e, sem dizer mais nada, eles partiram. A noite engoliu os dois. A fazenda continuou dormindo e quando o sol nasceu, Amélia e Joaquim já estavam a léguas de distância, galopando em direção a um futuro incerto, mas livre. A descoberta veio ao meio-dia.
Uma das mucamas entrou no quarto de Amélia para arrumar a cama e encontrou o aposento vazio. A cama feita, a janela aberta e sobre a cômoda uma carta. A mucama correu até a governanta. A governanta correu até o feitor. O feitor mandou chamar o comendador em vassouras. A carta dizia apenas: “Pai, quando o Senhor ler isto, já estarei longe. Não me procure. Não vou casar com o Dr.
Augusto. Escolhi meu próprio caminho. Perdoe-me se puder, Amélia.” Não mencionava Joaquim, mas bastou uma rápida inspeção para descobrirem que ele também havia sumido. E então tudo ficou claro. O comendador voltou à fazenda como um furacão, gritou, quebrou móveis, jurou vingança, mandou bater em todos os escravizados da cenzala até que alguém confessasse onde Joaquim tinha ido. Ninguém sabia, ninguém vira nada.
Ele ofereceu recompensa, publicou anúncios nos jornais, contratou capitães do mato, mas Amélia e Joaquim tinham desaparecido. Durante semanas, o escândalo percorreu valença, vassouras à corte, sussurros, fofocas, indignação. A filha do comendador Drummon fugiu com um escravo. Dizem que ele a enfeitiçou, dizem que ela enlouqueceu. Dizem que os dois foram vistos em santos. Dizem que morreram na estrada.
Ninguém sabia ao certo. E o comendador, envergonhado e arruinado socialmente, trancou-se na fazenda e nunca mais falou o nome da filha. Mas em Valença, nas rodas de conversa, nas varandas, nos mercados, a história corria de boca em boca e a cada vez que era contada ganhava novos detalhes, novos horrores, novas versões, até que com o tempo virou lenda e a verdade ficou enterrada até agora.
Segundo relatos de viajantes que passaram por santos entre 1858 e 1860, havia na região do porto um casal de forasteiros que vivia num casebre simples perto do mar. Ela, uma mulher branca de fala educada, costurava para fora. Ele, um homem pardo, de porte altivo, trabalhava como carpinteiro. Não se misturavam muito.
Mantinham distância da sociedade local, mas eram vistos juntos nas tardes de domingo caminhando pela praia. Alguns diziam que eram fugitivos, outros diziam que eram amantes. Ninguém nunca confirmou. Mas num documento do cartório de Santos, datado de 1864, consta o registro de casamento entre Joaquim Antônio da Costa, Pardo Liberto, e Amélia Leopoldina da Fonseca, solteira. A testemunha foi um abolicionista conhecido, Dr. Luís Gama.
O padre que celebrou a união anotou a margem: “Casamento realizado sob. Que Deus os ampare. Amélia e Joaquim viveram juntos em Santos por mais de 20 anos. Tiveram três filhos. Joaquim montou uma pequena oficina de marcenaria. Amélia abriu uma escola para crianças pobres. Eles nunca voltaram para Valença, nunca pediram perdão, nunca se arrependeram.
E quando Amélia morreu em 1883 de pneumonia, Joaquim mandou gravar na lápide dela apenas uma frase: “Ela escolheu.” Joaquim viveu mais 6 anos. Morreu em paz, cercado pelos filhos na mesma casa simples onde construira a sua vida. Foi enterrado ao lado dela e, no túmulo dele, os filhos mandaram gravar. Ele amou. O comendador Antônio Drumon morreu em 1870.
sozinho na fazenda Santa Eufrásia, não deixou herdeiros. As terras foram leiloadas para pagar dívidas. A Casa Grande foi abandonada. Durante décadas virou ruína. Moradores de Valença contam que nas noites de lua cheia ainda é possível ouvir passos no corredor do segundo andar. Dizem que é assim a procurando o escravo que a enfeitiçou.
Outros dizem que são os dois caminhando juntos, finalmente livres. Mas isso, claro, é apenas lenda. O que não é lenda está escrito nos documentos, nos registros de casamento, nas certidões de óbito, nas cartas preservadas por descendentes e na memória teimosa de um país que insiste em esquecer suas histórias mais humanas. Em 2012, uma bisneta de Joaquim e Amélia, professora de história em São Paulo, encontrou num sebo antigo uma carta escrita por Amélia em 1879.


A carta nunca foi enviada, era endereçada ao Pai. Dizia: “Pai, sei que o Senhor nunca me perdoou. Sei que morreu me odiando, mas precisa saber. Eu fui feliz, mais feliz do que jamais seria naquela casa, naquele casamento, naquela vida. Joaquim me deu o que o Senhor nunca deu, liberdade. E eu dei a ele o que o Senhor nunca deu, humanidade.
Talvez um dia o mundo entenda, talvez não. Mas isso não importa mais, porque eu escolhi e escolheria de novo sua filha, Amélia. A professora doou a carta para o Arquivo Público de São Paulo. Hoje ela está exposta numa vitrine ao lado de outras cartas de mulheres do século XIX. E todo dia dezenas de pessoas param diante dela, leem e entendem finalmente que amor nunca foi sobre obediência, foi sempre sobre escolha. M.

Related Posts

Our Privacy policy

https://abc24times.com - © 2025 News