Redemption Creek, 1887
A tempestade fazia ranger as janelas e, mesmo assim, a casa de Elizabeth Thorne parecia mais barulhenta por dentro do que por fora. Desde que Thomas morrera num tiroteio de saloon, seis meses antes, as vozes dos outros nunca tinham faltado: vizinhos, comerciantes, conhecidos de igreja — todos a dizer-lhe como uma viúva “respeitável” devia viver. Aos 32 anos, com um rancho próspero e nenhuma vontade de voltar a um casamento sem afeto, Elizabeth aprendia a ficar de pé sozinha. Nem sempre era fácil.
Nessa manhã, Sarah Whittaker apareceu com um embrulho de tecido e muitos conselhos. Era viúva também, quarenta anos, o corpo curvado de tanto trabalho na loja de costura.
— Estão a falar, Elizabeth — disse, pousando o embrulho na mesa. — Dizem que recusas bons pretendentes. Que uma casa assim não devia ficar vazia.
— A casa não está vazia, Sarah — respondeu Elizabeth, com calma. — Estou eu. E estou a aprender a gostar disso.
Sarah torceu os lábios, como quem engole uma resposta amarga. Havia nas palavras dela mais cansaço do que maldade. Quando se foi embora, o pó da estrada nem tinha assentado e já a carruagem de Henderson dobrava a esquina. Karl Henderson, ranchero antigo, cinquenta e poucos, o homem que ela recusara anos antes quando aceitara casar com Thomas. Cruzaram-se no portão; ele ergueu o chapéu sem sorrir. O olhar ficou-lhe cravado como farpa.
À tarde, um rapaz magro pediu trabalho na cancela. Trazia o chapéu na mão e a humildade nos olhos.
— Jake Morrison, senhora. Sei lidar com gado. Se não tiver salário, fico por cama e comida até provar serviço.
Elizabeth mediu-lhe as botas gastas, as mãos com calos honestos.
— Começa hoje — disse. — E trata-me por “senhora Thorne”.
Ele assentiu. No curral, a competência dele calou qualquer desconfiança: voz baixa, movimentos precisos, a maneira de acalmar um cavalo com paciência. Ao final da tarde, quando Elizabeth levou água fresca, a conversa foi simples e direta — de preços de ração, cercas por reparar, o tempo que prometia geada. Nada de confidências. Ainda assim, a solidão dela levou uma pancada leve, como quem abre a janela para arejar.
Em três semanas, o rancho ganhou ritmo novo. Jake acordava antes do sol, fazia a ronda, adestrava dois potros difíceis que Thomas deixara por domar. Elizabeth, que conhecia bem as contas e as safras, passou a almoçar na cozinha com os peões — regra dela: todos sentados, todos servidos. Notou que Jake não bebia, não levantava a voz, não “opinava” sobre o que não lhe cabia. Notou também — e preferiu não comentar — que metade da vila começou a notar os dois.
— Senhora — avisou-lhe Amos, o capataz, numa manhã. — Na cidade dizem que o rapaz dorme na casa grande. Sarah andou com a língua solta. E Henderson anda a atiçar.
— Jake dorme no quarto da dispensa desde o primeiro dia — respondeu Elizabeth, seca. — E não tenho de pedir licença a ninguém para empregar quem quiser.
À noite, a tempestade caiu pesada. Jake apareceu à porta principal ensopado, o casaco colado ao corpo.
— O riacho subiu. Não consigo passar para a vila — disse, envergonhado. — Se houver um canto…
— Há um quarto de hóspedes — cortou Elizabeth. — Primeiro, aquece-te junto ao lume.
Ele estendeu as mãos ao fogo. O silêncio foi quebrado pelo estalar das achas e pelo tinido da chuva nas telhas. Elizabeth serviu-lhe chá com um gole de uísque “para afastar o frio”. Quando os olhos se encontraram, o momento pesou. Não era romance de banca; era cansaço e uma espécie de reconhecimento.
— Dizem que uma mulher sem homem é metade — soltou Elizabeth, sem pensar, a voz baixa, sincera demais. Mordeu o lábio a seguir, arrependida da fraqueza.
Jake pousou a chávena.
— Não acredito nisso, senhora Thorne. A minha mãe criou cinco filhos sozinha. Era inteira.
O que falta às vezes é alguém que não atrapalhe.
Aquilo fez-na sorrir. Depois, a noite seguiu o seu caminho: lenha, chá, portas fechadas. Jake dormiu no quarto de hóspedes; ela, no seu. O desejo, que existe e não precisa de ser negado, ficou onde devia ficar: sob controlo, como um cavalo bem treinado.
Na manhã seguinte, os boatos chegaram antes do pão. À tardinha, Henderson apareceu com três homens, cada um com o cinto pesado de quem quer o problema que traz.
— Esta terra sempre foi exemplo — disse, parado no pátio. — Agora virou espetáculo. Um rapazola hospedado na casa da viúva? Vai contra a moral da vila.
Elizabeth respirou fundo.
— Vai contra a sua moral, Karl. A minha é trabalhar, pagar em dia e não viver de mexericos.
— É orgulho, Elizabeth. Sempre foi. — Ele deu um passo. — Recusaste-me por dinheiro uma vez. Agora trocas a reputação por um peão.
Jake estava a dois passos, quieto, as mãos longe do coldre.
— Senhor Henderson, não vim para confusão. Só trabalho.
— Então trabalha longe — rosnou o outro.
Amos aproximou-se, firme, entre os dois grupos.
— Aqui ninguém aponta arma a ninguém. Se há queixa, fala-se com o xerife. — A autoridade do velho valeu mais do que os ferros na cintura.
Henderson cuspiu no chão, humilhado por não ter conseguido arrastar Elizabeth para o teatro que tinha preparado. Virou as costas, prometendo “voltar com a cidade inteira”.
Voltaram no domingo, mas não como Karl previra. Voltaram em bancos de igreja. O pastor, homem que gostava de equilíbrio, dedicou o sermão à caridade e ao “não julgar para não ser julgado”. Sarah, sentada na frente, ouviu de cabeça baixa. Quando a missa terminou, esperou por Elizabeth debaixo do alpendre.
— Fui eu quem falou demais — admitiu, sem enfeites. — Na loja, perguntaram-me. Respondi. Pus lenha numa fogueira que não me diz respeito.
Elizabeth olhou para a antiga amiga, a chuva miúda a cair entre as duas.
— Eu também já falei demais sobre a vida dos outros, Sarah. — Fez uma pausa. — O que queres agora?
— Que me perdoes. E que me deixes ajudar a calar a vila. — Sarah respirou. — Não és menos mulher por não querer um casamento qualquer. Eu aceitei o que apareceu. Não recomendo.
As duas riram, curtas, como quem quebra gelo antigo. Não ficaram íntimas de um dia para o outro, mas a cidade perdeu naquele instante a sua fofoca favorita.
Ainda assim, Henderson não desistiu. Entregou uma queixa no escritório do xerife: “conduta indecorosa”, uma daquelas expressões úteis quando não há crime mas há raiva. O xerife Patterson, que conhecia o peso das coisas, foi ao rancho, tomou café, pediu para falar com Elizabeth e com Jake em separado, ouviu, anotou.
— Não há lei contra hospedar empregado numa tempestade — concluiu. — Mas há lei contra ameaçar pessoas no próprio quintal. Sr. Henderson, se voltar armado, vai passar a noite na cela.
A notícia correu depressa. Boatos gostam de vento, mas têm medo de papel timbrado.
O verão chegou devagar. Jake ganhou salário fixo, quarto no anexo novo que Amos ajudou a levantar, duas éguas sob sua responsabilidade e uma lista de tarefas que nunca acabava. Elizabeth retomou as contas do gado, negociou sal e feno, contratou duas mulheres da vila para a cozinha — a casa tinha de cheirar a pão quente, não a desconfiança. Nos fins de tarde, às vezes, ficavam os dois no alpendre a ver a luz cair atrás dos morros. O que diziam cabia numa página: o que importa, o que dói, o que pode ser.
Numa dessas tardes, Jake tirou o chapéu e falou sem rodeios:
— Se a minha presença atrapalhar a sua vida, digo adeus hoje. Posso procurar trabalho em Bridger.
Elizabeth demorou a responder.
— A tua presença deu-me trabalho que é meu e silêncio que é bom. — Estendeu-lhe uma folha dobrada. — Isto é um contrato. Salário, moradia, percentagem nas crias que treinas. Quero que tenhas parte no que ajudas a construir.
Ele leu devagar, surpreendido.
— Nunca tive o meu nome num papel que valesse alguma coisa.
— Agora tens.
Foi assim que começou: com contrato, respeito, tempo. A intimidade veio depois, aos poucos, como a relva que volta onde a geada queimou. Houve mãos dadas fora do olhar dos outros, um beijo ao abrigo do celeiro, uma noite em que Elizabeth, finalmente, tirou a aliança e guardou-a na caixa das memórias que não mandam mais.
No outono, Henderson vendeu duas parcelas para pagar dívidas e perdeu importância na vila. Sarah ampliou a loja, contratou uma aprendiz e passou a costurar também para rancheiros, sem moralismos. O pastor continuou a pregar sobre caridade. O xerife aposentou-se e deixou um adjunto sensato no lugar. A tempestade que ameaçava virar desgraça transformou-se em chuva que faz crescer as coisas.
Num sábado, Elizabeth e Jake foram à cidade de braço dado. Não desafiaram ninguém; apenas compraram sal, tecido e pregos. Alguns desviaram os olhos, outros cumprimentaram. Na porta da mercearia, Sarah levou-lhes um rolo de linho.
— É prenda — disse. — Para cortinas novas.
— A casa agradece — respondeu Elizabeth.
Quando voltaram ao rancho, o céu estava alto e claro. Amos vinha do campo com notícias boas: duas vacas tinham parido sem complicações. Elizabeth sorriu, fechando o livro-caixa.
— Há muito tempo que não sinto isto — confessou, olhando a planície. — O peso certo nas mãos. Nem leve demais, nem pesado demais.
Jake pousou o chapéu, respeitoso como sempre, e ficou ao lado dela em silêncio.
— Diziam que eu precisava de um homem para ser inteira — continuou Elizabeth. — Descobri que precisava era de escolher melhor as pessoas à minha volta. — Virou-se para ele. — E de me escolher a mim.
Ele assentiu.
— E eu precisava de um lugar que não pedisse que eu fosse outro.
Ficaram ali, na soleira, a ver o entardecer pintar a madeira da casa com ouro. Não houve discursos; houve trabalho no dia seguinte, contas a pagar, bezerros para marcar, invernos por vir. Houve também o que importa e não se dita em voz alta: parceria, afeto sem espetáculo, duas inteirezas que decidiram caminhar lado a lado.
Quando a noite caiu, Elizabeth acendeu a lamparina, escreveu uma linha no diário e fechou a capa: Hoje, finalmente, a tempestade passou para dentro do calendário. Aqui, chama-se estação.