A mão dele se moveu em direção ao Lampião e Benedita congelou. O coração disparou, a respiração travou, o pânico subiu pela garganta como água fervente. Ela abriu a boca para pedir, para implorar, para ordenar que ele não fizesse aquilo, mas a voz não saiu. apenas ficou ali paralisada na escuridão do quarto, vendo a silhueta de Ismael se recortar contra a janela onde a lua entrava fraca e prateada, vendo os dedos dele roçarem no vidro do lampião, vendo o mundo inteiro prestes a desabar.
Porque se ele acendesse aquela luz, ia ver, ia ver tudo. Ia ver o corpo que ela escondia debaixo de camadas e mais camadas de tecido. E a ver as curvas que ela odiava. E a ver a gordura que a envergonhava, e a ver as marcas na pele que pareciam gritar tudo o que ela nunca foi.
E então ia embora, como todos iam embora, como todos sempre faziam quando viam quem ela realmente era. Benedita Amarante Guimarães tinha 27 anos, era viúva há cinco e carregava uma vergonha tão profunda que às vezes esquecia que estava viva. Não era uma vergonha de algo que tinha feito, era uma vergonha de algo que ela era, do próprio corpo, do próprio peso, da própria existência.

Desde criança tinha aprendido que o corpo dela era errado. As tias comentavam, as primas sussurravam, a mãe suspirava com tristeza, como se Benedita fosse uma decepção ambulante que nunca ia ser consertada. Come menos, esconde mais. Não chame atenção. Essas eram as lições que ela aprendeu antes mesmo de aprender a ler.
E quando o marido apareceu, um homem mais velho, que precisava de esposa e não era exigente, ela achou que tinha tido sorte. Achou que finalmente alguém a tinha escolhido, apesar de tudo, mas o marido nunca a olhava de verdade, nunca tocava nela, a não ser no escuro, nunca falava sobre ela, apenas sobre a fazenda, sobre dinheiro, sobre coisas.
Benedita era um objeto útil, mas não desejada. E quando ele morreu, 5 anos depois, ela sentiu alívio. Alívio por não ter mais que esconder. Alívio por não ter mais que fingir. Alívio por finalmente poder desaparecer na vivez e nunca mais ser vista de novo. E era exatamente isso que ela tinha feito. Passou os últimos anos trancada no casarão, usando apenas preto, saindo apenas quando absolutamente necessário, escondendo-se nas sombras, vivendo na escuridão.
Porque na escuridão ninguém via, na escuridão ela era segura. Mas então Ismael da Assunção apareceu e tudo mudou. Ismael era escravizado. Trabalhava na fazenda desde criança. Tinha 24 anos. Era magro, alto, com mãos grandes que pareciam feitas para segurar coisas com cuidado. Tinha olhos gentis, muito gentis, perigosamente gentis.
Benedita nunca tinha reparado nele antes, ou melhor, tinha reparado da forma como reparava em todos os escravizados, como parte da fazenda, como engrenagens que faziam tudo funcionar, mas não como pessoas de verdade. Até o dia em que ele a salvou de cair, foi bobagem. Benedita estava descendo à escada da varanda.
O vestido pesado prendeu no degrau. Ela tropeçou e, antes que caísse, braços fortes asseguraram. Ela olhou para cima, assustada, e viu o rosto dele perto, muito perto, e viu algo nos olhos dele que nunca tinha visto antes. Preocupação verdadeira. Ismael perguntou se ela estava bem. Benedita apenas a sentiu. Muda, sentindo o coração bater rápido demais.
Ele a soltou devagar, como se tivesse medo de machucá-la, e deu um passo para trás. Pediu desculpa por ter tocado nela e foi embora. Mas Benedita ficou ali parada, sentindo ainda o calor dos braços dele, o cheiro de terra e suor, a solidez daquele corpo que a tinha segurado como se ela fosse algo precioso. E pela primeira vez em anos sentiu algo diferente de vergonha.
sentiu curiosidade. Mas antes de continuarmos, diga nos comentários de onde está nos ouvindo. É prazeroso saber até onde nossas histórias estão indo. Aproveite esse momento para inscrever-se no canal e acompanhar nossos contos diários. Esse pequeno gesto também nos incentiva a continuar nessa jornada. Nos dias seguintes, Benedita começou a reparar em Ismael, não intencionalmente, ou talvez sim, ela não sabia ao certo.
Apenas percebia quando ele passava, quando trabalhava no quintal, quando carregava lenha para a cozinha, quando consertava acerca do curral. Ele era quieto, trabalhava em silêncio, nunca reclamava, nunca olhava para ninguém diretamente. Mantinha a cabeça baixa, como se quisesse desaparecer. tanto quanto ela.
E talvez fosse por isso que Benedita sentiu algo, reconhecimento, porque ele também estava escondido, também estava invisível, também sabia o que era não querer ser visto. Uma tarde, ela estava sentada na varanda fingindo ler, mas, na verdade, apenas olhando para o nada. Quando Ismael apareceu com um balde de água, ele ia regar as plantas que ficavam perto da casa.
Benedita o observou. Viu a forma como ele segurava o balde com cuidado para não derramar. Viu a forma como ele despejava a água devagar, certificando-se de que cada planta recebia o suficiente. Viu a forma como ele tocava as folhas, delicado, como se estivesse conversando com elas, sem palavras.
E então ele ergueu os olhos e a pegou olhando. Benedita desviou rápido, sentindo o rosto queimar. Mas quando arriscou o olhar de novo, viu que ele estava sorrindo apenas um pouco. Um sorriso pequeno, tímido, mas verdadeiro. E algo dentro dela se mexeu. Algo que ela achava que estava morto. Curiosidade virou interesse. Interesse virou atenção.
Atenção virou algo mais perigoso. Benedita começou a descer até a cozinha nos horários em que sabia que Ismael estaria por perto. começou a inventar desculpas para passar pelos lugares onde ele trabalhava. Começou a procurar por ele sem admitir que estava procurando. E Ismael, de alguma forma começou a aparecer também. Ele trazia flores do campo e deixava na varanda sem dizer nada.
Ela encontrava pela manhã sempre flores silvestres, simples, mas bonitas. Ele consertava coisas que ela nem sabia que estavam quebradas. a cadeira de balanço, o trinco da janela, o degrau solto da escada, nunca pedia nada em troca, nunca esperava reconhecimento, apenas fazia e sumia antes que ela pudesse agradecer. Mas Benedita agradecia do mesmo jeito, em silêncio, sozinha, segurando as flores e sentindo algo estranho no peito, algo quente, algo assustador, algo como esperança.
Até que um dia ela o encontrou chorando. Foi ao entardecer. Benedita tinha descido até o galpão de ferramentas, procurando uma tesoura para cortar tecido. Quando entrou, viu Ismael sentado num canto, o rosto escondido nas mãos, os ombros tremendo. Ela parou na porta. Devia voltar. Devia deixá-lo em paz.
devia fingir que não viu, mas não conseguiu. Entrou devagar, fez um barulho de propósito para que ele soubesse que não estava mais sozinho. Ismael levantou a cabeça rapidamente, limpou o rosto com as costas da mão, ficou de pé, pediu desculpa, disse que ia sair, que não devia estar ali, mas Benedita disse que não precisava ir. E então, pela primeira vez, os dois conversaram de verdade.
Ismael contou com a voz trêmula que tinham vendido a irmã dele, a única família que tinha. Levaram ela de manhã cedo, antes do sol nascer. Ele nem pôde se despedir, apenas viu a carroça sumindo na estrada e levando embora a única pessoa que o amava. Benedita ouviu em silêncio e sentiu uma dor no peito que não era dela, mas que era, porque ela entendia, entendia perda, entendia solidão, entendia o que era ter alguém arrancado da vida sem aviso.
Ela se aproximou sem pensar muito, apenas seguindo um instinto que nem sabia que tinha, e tocou a mão dele. Foi só isso, um toque leve, rápido. Mas Ismael olhou para ela como se ela tivesse feito algo extraordinário, como se pela primeira vez na vida dele alguém tivesse visto que ele estava sofrendo e tivesse se importado.
E foi ali que tudo mudou. Eles começaram a conversar, não muito, não sempre, mas quando tinham a chance. Ismael aparecia na cozinha quando Benedita estava tomando chá. Ela oferecia uma xícara. Ele aceitava. Sentavam em silêncio, bebendo devagar, apenas existindo no mesmo espaço. Às vezes falavam sobre coisas pequenas, sobre o clima, sobre as plantas, sobre memórias vagas de infância que não doíam tanto quanto as outras.
Ismael tinha uma voz bonita, grave, suave. Benedita gostava de ouvir e Ismael parecia gostar de falar com ela, de ser ouvido por alguém que realmente escutava. Aos poucos, os dois foram se aproximando, não fisicamente, mas de outras formas, formas invisíveis, formas perigosas. Benedita percebeu que esperava pelos momentos em que via ele, que o dia só começava de verdade quando ele aparecia, que o silêncio do casarão era menos pesado quando sabia que ele estava por perto.
E Ismael, Ismael começou a olhar para ela de um jeito diferente. Não como um escravizado olha para a senhora, mas como um homem olha para uma mulher com desejo, talvez, mas não só isso, com algo mais profundo, com algo que parecia admiração, respeito, carinho. E Benedita, que nunca tinha sido olhada assim, não sabia o que fazer com aquilo.
tinha medo, muito medo, porque se ele olhava assim agora, era porque não tinha visto direito, porque estava escuro, porque ela ainda estava escondida. Mas e se um dia ele visse? E se a luz revelasse a verdade? E se ele percebesse que tinha se enganado? O medo crescia a cada dia, e com o medo crescia também outra coisa, vontade.
Benedita queria ser vista, mas também tinha pavor de ser vista. Queria ser tocada, mas também tinha certeza de que se fosse tocada seria rejeitada. Era uma contradição dolorosa que a dilacerava por dentro. Até a noite em que tudo explodiu. Foi numa madrugada fria. Benedita acordou com um barulho estranho, desceu para investigar e encontrou Ismael no corredor, segurando uma lamparina, olhando confuso.
Ele explicou que tinha ouvido um barulho também, que tinha vindo ver se estava tudo bem, que não queria assustá-la. Benedita disse que estava tudo bem, que provavelmente era só o vento, mas nenhum dos dois se mexeu. Ficaram ali parados no corredor escuro, com apenas a luz fraca da lamparina tremendo entre eles.
E então Ismael fez algo inesperado. Perguntou se ela estava bem. de verdade, não bem no sentido de segurança física, mas bem no sentido de alma, de coração. Benedita ficou sem palavras porque ninguém nunca tinha perguntado isso. Ninguém nunca se importou o suficiente para querer saber. Ela disse que não sabia, que às vezes sentia que não estava nem viva, nem morta, que apenas existia esperando, mas não sabia pelo quê.
Ismael se aproximou devagar, como se estivesse se aproximando de algo selvagem que podia fugir a qualquer momento. E disse algo que a arrepiou. Disse que ela parecia viva para ele, que via nela, mesmo quando ela achava que não tinha, que via bondade, delicadeza, força escondida debaixo da tristeza. Benedita sentiu as lágrimas subirem, balançou a cabeça, disse que ele não a conhecia de verdade, que se conhecesse não diria aquilo.
Mas Ismael insistiu, disse que conhecia, que via todos os dias, em cada gesto, em cada palavra, em cada olhar que ela não sabia que ele estava vendo. E então, sem pedir permissão, ele estendeu a mão e tocou o rosto dela. apenas tocou com a ponta dos dedos, roçando a bochecha. Delicado, reverente. Benedita fechou os olhos e deixou.
pela primeira vez em tantos anos, deixou alguém tocá-la sem esconder, sem fugir, e foi assustador e maravilhoso ao mesmo tempo. Mas o destino ainda não tinha mostrado tudo. Nos dias seguintes, Benedita não conseguiu parar de pensar naquele toque, naqueles dedos na pele dela, naquele momento em que, por um segundo, ela se sentiu vista, mas junto com a lembrança vinha o medo, porque tinha sido escuro, porque ele não tinha visto direito, porque a qualquer momento podia ver e mudar de ideia.
Ela começou a evitá-lo, não por raiva, mas por proteção, porque quanto mais perto ficavam, mais doía a inevitabilidade da rejeição. Mas Ismael não desistiu. Ele continuou aparecendo, continuou trazendo flores, continuou consertando coisas, continuou existindo na órbita dela como um planeta fiel que não sabia fazer outra coisa além de girar.
Até que uma tarde Benedita não aguentou mais, chamou ele até a varanda. Disse que precisavam conversar, que aquilo não podia continuar, que ele estava confundindo gratidão com outra coisa, que ela não era quem ele achava que era. Ismael ouviu tudo em silêncio. Depois perguntou o que ela achava que ele pensava. Benedita hesitou. Depois disse a verdade que nunca tinha dito em voz alta.
diz que ele provavelmente achava que ela era bonita, ou pelo menos aceitável, porque não tinha visto direito, porque sempre estava escuro, porque ela sempre estava escondida, mas que se visse, se realmente visse, ia perceber que ela era feia, gorda, cheia de defeitos e ia embora, como todos foram. O silêncio que se seguiu foi longo.
Depois, Ismael fez algo que ela não esperava. riu, não de deboche, mas de algo parecido com descrença, como se ela tivesse dito a coisa mais absurda do mundo. E então ele disse algo que partiu e reconstruiu o coração dela ao mesmo tempo. Eu já te vi. Vi de verdade em cada momento e não sou cego. Sei exatamente quem você é e ainda assim estou aqui.
Benedita sentiu o mundo girar, tentou argumentar, tentou dizer que não, que ele não entendia, mas Ismael não deixou. Ele se aproximou, segurou o rosto dela entre as mãos e disse algo ainda mais devastador. disse que ela era bonita, não apesar do corpo, mas com ele, que as curvas eram parte dela, que o peso era parte dela, que tudo era parte dela, e que ele amava cada parte, porque cada parte era ela e que se ela deixasse, se ela tivesse coragem, ele queria provar, queria mostrar que não tinha medo de vê-la, que não ia fugir, que não ia julgar, queria
apenas amá-la como ela era na luz. Benedita estava chorando agora, chorando de medo, chorando de esperança, chorando de tudo. Então, tremendo, assentiu. Disse que tinha medo, muito medo, mas que ia tentar confiar. Eles subiram para o quarto de Benedita naquela noite, não para nada físico, mas para algo mais importante, para um ato de coragem.
Benedita entrou primeiro. O quarto estava escuro, como sempre. Ela sempre apagava todas as velas antes de dormir. Sempre fechava as cortinas, sempre se certificava de que não havia luz. Mas dessa vez Ismael estava ali e ele caminhou até a mesa onde ficava o lampião. Foi quando ela congelou, quando o pânico subiu, quando quase pediu para ele parar, mas não pediu, apenas ficou ali respirando rápido, tremendo, vendo ele acender o pavio.

A chama surgiu pequena. Depois cresceu e a luz amarela e dourada encheu o quarto, expulsando as sombras, revelando tudo, revelando ela. Benedita estava parada no meio do quarto, ainda com o vestido preto pesado, os braços cruzados sobre o peito, como se pudesse se esconder, mesmo estando completamente visível. Ismael virou-se para ela e olhou.
Realmente olhou. Benedita não conseguia respirar direito. Queria fechar os olhos. queria desaparecer, queria que a terra se abrisse e a engolisse, mas forçou-se a ficar, forçou-se a deixar ser vista. Ismael caminhou até ela devagar. Os olhos dele percorriam o corpo dela, mas não do jeito que ela esperava, não como, não com decepção, mas com algo que parecia reverência.
Ele parou na frente dela, estendeu a mão e tocou o braço dela. Só isso. Apenas um toque sobre o tecido. E então disse a última coisa que mudaria tudo para sempre. Você é a coisa mais bonita que eu já vi na vida. Benedita soltou um soluço, balançou a cabeça, disse que não, que ele estava sendo gentil, que não precisava mentir.
Mas Ismael segurou o rosto dela, obrigando-a a olhar nos olhos dele, e repetiu: Disse que não estava mentindo, que nunca mentiria sobre isso, que ela era linda para ele de verdade. E pela primeira vez na vida, Benedita acreditou, não completamente, não perfeitamente, mas acreditou o suficiente para não fugir. Ela deixou ele segurar, ela deixou ele abraçá-la, deixou ser amada na luz e percebeu algo que nunca tinha percebido antes.
A luz não espunha destruir, a luz expunha libertar. Porque no escuro ela podia fingir que era outra pessoa, podia esconder, podia mentir, mas na luz tinha que ser quem realmente era. E Ismael a amava, sendo quem ela realmente era. Os meses seguintes foram os mais difíceis e os mais bonitos da vida de Benedita. difíceis, porque ela ainda lutava contra a vergonha, contra a voz dentro da cabeça que dizia que não merecia, contra o medo de que um dia Ismael acordasse e percebesse que tinha cometido um erro, mas bonitos, porque pela primeira vez
ela estava vivendo de verdade. Ela começou a sair do quarto com a luz acesa, começou a abrir as cortinas, começou a deixar o sol entrar. Ismael passou a subir até o casarão mais vezes, sempre com desculpas, consertar isso, buscar aquilo. Mas os dois sabiam que era só para estar perto. Eles conversavam por horas sobre tudo, sobre nada, sobre a vida que tinham vivido e a vida que queriam viver.
E aos poucos, Benedita começou a acreditar que merecia ser amada. Mas o mundo lá fora não aceitava. Havia olhares, comentários, fofocas que chegavam até ela através das criadas, dos capatazes, dos vizinhos. Diziam que era vergonhoso, que ela tinha enlouquecido, que estava deshonrando a memória do marido, que um envolvimento com um escravizado era imperdoável.
Mas Benedita, que tinha passado a vida inteira se importando com o que os outros achavam, descobriu algo surpreendente. Ela não se importava mais. ou melhor, se importava, doía, mas não o suficiente para desistir, porque pela primeira vez ela tinha algo que valia a pena lutar, tinha amor real, verdadeiro, livre, e não ia abrir mão disso por medo do julgamento.
Então, ela tomou uma decisão. ia libertar Ismael. Procurou os papéis. Descobriu que tinha o direito de libertar um escravizado usando o dinheiro que o marido tinha deixado. Era pouco, mas era suficiente. Assinou os documentos, carimbou e numa tarde dourada entregou a alforria para Ismael. Ele olhou para os papéis sem entender no começo.
Depois entendeu e caiu de joelhos chorando. Benedita se ajoelhou também. segurou o rosto dele e disse que agora ele era livre. Livre para ir, livre para ficar, livre para escolher. E então perguntou com o coração na garganta o que ele escolhia. Ismael não hesitou. diz que escolhia ela, sempre ia escolher ela. Os dois sabiam que não seria fácil, que o mundo ainda julgaria, que as pessoas ainda falariam, que haveria obstáculos, mas também sabiam que juntos conseguiriam enfrentar.
Eles saíram da fazenda algumas semanas depois, não foram expulsos. Benedita simplesmente decidiu ir. decidiu começar de novo em outro lugar, um lugar onde ninguém os conhecesse, onde pudessem ser apenas eles mesmos. Encontraram uma casinha para alugar numa vila pequena, simples, apertada, mas deles Ismael conseguiu trabalho como carpinteiro.
Benedita começou a costurar para as mulheres da vila e aos poucos construíram uma vida. As pessoas estranharam no começo, perguntaram, julgaram, mas com o tempo se acostumaram, porque Benedita e Ismael eram respeitosos, trabalhadores, não incomodavam ninguém e eventualmente foram aceitos, não por todos, mas por alguns, e alguns eram suficientes.
Benedita ainda tinha dias ruins, dias em que a vergonha voltava, dias em que olhava para o próprio corpo e ainda havia defeitos. Mas agora, quando isso acontecia, Ismael estava lá. Ele segurava a mão dela, olhava nos olhos dela e lembrava ela de que era amada exatamente como era. E aos poucos, dia após dia, Benedita foi aprendendo a se amar também, não perfeitamente, não completamente, mas um pouco mais a cada dia.
Uma manhã, meses depois de terem saído da fazenda, Benedita acordou com o sol entrando pela janela. A luz dourada banhava o quarto pequeno, iluminava tudo, não havia sombras, não havia escuridão. E pela primeira vez, Benedita não sentiu vontade de fechar as cortinas. apenas ficou ali deitada, sentindo o calor do sol na pele, ouvindo Ismael respirar ao lado dela e percebendo que estava em paz, ela virou o rosto e olhou para ele.
Ele ainda dormia, o rosto tranquilo, os lábios levemente entreabertos, as mãos grandes descansando sobre o peito. E Benedita sorriu porque finalmente entendia: “A luz não era inimiga, nunca foi. luz apenas mostrava a verdade, e a verdade era que ela sempre foi digna de amor. Ismael abriu os olhos devagar, viu ela olhando e sorriu também. Estendeu a mão.
Benedita entrelaçou os dedos nos dele e os dois ficaram ali em silêncio. Na luz dourada da manhã, o sol continuou subindo no céu e a vida continuou acontecendo simples e verdadeira. No pequeno quarto iluminado, onde não havia mais lugar para esconder.