
O ar de março em Minas Gerais carregava mais do que o perfume das flores de ipê, carregava segredos antigos e o peso da morte. Padre Anselmo parou diante do portão de ferro forjado da Fazenda Amaral, as suas mãos a tremerem ao apertar o crucifixo de madeira contra o peito. O metal frio do portão contrastava com o calor sufocante que emanava da propriedade, um calor que não era de vida, mas de febre e putrefação.
Três dias. Três longos dias sem ver Galdino Amaral na missa dominical. Três dias de silêncio absoluto vindo da fazenda mais próspera de toda Ouro Preto. Algo estava terrivelmente errado, e o padre, um homem forjado na fé, sentia que a própria Terra estava a reter a respiração sob o fardo daquele silêncio.
O cheiro chegou como uma bofetada invisível, doce no início, depois enjoativo, depois inconfundível. O padre conhecia bem esse aroma, infelizmente. Havia-o sentido antes, durante os últimos sacramentos aos moribundos e nos campos de doença. Era o cheiro da putrefação, da carne que apodrece sob o sol inclemente de Minas Gerais, o aroma frio e acre da morte. Mas por que razão vinha da casa dos Amaral?
As janelas da casa grande permaneciam fechadas como olhos mortos, todas elas. As pesadas cortinas de veludo vermelho bloqueavam qualquer vislumbre do interior, mantendo a luz afastada e os segredos seguros. Era como se a família tivesse simplesmente evaporado no ar rarefeito da serra. Mas o cheiro, o cheiro sussurrava uma verdade muito diferente, uma verdade que fazia o estômago do padre revirar-se e a sua fé vacilar.
Padre Anselmo forçou os pés a avançarem pelo caminho de pedras portuguesas. Cada passo ecoava como um tambor fúnebre no silêncio opressivo que se instalara sobre a fazenda. As árvores ao redor pareciam inclinar-se para observá-lo, os seus galhos finos formando garras sombrias contra o céu acinzentado e pesado. O vento havia parado completamente. Nem mesmo o canto dos pássaros quebravam a quietude mortal que ali se instalara.
A porta principal da casa estava entreaberta. Isso nunca acontecia. Emerenciana Amaral era conhecida pela sua obsessão com a segurança: trancas duplas, ferrolhos, cadeados. A casa era uma fortaleza impenetrável, mas agora a porta balançava suavemente, num convite macabro que o padre sentiu como um engodo.
O padre empurrou a madeira pesada. O ranger dos gonzos cortou o silêncio como um grito de agonia, uma denúncia feita de metal e madeira. O cheiro intensificou-se, quase sólido agora, envolvendo-o como uma mortalha invisível, pegajosa e sufocante. Os seus olhos lacrimejaram, a sua garganta fechou-se com a náusea.
“Santíssima Virgem, o que aconteceu aqui?”
O interior da casa estava mergulhado em penumbra, numa escuridão onde as sombras pareciam ganhar vida própria. Os móveis finos, importados diretamente do Rio de Janeiro, permaneciam nos seus lugares. As pratarias brilhavam nas prateleiras. Nada parecia ter sido roubado. Nada parecia ter sido perturbado, exceto pela ausência absoluta de vida e pelo cheiro.
Padre Anselmo avançou pela sala principal, os seus passos abafados pelo tapete persa. As paredes cobertas de retratos familiares pareciam observá-lo com olhos acusadores, mudos testemunhos de um horror que se recusava a ser revelado. Galdino Amaral sorria de uma moldura dourada, a sua barba bem aparada, os seus olhos escuros a brilharem com uma confiança que agora parecia sinistra. Emerenciana posava ao lado do marido, a sua beleza fria, quase inumana, preservada para sempre na tinta a óleo. Onde estariam eles agora?
O padre seguiu o cheiro como um cão de caça segue um rasto. Ele levou-o através do corredor principal, passando pela biblioteca repleta de livros encadernados em couro, passando pela sala de jantar com a sua mesa capaz de acomodar vinte pessoas. O cheiro ficava mais forte a cada passo, mais denso, mais nauseabundo. E então ele viu, no final do corredor, uma porta que nunca havia notado antes. Uma porta de madeira escura, quase preta, com dobradiças que pareciam ter sido forjadas no próprio inferno.
A porta estava ligeiramente aberta e dela emanava não apenas o cheiro, mas algo mais: um frio sobrenatural que fazia os pelos do braço arrepiarem-se e a sua alma vacilar. Padre Anselmo aproximou-se com passos hesitantes. A sua respiração tornou-se superficial, o seu coração batia como um martelo contra as costelas. A mão trémula alcançou o puxador de ferro. O metal estava gelado como gelo, indiferente ao calor do dia.
Ele empurrou a porta e viu o inferno na terra.
Escadas de pedra desciam em espiral para as profundezas da casa. Escadas que ele nunca soube que existiam. O cheiro subia delas como uma exalação demoníaca, carregando consigo sussurros de horror que faziam a sua alma estremecer de repulsa. Lá em baixo, nas trevas, algo terrível havia acontecido, algo que mudaria Ouro Preto para sempre, rasgando o véu da sua aparente civilidade.
O padre olhou para trás uma última vez, para a casa silenciosa, para os retratos que pareciam zombar dele das paredes. Depois, apertando o crucifixo até que os seus dedos doessem, começou a descer as escadas. Cada degrau o levava mais fundo no coração das trevas. Cada degrau o aproximava da verdade sobre a Família Amaral. Uma verdade que nenhum homem, por mais que rezasse, deveria conhecer.
Três semanas antes do horror final, Ouro Preto despertava sob o sol dourado de março. As ruas de pedra ecoavam com o barulho dos cascos dos cavalos e as vozes dos comerciantes anunciando as suas mercadorias. Era uma cidade próspera, alimentada pelo ouro que ainda brotava das entranhas da serra. E no topo dessa prosperidade, como uma coroa reluzente e fria, estava a Família Amaral.
Galdino Amaral caminhava pela praça central com a postura de um rei: alto, imponente, a sua barba negra bem aparada emoldurava um rosto que inspirava respeito e, secretamente, uma inveja profunda e corrosiva. Aos 42 anos, era o homem mais rico de toda a região. As suas minas produziam mais ouro que qualquer outra. Os seus negócios estendiam-se até à capital do império. O seu nome era sussurrado com reverência nos salões mais elegantes. Mas como um homem consegue tanto sucesso em tão pouco tempo, desafiando a própria sorte e a inconstância da natureza?
Emerenciana Amaral era a joia mais preciosa da sociedade local. Os seus cabelos castanhos brilhavam como seda sob a luz das velas durante os saraus que organizava em sua casa. A sua voz melodiosa encantava os convidados quando recitava poesias francesas. As suas mãos delicadas serviam chá em porcelana fina importada diretamente de Lisboa. Era a esposa perfeita para um homem perfeito, mas por trás daqueles olhos verdes havia algo que poucos percebiam. Uma frieza que contrastava com o seu sorriso caloroso, uma calculista que media cada palavra, cada gesto, cada olhar, como se a vida fosse uma complexa equação a ser resolvida a seu favor.
Os filhos do casal eram a inveja de todas as famílias da região. Policarpo, de 16 anos, já demonstrava a mesma astúcia nos negócios que tornara o seu pai famoso. Baldina, de 14 anos, possuía a beleza da mãe e uma inteligência que impressionava até os homens mais cultos da cidade. Eram jovens educados, refinados, destinados a grandes coisas. Eram a família perfeita, demasiado perfeita para ser real.
Zeferino Silva observava tudo isso com olhos que haviam visto muito mais do que a sua posição de capataz lhe permitiria. Aos 50 anos, era o empregado mais antigo da Fazenda Amaral. Havia chegado ali quando Galdino ainda era apenas um jovem ambicioso, com mais sonhos que dinheiro. Havia testemunhado a ascensão meteórica da família e começara a questionar como tudo isso era possível. As minas dos Amaral produziam ouro constantemente, nunca secavam, nunca diminuíam a produção. Era como se a Terra abençoasse especificamente aquela família, enquanto outros mineradores da região lutavam com veios que se esgotavam, com túneis que desabavam com a inconstância cruel da natureza.
Os Amaral pareciam ter feito um pacto com a própria sorte, ou com algo muito pior. Zeferino começou a notar coisas estranhas durante os seus vinte anos de serviço. Reuniões noturnas que aconteciam quando a família pensava que todos dormiam. Homens encapuzados que chegavam na calada da madrugada e desapareciam antes do amanhecer. Luzes estranhas que brilhavam no porão da casa grande, um porão que supostamente não existia.
E, principalmente, pessoas que chegavam à fazenda e nunca mais eram vistas. Comerciantes viajantes que aceitavam a hospitalidade dos Amaral simplesmente evaporavam. Os seus cavalos apareciam soltos nas estradas, as suas bagagens desapareciam. Eles próprios se tornavam apenas memórias vagas que logo eram esquecidas pela cidade ocupada demais com os seus próprios problemas. Mas Zeferino lembrava. Zeferino contava e o número estava a crescer, um peso invisível na sua consciência.
Durante os jantares elegantes que a família oferecia, Zeferino servia à mesa e observava. Via como Galdino escolhia cuidadosamente os seus convidados: sempre viajantes, sempre pessoas sem família próxima na região, sempre indivíduos que não seriam imediatamente procurados se desaparecessem. E via como Emerenciana sorria quando servia o vinho. Um sorriso que não chegava aos olhos, um sorriso que escondia segredos terríveis. Os filhos também sabiam. Policarpo e Baldina participavam dessas reuniões especiais desde pequenos. Haviam sido criados para aceitar o inaceitável, para ver o horror como normalidade, para perpetuar tradições que nenhuma criança deveria conhecer. Era uma família unida por laços mais fortes que o sangue, laços forjados no fogo do inferno.
Na última semana de fevereiro, Zeferino decidiu investigar. Esperou até que a família saísse para um compromisso social na cidade. Desceu até aos estábulos e examinou o chão com cuidado. Encontrou manchas escuras entre as tábuas de madeira, manchas que não eram de animais. Seguiu um rasto quase impercetível até uma porta que nunca havia notado antes. Uma porta escondida atrás de fardos de feno, uma porta que levava às profundezas da terra. E lá em baixo, nas trevas húmidas do subsolo, descobriu a fonte da prosperidade dos Amaral. Descobriu por que razão eles nunca ficavam sem ouro. Descobriu o preço terrível que pagavam pela sua riqueza. E descobriu que alguns segredos são pesados demais para uma alma carregar sozinha.
Zeferino saiu daquele porão um homem diferente. Os seus cabelos embranqueceram da noite para o dia. As suas mãos tremiam constantemente. Os seus olhos carregavam um horror que palavras não conseguiam expressar. Ele sabia que precisava contar a alguém, mas quem acreditaria? Quem ousaria desafiar a família mais poderosa da região? Apenas um homem tinha a coragem e a autoridade moral suficiente: Padre Anselmo.
O sino da igreja de Nossa Senhora do Pilar badalava seis horas da tarde quando Inocêncio Tavares chegou a Ouro Preto. O seu cavalo alazão estava cansado da longa jornada desde a capital e o jovem tropeiro, de 23 anos, procurava um lugar para passar a noite. Nos seus alforges, trazia ouro suficiente para comprar uma pequena propriedade, fruto de meses de trabalho árduo, transportando mercadorias entre as cidades. Era exatamente o tipo de pessoa que Galdino Amaral procurava: jovem, sozinho e com um futuro promissor, que ele pretendia ceifar.
Inocêncio parou na taverna do centro para tomar uma água ardente e perguntar sobre hospedagem. As suas roupas simples, mas limpas, o seu jeito educado e, principalmente, o tilintar discreto das moedas na sua bolsa, chamaram a atenção de todos. Numa cidade onde as notícias voavam mais rápido que os pássaros, não demorou para que Galdino soubesse da chegada do jovem tropeiro.
O encontro pareceu casual. Galdino entrou na taverna como se fosse apenas mais um cliente em busca de uma bebida após um dia de trabalho. Cumprimentou conhecidos, trocou algumas palavras sobre o clima e os negócios. Então, como se fosse a coisa mais natural do mundo, puxou conversa com o forasteiro. Inocêncio ficou impressionado. Nunca havia conversado com alguém tão importante. Galdino demonstrava interesse genuíno nas suas histórias de viagem, nas suas aventuras pelas estradas poeirentas de Minas Gerais. O jovem sentiu-se valorizado, importante. Era exatamente assim que Galdino queria que ele se sentisse: seguro, apreciado e ingénuo.
A conversa estendeu-se por horas. Galdino comprou rodadas de cachaça, ouviu atentamente cada palavra, fez perguntas inteligentes. Descobriu que Inocêncio viajava sozinho, que a sua família morava longe, que ninguém o esperava em lugar algum nos próximos dias. Perfeito. Quando o sol começou a pôr-se atrás das montanhas, pintando o céu de laranja e vermelho, Galdino fez o convite que mudaria tudo.
“Fique para o jantar,”
insistiu, com uma hospitalidade que parecia sincera.
“A estrada à noite é perigosa. Bandidos, animais selvagens, buracos que podem quebrar a perna de um cavalo. A minha esposa prepara a melhor comida da região. Você pode partir descansado pela manhã.”
Inocêncio hesitou. Não queria incomodar. Não queria aproveitar-se da generosidade de um estranho, mas Galdino foi persuasivo. Falou sobre a hospitalidade mineira, sobre a importância de ajudar os viajantes, sobre como seria ofensivo recusar a oferta. O jovem tropeiro, lisonjeado e exausto, aceitou. Foi a última decisão que tomou em vida.
A Fazenda Amaral impressionou Inocêncio desde o primeiro momento. O portão de ferro forjado, os jardins bem cuidados, a casa grande com as suas janelas iluminadas. Era um mundo diferente do que conhecia, um mundo de riqueza e sofisticação que o fazia sentir-se pequeno e deslocado. Emerenciana recebeu-o com um sorriso caloroso. As suas mãos delicadas tomaram o seu chapéu. As suas palavras gentis fizeram-no sentir-se em casa. Os filhos do casal, Policarpo e Baldina, foram apresentados como jovens educados e inteligentes. Era uma família perfeita a receber um hóspede com perfeita e calculada hospitalidade.
Mas Zeferino, observando de longe, sentiu um arrepio percorrer a sua espinha. Conhecia aquele ritual. Havia-o testemunhado antes. Sabia como terminaria.
O jantar foi servido na sala principal. Pratos finos, talheres de prata, vinho importado. Inocêncio nunca havia comido numa mesa tão elegante. A comida estava deliciosa, temperada com especiarias que não conseguia identificar. A carne, estranhamente macia, tinha um sabor que lhe era novo, mas irresistível. O vinho era doce e forte, aquecendo o seu peito e relaxando os seus músculos.
A conversa fluía naturalmente. Galdino perguntava sobre as estradas, sobre os preços na capital, sobre as oportunidades de negócio. Emerenciana interessava-se pelas suas histórias de viagem, pelos lugares que havia conhecido. Os filhos ouviam em silêncio, os seus olhos a brilharem com uma curiosidade estranha, como se estivessem a medir a qualidade da iguaria que estava prestes a ser servida.
Inocêncio sentia-se especial, importante, valorizado por pessoas que claramente estavam muito acima da sua condição social. O vinho continuava a fluir e ele continuava a beber, relaxando cada vez mais. Não percebeu quando começou a sentir-se sonolento. Não percebeu quando as suas palavras começaram a ficar pastosas. Não percebeu quando os seus olhos começaram a pesar. Atribuiu tudo ao cansaço da viagem e ao vinho generoso. Quando finalmente perdeu a consciência, desmaiando sobre a mesa de jantar, ainda estava a sorrir.
Zeferino observou tudo da cozinha. Viu quando Inocêncio desmaiou sobre a mesa. Viu quando Galdino e Policarpo carregaram o corpo inerte. Viu quando desceram pelas escadas que levavam ao porão secreto, o lugar onde a escuridão era completa. E ouviu os gritos que ecoaram das profundezas da terra. Gritos que duraram horas, gritos que se transformaram em súplicas, súplicas que se transformaram em gemidos, gemidos que finalmente se transformaram em silêncio. Um silêncio que Zeferino sabia ser muito pior do que qualquer grito.
Na manhã seguinte, o cavalo alazão de Inocêncio apareceu solto na praça central de Ouro Preto, sem cavaleiro, sem alforges, sem qualquer sinal do jovem tropeiro que havia chegado cheio de vida apenas um dia antes. O delegado Firmino Pereira fez algumas perguntas de rotina. Galdino explicou que o rapaz havia partido muito cedo, antes do amanhecer. Disse que parecia ansioso para continuar a sua jornada. Lamentou que o jovem não tivesse ficado para o pequeno-almoço. O caso foi arquivado como mais um mistério das estradas. Bandidos, provavelmente. Ou talvez o cavalo tivesse-se assustado com algum animal selvagem. Essas coisas aconteciam, mas Zeferino sabia a verdade.
Havia encontrado evidências nos estábulos, manchas escuras no chão de madeira, manchas que não eram de animais, manchas que contavam uma história terrível sobre o destino de Inocêncio Tavares. E havia algo mais, algo que o fez questionar tudo que pensava saber sobre a família que servia há vinte anos. Naquela manhã, quando foi limpar a sala de jantar, encontrou os pratos ainda sujos sobre a mesa. Pratos com restos de comida que não conseguia identificar. Carne de uma cor estranha, temperada com especiarias exóticas. Carne que não parecia vir de nenhum animal que conhecia. Zeferino olhou para aqueles restos com crescente horror. A sua mente recusava-se a aceitar o que os seus olhos viam, mas as evidências estavam ali, cruas e inegáveis. A Família Amaral havia jantado na noite anterior e Inocêncio Tavares havia sido o prato principal.
Os desaparecimentos multiplicaram-se como uma praga silenciosa. Após Inocêncio, outros viajantes começaram a sumir nas estradas próximas a Ouro Preto. Sempre a mesma história, sempre o mesmo padrão. Pessoas que chegavam sozinhas, sem família próxima, carregando alguma riqueza que pudesse interessar aos Amaral. Zeferino não conseguia mais dormir. Cada noite era uma tortura de memórias e descobertas horríveis. Havia encontrado mais evidências nos estábulos: pedaços de roupa rasgada escondidos entre o feno, manchas de sangue que se espalhavam como dedos acusadores pelo chão de madeira e, principalmente, havia encontrado ossos. Ossos que não eram de animais.
O capataz começou a manter um registo secreto. Anotava os nomes dos desaparecidos, as datas, as circunstâncias. Em três meses, contou sete pessoas que haviam aceitado a hospitalidade dos Amaral e nunca mais foram vistas. Sete almas que se perderam nas trevas daquela fazenda amaldiçoada. Mas quem acreditaria nas suas palavras contra a família mais respeitada da região, a família que era o motor da prosperidade local?
Padre Anselmo começou a notar a mudança em Zeferino durante as missas dominicais. O homem que sempre fora robusto e confiante agora parecia assombrado. Os seus olhos carregavam um peso terrível. As suas mãos tremiam durante as orações. Era como se carregasse um fardo que estava a destruir a sua alma aos poucos. Após várias semanas a observar o sofrimento silencioso do capataz, o padre decidiu agir. Procurou Zeferino após uma missa particularmente tensa, quando notou que o homem havia chorado durante a leitura dos salmos.
A conversa aconteceu nos fundos da igreja, longe de ouvidos curiosos. Zeferino hesitou por muito tempo antes de falar. As palavras saíam como confissões arrancadas à força, cada uma carregada de dor e horror. Contou sobre os desaparecimentos, sobre as manchas de sangue, sobre os ossos que havia encontrado. E contou sobre as reuniões noturnas.
“Eles fazem algo terrível lá em baixo,”
sussurrou Zeferino, a sua voz a quebrar de emoção.
“Ouço gritos que vêm das profundezas da terra, gritos que não são humanos. Depois, silêncio. Um silêncio que é pior que qualquer grito.”
Mencionou a Padre Anselmo que havia notado um padrão nos rituais, que pareciam ocorrer em noites específicas, ligadas a ciclos lunares ou datas importantes para eles. Padre Anselmo sentiu o seu sangue gelar. Conhecia Zeferino há anos. Era um homem honesto, trabalhador, incapaz de mentir. Se ele estava a relatar aquelas atrocidades, era porque realmente as havia testemunhado.
O padre decidiu investigar pessoalmente. Na noite seguinte, escondeu-se nos fundos da propriedade dos Amaral. Escolheu uma posição entre as árvores que lhe dava visão clara da casa grande, sem ser detetado. Esperou, observou, rezou para que Zeferino estivesse enganado. As suas orações não foram atendidas. Por volta da meia-noite, começaram a chegar homens encapuzados montados em cavalos silenciosos. Padre Anselmo reconheceu algumas silhuetas, apesar dos capuzes: o juiz Baltazar Mendes, o comerciante Libânio Santos, até mesmo o delegado Firmino Pereira estava entre eles. A elite de Ouro Preto reunia-se na Fazenda Amaral para propósitos que o padre nem ousava imaginar.
Era uma dessas noites que Zeferino havia mencionado. Os homens desceram dos seus cavalos e foram recebidos por Galdino na entrada principal da casa. Não houve cumprimentos calorosos ou conversas casuais. Era um encontro de negócios, negócios sombrios que exigiam sigilo absoluto.
Padre Anselmo observou quando todos desceram para o porão através de uma entrada que nunca havia notado antes. Luzes estranhas começaram a brilhar através das frestas no chão da casa. Luzes que pulsavam como um coração diabólico. E então começaram os cânticos. Vozes masculinas entoando palavras numa língua que o padre não reconhecia. Palavras que faziam a sua pele arrepiar-se e a sua alma estremecer. Não eram orações cristãs, eram invocações de algo muito mais antigo e terrível.
Os cânticos duraram horas, às vezes intensificavam-se, às vezes diminuíam para sussurros quase inaudíveis, mas sempre mantinham um ritmo hipnótico que parecia sincronizado com as batidas do coração do padre. Quando finalmente pararam, o silêncio foi ensurdecedor. Padre Anselmo esperou, mal ousando respirar. Então viu Galdino emergir das profundezas, carregando algo que brilhava à luz da lua, algo que não era ouro, mas que refletia a luz de forma similar, algo que parecia húmido e viscoso. Os outros homens saíram em seguida, os seus capuzes ainda a cobrir os seus rostos. Montaram os seus cavalos e partiram em silêncio, como fantasmas a regressarem ao mundo dos mortos.
Em poucos minutos, a fazenda voltou ao silêncio normal da noite. Mas Padre Anselmo sabia que nada seria normal novamente. Ele havia testemunhado algo que desafiava a sua compreensão do mundo, algo que questionava tudo em que acreditava sobre a natureza humana e os limites do mal.
Na manhã seguinte, o padre procurou Zeferino novamente. Desta vez, não havia dúvidas ou hesitações. Ambos sabiam que haviam descoberto algo terrível, algo que precisava ser interrompido antes que mais inocentes perdessem as suas vidas. Mas como dois homens simples poderiam enfrentar uma conspiração que envolvia os homens mais poderosos da cidade?
A resposta veio quando Zeferino revelou a sua descoberta mais chocante. Durante as suas investigações secretas, havia encontrado uma forma de aceder ao porão dos Amaral. Havia visto, com os seus próprios olhos, o que acontecia naquelas profundezas e havia descoberto evidências que provariam a culpa da família de forma incontestável.
O padre e o capataz planearam a sua próxima ação com cuidado. Sabiam que teriam apenas uma chance. Se fossem descobertos, tornar-se-iam as próximas vítimas da Família Amaral. Mas algumas verdades são importantes demais para permanecerem enterradas, mesmo que custe a vida de quem as revela.

Padre Anselmo não conseguiu pregar no domingo seguinte. As suas mãos tremiam tanto que mal conseguia segurar o missal. As palavras sagradas pareciam cinzas na sua boca quando tentava falar sobre bondade e redenção, sabendo que a poucos quilómetros dali existia um mal que desafiava toda a sua fé. Os fiéis notaram a sua agitação. Dona Custódia, a beata mais fervorosa da paróquia, aproximou-se após a missa para perguntar se ele estava doente. O padre murmurou algo sobre cansaço e refugiou-se na sacristia, onde Zeferino o aguardava com olhos que refletiam o mesmo tormento.
“Precisamos de provas,”
sussurrou o capataz.
“Ninguém acreditará nas nossas palavras. Eles são poderosos demais, respeitados demais. Precisamos de algo que não possam negar. Precisamos do livro.”
Padre Anselmo sabia que Zeferino estava certo. Acusações sem evidências seriam facilmente descartadas, como delírios de homens perturbados. Pior ainda, poderiam alertar os Amaral sobre as suas suspeitas, colocando ambos em perigo mortal. A oportunidade surgiu três dias depois. A Família Amaral havia viajado para a capital numa das suas frequentes viagens de negócios. Zeferino sabia que ficariam fora por pelo menos dois dias. Era a chance que esperavam.
Na madrugada de quarta-feira, os dois homens encontraram-se nos fundos da propriedade. A lua nova tornava a noite particularmente escura, perfeita para as suas intenções. Zeferino conhecia cada centímetro da fazenda após vinte anos de trabalho. Guiou o padre através dos caminhos menos vigiados até chegarem à casa grande. A entrada para o porão ficava escondida atrás da despensa, disfarçada como uma simples porta de armário. Zeferino havia descoberto o segredo por acaso quando procurava ratos que roubavam os mantimentos. O que encontrou foi muito pior que roedores.
Enquanto desciam pelas escadas de pedra em espiral, o capataz apontou para uma discreta fresta na parede.
“Há uma passagem aqui,”
sussurrou.
“Uma saída antiga que dá para os estábulos, para emergências, caso fiquemos presos. É a única saída, caso a porta principal esteja bloqueada.”
As escadas de pedra desciam em espiral para as profundezas da terra. O ar ficava mais denso a cada degrau, carregado de odores que faziam o estômago revirar-se. Padre Anselmo segurava uma vela tremulante que criava sombras dançantes nas paredes húmidas.
“O porão,”
sussurrou Zeferino, o horror a regressar aos seus olhos.
“É lá que tudo acontece. É a fonte da fortuna deles.”
Quando chegaram ao fundo das escadas, Padre Anselmo teve de se apoiar na parede para não desmaiar. O que viu desafiava toda a sua compreensão da natureza humana. Ossos. Centenas deles. Ossadas humanas, empilhadas contra as paredes como lenha para o inverno. Alguns ainda tinham restos de carne aderidos, outros estavam polidos pelo tempo. Crânios humanos observavam-nos com órbitas vazias, como testemunhas silenciosas de atrocidades inimagináveis.
“Meu Deus,”
murmurou o padre, a sua voz a ecoar no espaço subterrâneo.
“Quantas pessoas? Quantas almas perdidas?”
Zeferino não respondeu. Não havia palavras para quantificar tamanha monstruosidade. Em vez disso, guiou o padre mais fundo no porão, onde outras descobertas aguardavam. Uma mesa comprida dominava o centro do ambiente. A sua superfície de madeira estava manchada de sangue seco, formando padrões que contavam histórias de sofrimento. Instrumentos estranhos estavam dispostos ao redor da mesa com a precisão de um ritual. Facas de formatos bizarros. Recipientes de metal, correntes e algemas. Era uma sala de tortura disfarçada de altar profano, mas havia algo mais, algo que fez o sangue do padre gelar completamente.
Um livro repousava sobre um pedestal de pedra, como se fosse uma relíquia sagrada, a fonte do poder maligno dos Amaral. As suas páginas amareladas pelo tempo estavam cobertas de símbolos que pareciam mover-se à luz da vela. Padre Anselmo aproximou-se com passos hesitantes, a sua curiosidade lutando contra o instinto de fugir e abandonar aquele lugar maldito. As páginas continham receitas, instruções detalhadas escritas numa caligrafia elegante que reconheceu como sendo de Emerenciana. Mas não eram receitas culinárias comuns; eram fórmulas para preparar carne humana de formas que maximizassem o seu sabor e propriedades nutritivas.
O padre vomitou violentamente, a bile a queimar-lhe a garganta. Quando conseguiu recompor-se, continuou lendo com horror crescente. O livro não continha apenas receitas canibais. Descrevia rituais antigos, formas de extrair a essência vital das vítimas antes de matá-las, métodos para prolongar o sofrimento e intensificar o sabor da carne.
“Eles não são apenas assassinos,”
sussurrou para Zeferino.
“São canibais. E pior, são sádicos que transformaram o assassinato em uma arte diabólica, um serviço ao mal.”
Mas havia mais páginas, páginas que revelavam a verdadeira extensão da conspiração. O livro falava de um pacto antigo, uma promessa feita a forças que existiam antes da criação do mundo. Riqueza eterna, poder absoluto, sucesso em todos os empreendimentos. Tudo isso em troca de sacrifícios humanos regulares. A Família Amaral não havia construído a sua fortuna através do trabalho honesto. Havia vendido as suas almas e as almas de incontáveis inocentes em troca de ouro e poder. E a data do próximo ritual estava marcada. Naquela mesma noite.
O padre e Zeferino entreolharam-se. Um terror gelado correndo nas suas veias. Os Amaral haviam regressado da capital mais cedo. Sim, mas era para cumprir a agenda do seu ritual. Passos ecoaram no andar superior. Vozes familiares misturavam-se em conversas casuais. A Família Amaral havia regressado e eles não estavam sozinhos. Outras vozes juntaram-se às de Galdino, vozes que Padre Anselmo reconheceu como pertencentes aos homens mais importantes da cidade. O juiz, o delegado, os comerciantes mais ricos. Todos estavam ali para participar do ritual noturno, a elite corrupta de Ouro Preto.
Enquanto os primeiros passos ressoavam nas escadas de pedra que levavam ao porão, Zeferino, com uma determinação fria e desesperada, agiu. Ele empurrou com força uma velha estante de madeira que estava estrategicamente posicionada perto da base da escada, bloqueando a principal passagem do porão. Em seguida, com o padre a ajudar, reforçou o bloqueio com pesados barris e caixas, selando a saída principal daquele recinto.
“Assim, eles não poderão sair por aqui,”
sussurrou, apontando para a passagem bloqueada.
“Mas nós temos a nossa própria saída, a passagem para os estábulos. É a nossa única esperança.”
Os dois homens esconderam-se atrás das pilhas de ossos, os seus corações a baterem como tambores de guerra. Através das frestas no teto do porão, podiam ouvir as preparações a acontecerem no andar superior. Móveis a serem arrastados, objetos a serem posicionados, conversas em tons baixos e urgentes. Então ouviram algo que fez os seus sangues gelarem: gritos abafados, súplicas desesperadas. Alguém estava a ser arrastado contra a sua vontade. A próxima vítima havia chegado.
Padre Anselmo fechou os olhos e rezou com uma intensidade que nunca havia experimentado antes. Rezou pela alma da pessoa que estava prestes a morrer. Rezou por força para testemunhar o que estava por vir. E rezou para que Deus lhe desse coragem para fazer o que fosse necessário para interromper aquela maldade, porque agora ele sabia que não poderia simplesmente fugir e denunciar os crimes. Quem acreditaria que metade da elite da cidade participava de rituais canibais? Quem ousaria investigar homens tão poderosos? A justiça humana havia falhado; restava apenas a justiça divina. E Padre Anselmo estava pronto para ser o seu instrumento.
Os gritos cessaram abruptamente, substituídos por um silêncio que era ainda mais aterrorizante. Padre Anselmo e Zeferino permaneceram imóveis entre as pilhas de ossos, mal ousando respirar. O cheiro de incenso começou a descer pelas escadas, misturado com algo muito mais sinistro que fazia os seus estômagos se revolverem.
Passos desceram as escadas de pedra. Primeiro Galdino, carregando tochas que iluminavam o seu rosto com uma luz demoníaca. Os seus olhos brilhavam com uma excitação doentia que transformava as suas feições familiares em algo monstruoso. Atrás dele, Emerenciana descia com a elegância de sempre, mas as suas mãos estavam manchadas de vermelho. Os filhos vieram em seguida. Policarpo e Baldina, que Padre Anselmo havia batizado anos atrás, agora participavam daquele ritual profano, com a naturalidade de quem havia sido criado para aceitar o inaceitável. Eram crianças corrompidas desde o berço, moldadas para perpetuar tradições que nenhuma alma inocente deveria conhecer.
Então chegaram os outros. Um por um, os homens mais respeitados de Ouro Preto desceram para aquele inferno subterrâneo. O juiz Baltazar Mendes, que havia condenado ladrões de galinhas à prisão, agora participava de crimes infinitamente piores. O delegado Firmino Pereira, responsável por manter a ordem na cidade, era cúmplice do caos mais absoluto. Doze homens ao todo, uma dúzia de almas perdidas unidas por laços mais fortes que o sangue.
“Bem-vindos ao nosso banquete especial!”
A voz de Galdino ecoou pelas paredes de pedra.
“Hoje celebramos mais um ano de prosperidade, mais um ano de bênçãos concedidas por nossos patronos ancestrais!”
Padre Anselmo observou em horror quando os participantes se posicionaram ao redor da mesa manchada de sangue. Cada um conhecia o seu lugar naquele ritual macabro. Haviam feito isso tantas vezes que se moviam com a precisão de uma dança ensaiada.
No centro da mesa, uma figura estava amarrada e amordaçada. Padre Anselmo reconheceu o rosto aterrorizado de Modesto Ribeiro, um comerciante de tecidos que havia chegado à cidade na semana anterior. Os seus olhos imploravam por uma misericórdia que ele sabia que não viria.
“A carne está fresca?”
perguntou uma voz que o padre reconheceu como sendo do comerciante Libânio Santos.
“Fresquíssima!”
riu Emerenciana, passando a mão pelos cabelos de Modesto, como se fosse um animal de estimação.
“Abatemos há poucas horas. O medo sempre melhora o sabor.”
Os participantes riram como se ela tivesse contado uma piada inocente. Era a normalização completa do horror. Para eles, aquilo não era diferente de preparar um porco para o jantar. Galdino abriu o livro maldito e começou a ler em voz alta. As palavras não eram em português, nem em latim. Era uma língua muito mais antiga que parecia fazer as próprias pedras do porão vibrarem em resposta. A temperatura do ambiente caiu vários graus e sombras começaram a mover-se independentemente da luz das tochas. Padre Anselmo sentiu uma presença maligna materializar-se no porão. Algo que não era humano, algo que havia sido invocado por aquelas palavras profanas.
Os participantes começaram a cantar em uníssono. As suas vozes misturavam-se numa harmonia diabólica que fazia eco nas profundezas da Terra. Era como se estivessem a chamar algo das trevas mais profundas, algo que respondia aos seus chamados com prazer sádico. Modesto tentou gritar através da mordaça, os seus olhos arregalados de terror absoluto. Podia sentir a presença maligna a aproximar-se. Podia ver as sombras a condensarem-se ao seu redor. Sabia que estava prestes a morrer, mas não conseguia imaginar os horrores que o aguardavam.
“Ao nosso pacto! Ao pacto que nos trouxe riqueza além dos sonhos mortais!”
gritou Galdino, erguendo um cálice que brilhava com um líquido escuro, viscoso e profano.
“Aos sacrifícios necessários!”
responderam os outros em coro, erguendo os seus próprios cálices. Eles beberam o conteúdo de uma só vez. O líquido escorreu por seus queixos como sangue, manchando as suas roupas elegantes, mas não pareciam importar-se. Estavam em êxtase, perdidos na euforia de comungar com forças que existiam antes da criação do mundo.
Padre Anselmo observou quando Galdino se aproximou de Modesto com uma faca cerimonial. A lâmina brilhava com símbolos gravados que pareciam pulsar com vida própria. Era uma arma forjada especificamente para aqueles rituais, temperada no sangue de incontáveis vítimas. O comerciante tentou debater-se, mas as cordas estavam muito apertadas. Podia apenas observar em terror quando a faca se aproximava da sua garganta. As suas últimas orações foram abafadas pela mordaça, perdidas no cântico diabólico que ecoava ao seu redor.
Mas antes que a lâmina tocasse a sua pele, algo inesperado aconteceu. Uma explosão de luz dourada e pura encheu o porão. Padre Anselmo havia erguido o seu crucifixo e uma energia divina emanava dele como um farol na escuridão mais densa. Os participantes do ritual recuaram, gritando de dor quando a luz sagrada tocou as suas peles corrompidas.
“Demónios!”
gritou o padre, a sua voz a ecoar com autoridade celestial, a sua fé a ser a sua única arma.
“Em nome de Jesus Cristo, eu os expulso desta terra!”
O confronto entre o bem e o mal havia começado, e Padre Anselmo sabia que apenas um lado sairia vivo daquele porão. Zeferino levantou-se ao lado do padre, empunhando uma tocha como arma, a fúria justa a dar-lhe uma coragem sobre-humana. Juntos, os dois homens enfrentaram uma dúzia de inimigos corrompidos pela maldade. A batalha pelo destino de Ouro Preto estava prestes a começar.
A luz dourada do crucifixo vacilou por um momento, como se as trevas do porão lutassem para sufocá-la. Padre Anselmo sentiu as suas forças a esvaírem-se rapidamente. Não era apenas uma batalha física que travava, mas um confronto espiritual contra forças que desafiavam a sua compreensão da realidade.
Galdino foi o primeiro a recuperar-se do choque inicial. Os seus olhos, agora completamente negros, fixaram-se no padre com um ódio que parecia queimar o próprio ar. Quando falou, a sua voz ecoou com harmónicos sobrenaturais, como se múltiplas entidades falassem através dele.
“Você não deveria estar aqui, padre. A sua fé patética não tem poder nestas profundezas. Aqui, só o pacto tem poder.”
Os outros participantes começaram a mover-se em círculo, cercando os dois intrusos como predadores, preparando-se para o ataque. As suas faces haviam-se transformado em máscaras de malevolência pura. O ritual havia despertado algo dentro deles, algo que não era inteiramente humano.
Emerenciana riu, um som que fez os ossos nas paredes vibrarem em resposta. As suas mãos delicadas, que serviam chá em porcelana fina, agora terminavam em garras que brilhavam à luz das tochas.
“Vocês serão os nossos próximos convidados de honra,”
sussurrou ela.
“Carne consagrada tem um sabor muito especial.”
Zeferino brandiu a sua tocha como uma espada flamejante, mantendo os atacantes à distância. Os seus vinte anos a trabalhar na fazenda haviam-lhe dado músculos de ferro, mas sabia que a força física não seria suficiente contra o que enfrentavam. Padre Anselmo tentou libertar Modesto das cordas, mas o comerciante estava inconsciente, vencido pelo terror absoluto. As suas mãos tremiam tanto que mal conseguia desfazer os nós. O tempo estava a esgotar-se rapidamente.
O juiz Baltazar avançou primeiro, movendo-se com uma agilidade impossível para um homem da sua idade. Zeferino conseguiu atingi-lo com a tocha, mas o fogo pareceu não causar dano algum. Em vez disso, o juiz riu e agarrou o capataz pelo pescoço com força sobre-humana.
“Vinte anos a servir a nossa família,”
rosnou Baltazar, o hálito podre no rosto de Zeferino.
“Vinte anos a comer os nossos restos. Você já faz parte de nós, Zeferino. Por que resistir? Junte-se a nós, e terá a riqueza que sempre sonhou.”
O capataz sentiu as suas forças a esvaírem-se. Havia algo na voz do juiz que penetrava na sua mente, sussurrando promessas de poder e riqueza. Por um momento, quase cedeu à tentação, quase se juntou aos monstros que havia servido por tanto tempo, mas então lembrou-se de Inocêncio, do jovem tropeiro cheio de vida, que havia sido assassinado e devorado como um animal. Lembrou-se de todos os outros viajantes inocentes que haviam confiado na hospitalidade dos Amaral.
“Nunca!”
gritou, cravando os dedos nos olhos do juiz.
Baltazar recuou, uivando de dor e fúria. Sangue negro escorreu pelo seu rosto, mas os seus ferimentos começaram a cicatrizar quase imediatamente. Fossem o que fossem o que o possuía, não era facilmente destruído.
Padre Anselmo finalmente conseguiu libertar Modesto, mas o comerciante estava em estado de choque profundo. Os seus olhos fixavam-se no vazio, a sua mente quebrada pelo horror que havia testemunhado. Mesmo se sobrevivessem àquela noite, ele nunca mais seria o mesmo.
Os outros participantes começaram a entoar novamente o cântico diabólico. As suas vozes misturavam-se numa harmonia que fazia as pedras do porão sangrarem. A presença maligna que haviam invocado tornava-se mais forte a cada palavra, alimentando-se do caos e do terror.
Galdino aproximou-se lentamente, saboreando cada momento. Havia esperado por esta oportunidade durante anos. O padre sempre fora um espinho no seu lado, questionando subtilmente a sua riqueza súbita, observando-o com olhos desconfiados durante as missas.
“A sua igreja será a nossa próxima conquista,”
sussurrou Galdino.
“Transformaremos o seu altar sagrado na nossa mesa de banquete. Os seus fiéis se tornarão o nosso rebanho de ovelhas para o abate.”
Padre Anselmo sentiu uma fúria santa queimar no seu peito. Não permitiria que aqueles demónios profanassem a casa de Deus. Não permitiria que mais inocentes sofressem nas mãos daqueles monstros. Ergueu o crucifixo novamente, desta vez, canalizando toda a sua fé, toda a sua devoção, todo o seu amor pela humanidade. A luz dourada explodiu com intensidade cegante, forçando os atacantes a recuarem.
“Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo!”
gritou com uma voz que ecoou como um trovão.
“Eu os condeno às trevas eternas!”
Mas a sua vitória foi momentânea. A luz começou a vacilar novamente e ele sentiu as suas forças a esvaírem-se. Eram apenas dois homens contra uma dúzia de inimigos possuídos por forças sobrenaturais. A matemática era simples e desesperadora.
Foi então que Zeferino tomou uma decisão que mudaria tudo. Vendo que não poderiam vencer pela força, o capataz correu para a mesa ritual e agarrou uma das tochas maiores. Antes que alguém pudesse impedi-lo, atirou-a contra as pilhas de ossos secos que cobriam as paredes.
O fogo espalhou-se com uma velocidade sobrenatural, como se as próprias chamas fossem abençoadas. Os ossos das vítimas, que haviam sido profanados por tanto tempo, finalmente encontraram a sua vingança. As chamas subiram pelas paredes de madeira, alcançando o teto e começando a espalhar-se para o andar superior.
Os participantes do ritual gritaram em pânico. Fosse qual fosse a força que os possuía, tinha medo do fogo purificador. Começaram a correr em direção à passagem principal do porão, mas encontraram a estante e os barris bloqueando o caminho. Presos na sua própria armadilha, o desespero tomou conta deles.
As chamas rugiam agora como um dragão faminto, devorando décadas de maldade acumulada. O calor tornou-se insuportável, mas Padre Anselmo e Zeferino permaneceram firmes, protegendo Modesto Inconsciente, enquanto observavam a justiça divina manifestar-se.
Galdino fez uma última tentativa desesperada de escapar, mas as chamas alcançaram-no antes que pudesse sequer alcançar a passagem bloqueada. Os seus gritos ecoaram pelo porão, enquanto o fogo consumia não apenas o seu corpo, mas a própria essência maligna que o possuía. Um por um, os participantes do ritual sucumbiram às chamas purificadoras. As suas riquezas, o seu poder, as suas conexões importantes não significavam nada diante da justiça absoluta. A Família Amaral e os seus cúmplices haviam finalmente recebido o pagamento por seus crimes.
As chamas rugiam como feras selvagens libertadas das suas jaulas, devorando décadas de segredos enterrados nas profundezas da Fazenda Amaral. Padre Anselmo carregou Modesto Inconsciente enquanto Zeferino abria caminho através da fumaça densa que começava a tomar conta do porão. O calor era insuportável, mas ambos sabiam que precisavam escapar antes que toda a estrutura desabasse.
Conseguiram alcançar a passagem secundária, aquela que Zeferino havia apontado. Era uma entrada estreita que levava diretamente aos estábulos, longe das chamas que consumiam a casa principal. Quando finalmente emergiram para o ar noturno, os seus pulmões queimavam e as suas roupas estavam chamuscadas, mas estavam vivos.
Atrás deles, a Fazenda Amaral transformava-se numa pira funerária gigantesca. As chamas subiam em direção ao céu, como dedos acusadores, iluminando toda a região com uma luz vermelha e sinistra. O fogo parecia ter vida própria, espalhando-se com uma velocidade que desafiava as leis naturais.
Modesto recuperou a consciência gradualmente, os seus olhos ainda vidrados pelo trauma que havia vivenciado. Quando finalmente conseguiu falar, as suas palavras saíam entrecortadas, fragmentadas pelo horror que a sua mente tentava processar. Padre Anselmo o consolou com palavras suaves, mas sabia que algumas feridas nunca cicatrizam completamente.
Na manhã seguinte, quando os primeiros moradores de Ouro Preto chegaram para investigar a fumaça que havia sido vista durante toda a noite, encontraram apenas cinzas e destroços. Doze corpos carbonizados foram descobertos entre os escombros, irreconhecíveis, mas contáveis. Doze homens que haviam sido os pilares da sociedade local agora eram apenas memórias sombrias e carbonizadas.
Padre Anselmo nunca contou a verdade completa sobre os eventos daquela noite. Quando questionado pelas autoridades que vieram da capital para investigar, ele falou sobre um incêndio trágico que havia consumido a propriedade. Mencionou que havia tentado salvar as vítimas, mas chegara tarde demais. A sua reputação, como homem santo, emprestou credibilidade à sua versão dos factos.
Zeferino simplesmente desapareceu. Na manhã seguinte ao incêndio, quando Padre Anselmo foi procurá-lo para coordenar as suas versões da história, encontrou apenas uma casa vazia. Não havia sinais de luta ou violência. Era como se o capataz tivesse simplesmente decidido que não podia mais viver com as memórias daquela noite terrível. Alguns moradores juravam tê-lo visto a caminhar pelas estradas que levavam para fora da cidade, carregando apenas uma pequena trouxa. Outros acreditavam que ele havia sido consumido pelas mesmas chamas que destruíram os seus patrões. A verdade permaneceu um mistério que nunca foi resolvido.
Modesto Ribeiro recuperou-se fisicamente dos seus ferimentos, mas a sua mente nunca se curou completamente. Mudou-se para uma cidade distante, onde ninguém conhecia a sua história. Ocasionalmente, enviava cartas ao padre, agradecendo por ter salvo a sua vida, mas nunca regressou a Ouro Preto. Algumas experiências marcam uma alma para sempre.

As investigações oficiais sobre o incêndio foram superficiais. Com tantos homens importantes mortos simultaneamente, as autoridades preferiram aceitar a explicação mais simples. Acidentes aconteciam, especialmente em propriedades rurais, onde velas e lamparinas representavam riscos constantes. O caso foi arquivado como uma tragédia, nada mais.
Mas Padre Anselmo sabia que a verdade era muito mais complexa. Durante os meses que se seguiram, ele observou mudanças subtis na cidade. Negócios que dependiam dos Amaral e dos seus cúmplices começaram a falir. Contratos misteriosos foram cancelados. Era como se uma rede invisível de corrupção tivesse sido cortada, permitindo que Ouro Preto respirasse livremente pela primeira vez em décadas. A propriedade dos Amaral permaneceu em ruínas. Ninguém se interessou em comprar o terreno, mesmo quando foi oferecido por preços irrisórios. Havia algo na Terra que afastava os compradores potenciais, uma sensação de mal-estar que não conseguiam explicar, mas que sentiam instintivamente.
Com o tempo, a vegetação começou a reclamar o local. Vinhas selvagens cobriram os destroços da Casa Grande. Árvores cresceram através das fundações rachadas. A natureza estava lentamente a apagar as cicatrizes deixadas pela maldade humana. Mas às vezes, especialmente durante as noites sem lua, moradores da região juravam ouvir sons estranhos vindos das ruínas: risadas distantes que ecoavam entre os escombros, sussurros que o vento carregava através das árvores.
Padre Anselmo viveu por mais 20 anos após aquela noite terrível. Nunca se casou, nunca deixou Ouro Preto, nunca falou publicamente sobre o que havia testemunhado. Mas aqueles que o conheciam bem notaram mudanças na sua personalidade. Tornara-se mais sombrio, mais cauteloso. Os seus sermões ganharam uma intensidade que não possuíam antes, como se ele tivesse visto o mal face a face e compreendido a sua verdadeira natureza. Quando finalmente morreu em 1886, as suas últimas palavras foram uma oração de agradecimento. Agradecimento por ter tido força para fazer o que era necessário. Agradecimento por ter impedido que mais inocentes sofressem. E agradecimento por finalmente poder descansar, sabendo que havia cumprido a sua missão na Terra.
A história da Família Amaral não morreu com ele. Passou de geração em geração, transformando-se em lenda, depois em mito. Um aviso sobre os perigos da ganância descontrolada e da corrupção que pode esconder-se atrás das fachadas mais respeitáveis.
Hoje, mais de 150 anos depois, as ruínas da Fazenda Amaral ainda existem, cobertas pela vegetação, quase invisíveis para olhos desatentos. E nas noites mais escuras, quando o vento sopra através das montanhas de Minas Gerais, ainda é possível ouvir ecos do passado, sussurros que falam de pactos diabólicos, de jantares macabros, de almas perdidas que ainda procuram redenção. A Família Amaral pode ter sido destruída, mas a sua história permanece como um lembrete eterno de que o mal pode esconder-se nos lugares mais inesperados e de que, às vezes, a justiça vem através do fogo purificador que consome tudo em seu caminho.