O Milionário, a Filha Perdida e a Promessa no Parque

Baltazar Moré era um homem destroçado. O fato impecável e o olhar firme eram apenas disfarces para um coração em ruínas. Oito anos antes, a sua filha, Cynthia, de apenas cinco anos, desapareceu durante um passeio no parque. Num segundo de distração da ama, a menina evaporou-se. A mulher jurou inocência, mas foi presa, acusada de sequestro.

Desde então, a vida de Baltazar perdeu a cor. As manhãs tornaram-se frias, os dias automáticos. Nenhum negócio, nenhum sucesso, nada preencheu o vazio deixado por aquela criança. Diariamente, ele carregava metade de uma fotografia — um fragmento de um mundo que já não existia. Naquele pedaço de papel rasgado, Cynthia surgia sorrindo nos braços do pai, o rosto radiante. Era a recordação mais pura de um tempo feliz.

“Onde estás, meu anjo?”, ele sussurrava, antes de dormir, esperando que a menina lhe devolvesse um olhar. O outro pedaço, com o seu braço estendido para ela, parecia perdido para sempre.

Naquela tarde, Baltazar saía de mais uma reunião vazia. O lucro não tinha sabor, e as vozes dos sócios soavam distantes. O vidro espelhado dos edifícios refletia um homem que ele já não reconhecia.

“Oito anos,” pensou, ajeitando o casaco. “Oito anos e ainda estou preso ali.”

Caminhava pela praça em silêncio, o som dos seus passos a ecoar no chão húmido. Foi então que a viu. Uma menina parada em frente à fonte, cabelo desgrenhado, rosto sujo e os olhos… os olhos eram como um murro no estômago, um espelho que devolvia algo que ele tentara enterrar. Ela observava-o em silêncio, como se estivesse à espera dele.

Quando ele passou por ela, ouviu uma voz fraca e trémula:

“Papá.”

Baltazar parou. O seu corpo congelou. Virou-se lentamente, o coração a martelar-lhe no peito. Não, não pode ser.

A menina aproximou-se com passos curtos, segurando algo nas mãos.

“Papá, sou eu,” disse, estendendo um pedaço de papel dobrado.

Ele pegou-o, hesitante, e o ar fugiu-lhe dos pulmões. Era a outra metade da fotografia, aquela que faltava. As duas peças encaixavam na perfeição. O tempo gritou dentro dele.

“Onde? Onde arranjaste isto?”, perguntou, a voz embargada.

A menina olhou-o, contendo o choro.

“Fui eu que a guardei, papá. Disseste que voltarias por mim.”

Ele avançou, quase sem respirar.

“O que disseste?”

“Eu sou Cynthia,” respondeu ela, com a voz firme, como se cada sílaba lhe custasse coragem.

Baltazar sentiu o chão a desaparecer. O nome ressoou na sua mente como um trovão. Aquilo era impossível e, no entanto, tudo nela gritava a verdade. Os traços, o olhar, até a forma como franzia o nariz. Era como ver um fantasma em carne e osso.

“Isto é algum tipo de brincadeira cruel?”, perguntou, entre o desespero e a raiva.

A menina recuou, assustada.

“Papá, sou eu. Juro.”

“Não, não pode ser ela. Não, depois de tudo.”

“Eu esperei todos os dias. Disseste que voltarias, mas nunca o fizeste.”

Baltazar sentiu o peso daquelas palavras a esmagar-lhe os ombros. A fotografia tremia-lhe nos dedos.

Ele ajoelhou-se, os olhos fixos nos dela.

“Se tu és a minha filha, diz-me: como se chama a tua boneca?”

Ela respirou fundo, tentando conter o choro.

“Mimi.”

O coração de Baltazar parou. Mimi, a boneca que Cynthia levava para todo o lado. Perdida naquele dia. Um silêncio denso formou-se entre os dois. Baltazar soube que, fosse real ou não, aquela menina acabara de abrir a ferida mais profunda da sua alma.

Baltazar ainda estava de joelhos quando a menina estendeu a mão para o ajudar a levantar-se. O gesto desarmou-o.

“Vem comigo,” disse, quase num sussurro.

“Eu levar-te-ei para casa.”

Na mansão, o ar parecia pesado. A menina olhava tudo com espanto.

“É aqui que tu vives?”, perguntou, com uma inocência que doía.

Ele apenas anuiu. Mandou que a empregada lhe preparasse algo para comer e observou cada movimento dela. Tudo lhe lembrava a filha, mas o medo de estar a ser enganado crescia como uma sombra.

Mais tarde, quando ela adormeceu no sofá, ele subiu ao escritório e ligou para o laboratório.

“Preciso de um teste de ADN, urgente.”

Nos dias seguintes, Baltazar observou-a. A menina era inteligente, cuidadosa, mas com marcas invisíveis no olhar. Evitava perguntas diretas sobre o passado e encolhia-se ao ouvir vozes masculinas desconhecidas. Ela repetia frases que só ele e Cynthia conheciam: “Fecha os olhos e sonha com o mar.” Cada recordação era uma facada e um consolo.

Mas algo o inquietava. A menina hesitava em frente ao espelho, como se o reflexo fosse de outra pessoa.

“Não gosto de me ver aí,” murmurava ela.

Uma tarde, ele encontrou-a a desenhar no chão do jardim. Uma casinha simples, duas pessoas de mãos dadas, um sol sorridente.

“Quem são?”, perguntou.

“Tu e eu.”

“E onde está a tua mãe?”

Ela hesitou.

“Eu não me lembro do rosto dela.”

Baltazar sentiu um arrepio. Sentou-se ao lado dela.

“Às vezes, lembrar dói mais do que esquecer.”

A menina olhou-o, e um laço silencioso, impossível de explicar, uniu-os. Mas a dúvida persistia. A verdadeira Cynthia amava o aroma da colónia de lavanda; a menina recuava, dizendo que o cheiro a enjoava. Estaria eu a amar uma ilusão?

O amanhecer chegou pesado. O toque da campainha cortou o silêncio da mansão. Baltazar desceu as escadas com o coração acelerado. Um mensageiro entregou-lhe um envelope castanho. O resultado do teste de ADN.

Ele subiu ao escritório, fechou-se e olhou para o envelope. Aquele pedaço de papel podia destruí-lo ou salvá-lo.

Com as mãos a tremer, rompeu o selo. Os seus olhos correram as linhas até encontrarem a palavra que o aniquilou: Incompatível.

O chão abriu-se sob os seus pés. A esperança desfez-se em estilhaços. A raiva chegou primeiro, crua e impiedosa.

“Como pude ser tão idiota?!,” murmurou, atirando a cadeira.

Correu até ao quarto da menina. A luz da manhã banhava o seu rosto. A fúria tomou conta dele.

“Acorda!” gritou, a voz a ressoar pelo quarto. “Não me chames assim! Quem és tu, na verdade?”

A menina acordou, assustada.

“Eu… eu sou a tua filha,” tentou dizer, a voz falhando.

Baltazar atirou o envelope para a cama.

“A prova diz o contrário! As palavras ecoaram como um trovão. “Quem és tu? Porque vieste a mim com esta mentira?”

“Eu só queria cumprir o que prometi,” disse ela, entre lágrimas.

“Prometeste o quê?”

“Eu conheci a Cynthia,” disse ela, em voz baixa.

Baltazar interrompeu-a.

“O que disseste?”

“Eu conheci a tua filha. Levaram-nos juntas naquele dia no parque.”

O mundo parou.

“Estás a dizer que a minha filha foi sequestrada contigo?”

“Eu estava lá,” continuou ela, a voz trémula, mas firme. “Vi quando aquele homem se aproximou da ama. Foi uma distração. Dois homens agarraram-nos e meteram-nos numa carrinha. Fomos para um armazém horrível. A Cynthia chorava todas as noites a chamar por ti. Éramos como irmãs.”

“E a ama?”

“Ela não fez nada. Foi uma armadilha. A polícia chegou antes e culparam-na.”

Baltazar cambaleou, o peso de oito anos de culpa a esmagá-lo. Meu Deus, o que eu fiz?

“E porque é que não me disseste isto antes?”

“Porque tive medo! Medo de que me encontrassem outra vez. Eles disseram que se eu falasse, voltariam para me levar.”

“E onde é que ela está agora?”

“Lá,” respondeu a menina, a chorar. “No mesmo lugar onde nos prenderam. Eu consegui fugir, mas ela ficou. Deu-me esta foto e disse: ‘Se um dia conseguires sair, encontra o meu pai’.”

Baltazar cobriu o rosto com as mãos.

“Meu Deus, ela está viva.”

Olhou para a menina à sua frente, frágil, mas corajosa.

“Como te chamas?”

Gabriela,” respondeu ela, baixando o olhar. “Chamo-me Gabriela.”

“Tu és a única que me pode levar até ela,” disse Baltazar, a voz rouca.

“Eu ajudo-te,” respondeu Gabriela, determinada.

Baltazar telefonou para a polícia, mas apenas recebeu incredulidade. Já se enganaram uma vez.

“Então, vamos sozinhos.”

Ele abriu um cofre escondido, tirou uma pequena pistola e guardou-a debaixo do casaco. Pôs um localizador no carro.

“Se alguma coisa correr mal, quero ter a certeza de que alguém nos encontra.”

Os dois foram para o quarto de Cynthia.

“Ela falava deste quarto,” murmurou Gabriela, com tristeza. “Dizia que sonhava em voltar.”

O caminho era interminável.

“Tens medo?”, perguntou ele.

“Sim, mas tenho mais medo de não a encontrar do que de voltar lá.”

A silhueta do armazém apareceu ao longe, grande e sombria. Gabriela apertou-lhe a mão.

“Lá dentro há um corredor comprido e uma porta de ferro no fundo.”

Baltazar respirou fundo, o medo e o amor a misturarem-se. Enviou uma mensagem a um amigo polícia: Se não ligar dentro de uma hora, encontrem-me neste lugar.

Caminharam nas sombras. Baltazar forçou o portão enferrujado. O ranger metálico cortou o silêncio.

“Está aqui,” sussurrou Gabriela. “Ela está lá dentro.”

Com a lanterna numa mão e a arma na outra, Baltazar entrou, pronto para enfrentar o inferno.

O barulho do portão ecoou. Eles esconderam-se enquanto passos pesados se aproximavam. Ouviram-nos. As botas ressoaram perto, mas os homens afastaram-se.

Baltazar forçou a porta de ferro com uma barra de metal. Ao terceiro golpe, o ferrolho cedeu. Ele entrou.

A penumbra revelou um quarto pequeno e húmido, com colchões rasgados e correntes nas paredes. No fundo, uma figura magra, de joelhos, com os pulsos atados.

“Cynthia,” murmurou Baltazar, a lanterna a tremer-lhe nas mãos.

A menina levantou o rosto, assustada pela luz. Os seus olhos encontraram-se. Era ela. Frágil, mas os mesmos olhos de há oito anos.

“Papá,” sussurrou, fraca.

Baltazar deixou cair a lanterna e a arma. Correu e envolveu-a nos seus braços, a chorar como uma criança.

“Sou eu, minha filha. Nunca deixei de te procurar, meu amor. Nunca.”

Mas um som seco atrás deles interrompeu o momento: o clique de uma arma a ser carregada. Um sequestrador voltara.

“Ninguém se mexe,” gritou o homem.

Cynthia, com uma força repentina, pegou numa corrente caída e atirou-a ao homem. O golpe fê-lo cambalear. Baltazar saltou sobre ele, desarmando-o.

“Rápido, temos de sair daqui!”, gritou Gabriela, que observava na porta.

Cynthia, a coxear, insistiu em correr. O ruído de outros homens a aproximarem-se vinha de fora.

“Corram!” gritou Baltazar, empurrando as meninas.

Disparos rasgaram o ar. Quando alcançaram o portão, as sirenes começaram a soar ao longe. O localizador funcionara. Baltazar empurrou as meninas para fora e virou-se, apontando a arma para o armazém.

Cynthia abraçou-o com força, enterrando o rosto no seu peito. Gabriela juntou-se a eles, a chorar descontroladamente. Baltazar envolveu-as nos seus braços, exausto, mas com o coração vivo e, finalmente, em paz.

Na mansão, Baltazar abriu a porta. O ar, antes imóvel, parecia mais leve. Cynthia entrou devagar, tocando as paredes, os móveis, num reencontro silencioso com o lar. Gabriela acompanhava-a, com espanto e humildade.

“É linda,” murmurou Gabriela.

“Agora também é o teu lar,” disse Baltazar, com a voz embargada.

As três pessoas foram para o quarto de Cynthia. A menina parou na porta, hesitante. Gabriela pegou-lhe na mão e levou-a para dentro. Baltazar ajoelhou-se em frente a elas, abrindo os braços. As duas correram para ele, e o abraço continha todas as palavras que não cabiam no mundo.

“Trouxeste a minha filha de volta. Salvaste a minha vida, Gabriela.”

A menina olhou para baixo.

“Se quiseres, podes ficar connosco até encontrarmos a tua família.”

Gabriela revelou, com a voz baixa e trémula, que os seus pais haviam morrido.

Baltazar pegou-lhe nas mãos.

“Então, posso ser o teu pai também?”

Gabriela levantou o olhar, surpreendida.

“Sim,” respondeu, com um sorriso tímido. “Sempre quis ter alguém para chamar de papá.”

Cynthia envolveu-os nos braços.

“Tu sempre foste a minha irmã.”

As três vozes misturaram-se num choro que curava. Por fim, Gabriela olhou para Baltazar e perguntou:

“E agora, o que vai acontecer àquela mulher? A ama. Disseste que ela foi presa por algo que não fez.”

O nome, enterrado sob a culpa, regressou como uma ferida antiga.

“Ela também tem de ser salva.”

Baltazar soube que o seu perdão ainda não estava completo. A última dívida aguardava.

Baltazar reuniu as provas da inocência da ama e dirigiu-se à prisão. Apresentou os documentos ao guarda e entrou. O som das portas de ferro a fechar-se atrás dele ressoava na sua consciência.

Quando a ama, vestida com o uniforme bege, apareceu, ele não conseguiu falar.

“Perdoa-me,” murmurou, levantando-se. “Eu destruí a tua vida. Fiz-te pagar por algo que não fizeste.”

“Senta-te, por favor,” disse a ama, com suavidade. “Não guardo rancor. A dor ensinou-me a rezar por ti.”

“Cynthia está viva,” revelou Baltazar, as lágrimas a escorrer-lhe pelo rosto.

A mulher cobriu o rosto, soluçando.

“Eu sabia! Sempre soube que estava viva!”

Baltazar mostrou-lhe os documentos.

“Isto é a prova da tua inocência. Em poucos dias, serás livre.”

“Fizeste isto por mim?”

“Fiz por nós,” respondeu ele, com firmeza. “Porque só a verdade pode curar o que o tempo feriu.”

Ao sair, ela sorriu-lhe, secando o rosto.

“Cuida bem das meninas, Baltazar. E cuida do teu coração.”

A noite caía quando Baltazar estacionou o carro em frente à mansão. Cynthia correu para abraçá-lo, seguida por Gabriela. Ele envolveu-as nos seus braços, sorrindo.

“Corrigi um erro que cometi há muito tempo. A ama será libertada. E ela perdoou-me.”

“Então, agora o senhor também é livre, não é?”, perguntou Cynthia.

“Sim, filha, livre de tudo o que me prendeu durante tantos anos.”

As duas abraçaram-no com força. Ele olhou para elas, os olhos cheios de lágrimas.

“Vocês são o que restou da minha dor e o começo de tudo o que ainda posso ser.”

Naquele instante, Baltazar Moré compreendeu. A sua família estava completa.

(Palavras: 1753)

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