
O sol daquela manhã dourava as copas das árvores da praça central, refletindo-se nos bancos de ferro e nas fontes antigas. Gonzalo Delgado, o homem por trás do império farmacêutico “Fundação Luz Nova”, caminhava ao lado do filho, Enrique. O menino tinha dez anos e estava cego há três longos anos, sem ver o rosto do pai, o céu, as flores ou o seu próprio reflexo.
Apesar da fortuna colossal que rodeava Gonzalo, a cena era simples e doía: um pai empurrando lentamente o filho até um banco, num silêncio mais pesado do que qualquer palavra.
“Queres sentar-te um pouco?” perguntou Gonzalo com a voz rouca.
“Sim, papá. O sol está quentinho hoje. Acho que me estás a sorrir,” respondeu o menino com um sorriso tímido.
Gonzalo observou o rosto de Enrique e engoliu em seco. Havia algo sereno e, ao mesmo tempo, pungente naquela inocência.
“Ainda bem que consegues sentir o sol, filho.”
Enrique virou o rosto para a voz do pai.
“Desculpa, mas queria tanto vê-lo. Queria saber se o mundo ainda tem as mesmas cores.”
O pai desviou o olhar, incapaz de responder.
“Vou buscar dois hot dogs, sim? Fica aqui. Volto já.”
“Está bem. Prometo não fugir,” gracejou o menino, tentando disfarçar o vazio que carregava.
O pai sorriu levemente e afastou-se, sem imaginar que aquele breve intervalo mudaria tudo.
Então, uma voz suave, mas curiosa, ressoou ao lado de Enrique.
“Tu és cego de verdade ou só não consegues ver com os olhos?”
O menino virou o rosto, surpreendido.
“Acho que cego de verdade,” respondeu, rindo. “Mas nunca pensei que existisse outra forma de ver.”
A menina aproximou-se. Magra, com roupas gastas e o cabelo preso em duas tranças malfeitas.
“Chamo-me Agustina. E tu, Enrique.”
“Belo nome. Parece nome de príncipe.”
“E o teu de aventureira que escapou de um conto.”
Ela soltou uma risada, espontânea e leve, e o som preencheu o ar entre eles. Agustina sentou-se no banco, balançando as pernas.
“O meu pai estuda os olhos. Gosta de entender como eles falam com a luz. Às vezes, eu ajudo-o. Ele cria coisas. Lentes, luzes, experiências.”
Agustina tirou do bolso uma pequena lupa de vidro riscado, com o cabo enrolado em fita-cola.
“Isto é uma das nossas invenções. A luz passa de forma diferente, sabes? Às vezes, acorda o que estava adormecido.”
Enrique ficou intrigado. Acordar o que estava adormecido.
“Tu falas de uma forma estranha, mas bonita. Posso tentar algo?”, perguntou ela, quase num sussurro.
O menino hesitou, mas havia tanta pureza na sua voz que era impossível ter medo.
“Está bem, mas promete que não vai doer.”
“Prometo.”
Agustina levantou-se.
“Olha para cima, devagar,” pediu ela. “Não sei para onde olhar,” gracejou o menino. “Para o calor. Segue sempre o calor.”
Ele obedeceu. Agustina ergueu a lupa, ajustando o ângulo até que um raio de luz azul-clara tocou suavemente a pálpebra dele. Enrique sentiu o calor suave e, depois, uma vibração diferente, quase um formigueiro.
“Está a brilhar muito?”, perguntou ela.
“Não sei, mas parece que algo se está a mexer.”
O menino apertou os olhos, sentiu um pequeno arrepio e, de repente, piscou.
“Agustina, espera.”
Ele afastou-se, o rosto transformado.
“Eu vi algo. Como uma mancha clara. Como quando fechamos os olhos e vemos o sol por dentro.”
Agustina arregalou os olhos.
“Estás a ver luz?”
“Acho que sim. É estranho, mas é real. Tudo brilha um pouco,” disse, entre o espanto e as lágrimas.
“É só o começo,” respondeu Agustina, emocionada. “A luz começa sempre pequena. Não contes a ninguém ainda. Às vezes, os milagres precisam de crescer escondidos.”
O som apressado dos passos de Gonzalo ressoou no empedrado da praça. Ele trazia dois hot dogs a fumegar. Mas, ao aproximar-se, o coração apertou-se-lhe. O menino tinha a cabeça erguida, o rosto virado para o sol e, à sua frente, uma menina desconhecida segurava uma lupa brilhante, perigosamente perto da sua cara.
“Quê? O que está a acontecer aqui?!” gritou, a sua voz a cortar o ar.
Gonzalo largou os hot dogs. Agarrou com força o braço da menina, afastando-a de Enrique como se a protegesse de um ataque.
“Afasta-te do meu filho! O que pensas que estás a fazer?!”
Agustina engoliu o choro.
“Senhor, eu só queria ajudar. O meu pai estuda a luz…”
“Ajudar o quê? Deixar o meu filho completamente cego?!” A voz de Gonzalo ressoou, alta demais. “Com uma lupa de feira? Pensas que vou permitir que uma miúda da rua brinque de médica com o meu filho?”
Enrique tentou levantar-se, tateando o ar.
“Papá, por favor, não fales assim com ela. Juro-te que ela não fez nada de mal. Eu vi, vi claridade, papá.”
“Basta, Enrique! Não sabes o que dizes.”
“Mas é verdade,” insistiu o menino, a voz embargada. “Havia luz, papá. Eu vi luz.”
O silêncio era asfixiante. Gonzalo respirava com dificuldade, dividido entre o medo e o orgulho ferido.
“Basta, já disse! Não te voltes a aproximar do meu filho. Nunca mais!”
Agustina recuou, apertando a lupa, a vergonha a queimar-lhe o rosto. Enrique estendeu a mão, desesperado.
“Agustina, não vás embora, por favor!”
Mas o olhar frio do pai fê-la correr. Gonzalo agarrou no braço do filho.
“Porque fizeste isso, papá? Ela só queria ajudar.”
“Não vou permitir que ninguém te toque com experiências estúpidas. Tu és meu filho, e eu sei o que é melhor para ti.”
Enrique virou o rosto, o queixo a tremer.
“Às vezes, parece que só queres proteger-me do que me podia curar.”
Gonzalo não respondeu. Conduziu o filho embora, sem olhar para trás. A lupa esmagada ficou no chão, refletindo o brilho azul que o homem se recusara a ver.
As horas seguintes foram silenciosas. No carro, Enrique tinha os olhos fechados, revivendo o brilho azul. Gonzalo, ao volante, evitava olhar para o filho.
“Papá, porque é que ficaste tão zangado? Ela não parecia uma má miúda.”
“Porque o mundo está cheio de gente que promete curas e só traz mais dor, filho. E não vou deixar que ninguém brinque contigo.”
Mas na manhã seguinte, o brilho parecia mais forte. Enrique levantou-se e viu contornos. Uma linha de luz atravessava as cortinas. Ele viu, pela primeira vez em três anos.
“Papá!” gritou. “Estou a ver qualquer coisa! O quarto, a luz, tu!”
Gonzalo correu, alarmado.
“Enrique, isso não pode ser.”
“Pode sim, papá. Vejo a tua gravata vermelha, juro.”
O pai olhou para a gravata que usava. Sentiu as pernas tremerem. Deus meu. O espanto transformou-se em medo. O que é que está a acontecer?
Os médicos falavam em “recuperação espontânea”, mas Gonzalo via a lupa em todo o lado. Enrique, por sua vez, via Agustina em cada raio de luz.
“Papá, temos de encontrá-la. Eu sei que foi ela.”
“Enrique, não vamos falar disso. Basta.”
“Mas é verdade!”
“Por que é que tens medo de acreditar?” perguntou o menino, sem olhar para o pai.
“Porque, às vezes, acreditar dói,” respondeu Gonzalo, quase num sussurro.
“Mas mentir também dói,” ripostou o filho.
Gonzalo desviou o olhar, percebendo que o filho via mais do que a cor do mundo. Via a verdade que ele escondia.
Enrique insistiu.
“Papá, quero voltar à praça.”
Gonzalo, vencido pela persistência do filho, levou-o. Um vendedor de balões reconheceu Enrique e a menina da lupa.
“Às vezes, ela vem vender flores. Vive com o pai num refúgio no fim da Rua dos Cedros.”
“Vamos, papá, por favor!”
O carro de luxo parou em frente ao “Refúgio Esperança”. Paredes descascadas, cheiro a sopa e madeira velha.
Enrique encontrou Agustina, agachada no chão, no meio de caixas de lentes partidas.
“Agustina!”
O abraço foi puro, inesquecível.
“Eu consegui ver, Agustina. Posso ver!”
Gonzalo, mais uma vez, tentou desculpar-se pela sua fúria.
“Eu reagi mal. Pensei que estavas a magoar o meu filho.”
“O senhor só teve medo,” respondeu a menina, sem rancor. “Às vezes, os adultos têm mais medo da luz do que os pequenos.”
“Posso falar com o teu pai? Queria agradecer-lhe pessoalmente.”
Agustina sorriu e levou-o para uma porta nos fundos, onde ressoava o som de ferramentas.
“Papá, há alguém que te quer ver.”
Uma voz grave respondeu:
“Já vou, filha.”
O coração de Gonzalo parou. A voz era familiar, demasiado familiar. O puxador girou lentamente. Apareceu um homem, Javier Morales, rosto marcado, avental sujo de óleo. Os olhos de Javier encontraram os de Gonzalo.
“Conhecem-se?”, perguntou Agustina, sem compreender o peso daquele silêncio.
“Sim, filha,” respondeu Javier, com um tom carregado de anos de dor. “Conhecemo-nos muito bem.”
O ar tornou-se denso como chumbo. Enrique olhava, confuso.
“Javier,” sussurrou Gonzalo, a voz embargada.
“Três anos desde que destruíste a minha vida,” respondeu Javier, inalterado. “O teu pai é o presidente da farmacêutica Fundação Luz Nova, miúdo. E eu era o engenheiro-chefe do laboratório dele. Fui eu quem criou o protótipo do colírio experimental… aquele que ele dizia que podia curar cataratas em qualquer fase.”
Gonzalo sentiu o chão desaparecer.
“Havia um problema. Eu avisei-o, disse-lhe que os ensaios precisavam de mais tempo, que os resultados eram instáveis. Ele não quis esperar.”
Javier olhou para Enrique, com os olhos a lacrimejar.
“E alguém pagou o preço por essa pressa.”
Enrique estremeceu.
“O quê? O que queres dizer com isso?”
“O teu pai testou o colírio mesmo sabendo que podia causar cegueira. E quando os primeiros casos começaram a aparecer, eu tentei alertar o conselho. Ele chamou-me traidor, despediu-me. Fui responsável pelo fracasso. Perdi tudo. Fiquei sozinho com a Agustina.”
O mundo girava à volta de Enrique.
“Não, não pode ser,” gritou. “Não é verdade, papá, pois não? Diz-me que não é.”
Gonzalo hesitou. O silêncio durou demasiado.
“Foste tu. Tu cegaste-me,” disse Enrique, a voz a partir-se.
“Nunca quis magoar-te, Enrique! Eu pensei que estava a ajudar. Queria curar o mundo, filho. Só errei.”
“E mesmo assim, mentiste-me. Fizeste-me acreditar que tinha sido um acidente.”
“Não aguentaria ver-te a odiar-me,” sussurrou Gonzalo.
“Então, preferiste enganar-me. Cegaste-me duas vezes. Primeiro, os olhos; depois, a alma.”
Enrique virou-se para Javier:
“Posso ficar aqui um pouco convosco?”
Javier anuiu, com compaixão.
“Claro, filho. Aqui ninguém tem de fingir que vê.”
Gonzalo desabou, derrotado. Enrique olhou para ele uma última vez.
“Não quero ver-te agora, papá. Preciso de respirar.”
O ar pesado na mansão transformou-se em tormento. Gonzalo vagava, os fantasmas do filho a persegui-lo. Numa madrugada, escreveu numa folha: A verdadeira cegueira é acreditar que podemos comprar o perdão.
Dois dias depois, regressou ao refúgio, sem terno, sem relógio caro.
“Javier,” disse ele. “Não vim justificar-me. Vim pedir perdão, não só pelo que te fiz, mas por ter atirado o mundo para a escuridão em nome do meu ego. Vim com uma proposta.”
Gonzalo tirou do bolso um envelope: planos, documentos e um cheque em branco.
“Quero financiar o teu projeto, as tuas lentes, os teus estudos, tudo. Mas não como presidente da Fundação Luz Nova. Quero fazê-lo como um homem que finalmente aprendeu o valor da humildade.”
“E o que ganhas com isso?”
“Talvez nada. Mas se isto ajudar alguém a recuperar a vista, talvez o meu filho possa voltar a olhar-me sem dor nos olhos.”
Javier olhou-o por longo tempo.
“Se é para todos, eu aceito. Mas o projeto será público, sem patentes, sem muros. A luz que se guarda transforma-se em sombra.”
“Então, começamos agora.”
O aperto de mão foi um pacto de redenção. Enrique, a espiar por uma porta, viu o pai baixar a cabeça em sinal de respeito. Naquele silêncio, a semente do perdão começou a brotar.
Meses depois, a antiga farmacêutica foi rebatizada como “Fundação Morales Delgado”. Gonzalo e Javier, trabalhando lado a lado, devolviam a visão a pessoas em todo o mundo. Enrique ajudava Agustina na oficina.
Numa tarde, Enrique encontrou o pai.
“Papá, queria dizer-te que mudaste.”
“Estou a tentar, filho, ainda a errar, mas a tentar.”
O rapaz pôs a mão na do pai.
“Sei disso. E acho que isso já é suficiente para começar.”
O homem que antes não conseguia olhar para o filho, via-o agora em toda a sua luz.
Numa cerimónia de inauguração, Gonzalo disse:
“Aprendi que a luz não nasce dos olhos, mas do perdão. E que, às vezes, é um menino que nos ensina a ver de novo.”
Ao saírem, Enrique e o pai abraçaram-se.
“Perdoo-te,” sussurrou Enrique.
“Obrigado, filho.”
Javier apertou a mão de Gonzalo.
“Tu devolveste-me o que mais queria. Dignidade.”
Agustina observava-os, radiante.
“Curar os olhos é fácil. O difícil é curar o coração. Mas, quando a luz entra, até o que parecia perdido volta a brilhar.”
O passado já não pesava. Gonzalo, finalmente, sentia-se livre. A verdadeira visão não era ver o que estava em frente aos olhos, mas sim perceber o que sempre estivera dentro do coração.
(Palavras: 1980)
Agora, vou criar a legenda do Facebook baseada no clímax da traição.