O portão de ferro se abriu lentamente quando Daniela atravessou a entrada da imensa propriedade dos García. O sol da tarde refletia nas janelas da mansão como lâminas de luz, cegantes, contrastando com a simplicidade da mala gasta que ela carregava.
Respirou fundo. O ar parecia pesado, quase triste — como se algo ali dentro tivesse parado no tempo.
A governanta apareceu na porta principal, o rosto cansado e desconfiado.
— Você é a nova babá?
Daniela assentiu.
— Suba. O quarto dele é no fim do corredor… mas prepare-se.
O aviso ficou suspenso no ar, frio, como um presságio.
Ao subir as escadas, um odor forte e ácido dominou o ambiente. Daniela enrugou o nariz. Quando empurrou a porta do quarto, o coração apertou.
No canto, um menino de dois anos, encolhido, abraçava uma toalha cor-de-rosa como se fosse o único abrigo do mundo.
O pequeno corpo estava coberto de sujeira, o cabelo endurecido e a pele irritada. Assim que o piso rangeu sob seus pés, o menino gritou. Um grito de medo, desesperado.
— Ele está assim há quatorze dias — murmurou a governanta. — Não quer tomar banho. Nenhuma babá aguenta.
Daniela se ajoelhou devagar.
— Oi, pequeno… — disse baixinho. — Meu nome é Daniela.
O menino apenas se encolheu mais, escondendo o rosto.
Ela olhou ao redor: brinquedos quebrados, cortinas fechadas, o ar parado. Sobre a mesinha, o retrato empoeirado de uma mulher sorridente.
— Elisa García, a mãe — explicou a governanta com voz trêmula. — Faleceu há duas semanas. Desde então, o menino não é mais o mesmo. O pai… não sabe o que fazer.
Daniela engoliu em seco.
— Pode me deixar sozinha com ele.
Quando a porta se fechou, o silêncio voltou — denso, sufocante. Daniela se sentou no chão, sem tentar se aproximar. Ficou ali, respirando o mesmo ar.
Sabia que, às vezes, amar alguém ferido é só ficar.
Nos dias seguintes, a rotina foi um campo de batalha. O pequeno Benjamim gritava, jogava brinquedos, recusava comida.
A cada tentativa de aproximação, ele reagia com fúria.
— Não! Sai! — berrava, chutando o ar.
Mas Daniela não revidava.
— Está bem, Benjamim — dizia com calma. — Eu não vou te tocar. Só vou ficar aqui.
E ficava.
Em silêncio.
Esperando.
Ela percebeu que não era rebeldia — era dor. O menino não tinha medo da água, tinha medo de ser deixado sozinho outra vez.
No terceiro dia, enquanto limpava discretamente o quarto, Daniela percebeu o olhar curioso de Benjamim. Ele a observava em silêncio.
Naquela manhã, ela foi ao banheiro e abriu a torneira. A espuma se formou devagar, branca e leve.
— Olha, parece neve — murmurou, soprando as bolhas.
Benjamim franziu a testa, intrigado. Ficou na porta, observando.
No dia seguinte, ela repetiu.
— As bolhas sobem e desaparecem como os medos, quando a gente olha pra eles — disse com voz suave.
O menino não respondeu. Mas ficou ali. Um minuto. Depois dois. No terceiro, voltou correndo pro canto. Daniela sorriu.
— Tudo bem, pequeno. Amanhã tentamos de novo.
No quarto dia, ele deu um passo. Depois outro. Encostou o dedo na espuma.
— Isso não é uma estrela — disse, com o tom birrento de quem quer contrariar.
Daniela riu.
— Talvez não seja. Mas pode parecer, se a gente quiser.
E pela primeira vez, o menino riu. Uma risadinha curta.
Mas real.
No dia seguinte, o milagre aconteceu.
Benjamim entrou no banheiro sozinho.
Daniela fingiu não notar.
— Acho que essa montanha de nuvens vai explodir de tanto rir… — brincou.
O menino mergulhou as mãos na espuma.
— Posso te ajudar a tomar banho enquanto a gente brinca? — perguntou ela.
Benjamim pensou um instante… e assentiu.
Entre risadas e bolhas, Daniela o lavou com cuidado. A sujeira foi embora junto com o medo. A risada dele ecoou pelos azulejos — a primeira em duas semanas.
Foi nesse momento que Ernesto García, o pai, apareceu à porta.
O terno impecável contrastava com o chão molhado e o filho sorrindo nos braços da babá.
Por um instante, o homem não conseguiu falar.
Seu filho — aquele que não deixava ninguém se aproximar — agora ria.
Daniela soprou uma bolha em direção ao menino, e ele riu outra vez.
Ernesto também sorriu, sem perceber.
A casa, pela primeira vez, respirava.
Nos dias seguintes, Daniela encontrou um pequeno caderno azul no antigo escritório da falecida Elisa.
Eram cartas para o marido.
“Se um dia eu não estiver aqui, não fuja, Ernesto.
Não deixe que Ben cresça sozinho.
Ele precisa de você inteiro.”
Daniela levou o caderno ao pai.
— O senhor precisa ler isso.
— Não quero falar sobre Elisa — respondeu ele, seco.
— Não é pra falar — disse ela. — É pra escutar.
Ele abriu as páginas e, conforme lia, a máscara caiu.
Chorou em silêncio.
— Eu falhei com os dois — murmurou. — Fugi do que mais amava.
Daniela colocou a mão em seu ombro.
— Ainda há tempo, senhor Ernesto. Ele ainda está esperando por você.
Naquela tarde, o homem entrou no quarto do filho — sem terno, sem máscara.
Daniela e Benjamim brincavam com blocos coloridos.
— Posso ajudar a construir? — perguntou, hesitante.
O menino desviou o olhar, mas não fugiu.
Colocaram juntos uma peça, depois outra.
Dias depois, o pai já lia histórias antes de dormir, acompanhava o banho, aprendia a rir de novo.
A voz de Elisa parecia sussurrar a cada gesto:
“Não fuja. Ele precisa de você inteiro.”
O tempo passou.
O menino começou a correr pelo jardim, e o pai corria atrás, rindo, com a roupa suja de grama.
O luto deu lugar à vida.
O silêncio, à música.
Mas então veio o susto.
Benjamim começou a tossir. A febre subiu rápido.
— Senhor Ernesto! — gritou Daniela, aflita. — Ele está queimando!
O médico chegou às pressas.
— Pneumonia. Precisa ser internado.
O rosto de Ernesto empalideceu.
Outra vez, o medo da perda.
No hospital, ele segurava a pequena mão do filho.
Nada de relógios caros, nada de negócios.
Só um pai, despido de orgulho, prometendo entre lágrimas:
— Você vai ficar bem, meu amor. Eu não vou te deixar.
As horas foram longas. A madrugada caiu.
Daniela rezava em silêncio.
Quando o médico voltou, a voz dele soou como esperança:
— A febre baixou. Está reagindo bem.
Dias depois, Benjamim abriu os olhos e sussurrou fraco:
— Papai… você ficou?
Ernesto sorriu, as lágrimas caindo.
— Nunca mais vou embora.
Daniela virou o rosto, emocionada.
Sabia que aquele era o verdadeiro milagre.
Semanas depois, Benjamim recebeu alta.
Voltaram para casa.
O pai carregava o filho nos braços; Daniela segurava o caderno azul de Elisa.
A mansão, antes fria, agora tinha cheiro de flores.
O piano voltou a tocar.
As janelas se abriram.
— Viu, papai? A casa não está mais triste — disse o menino.
Ernesto respondeu, com a voz embargada:
— É porque você voltou, meu filho.
À noite, quando o pequeno dormia, Daniela e Ernesto ficaram na varanda.
O céu estrelado refletia nos olhos deles.
— Nunca imaginei que ele pudesse me aceitar — confessou Ernesto.
— Ele não aceitou só você — disse ela. — Você se aceitou também.
O silêncio que seguiu foi leve, cheio de paz.
Dentro da casa, o riso de Benjamim ecoou distante.
Daniela sorriu.
— Ele vai crescer sabendo o que é o amor.
Ernesto assentiu, olhando o jardim iluminado.
— E que o amor cura até o que parece impossível.
Naquela noite, enquanto o vento suave passava pelas flores recém-plantadas, a mansão García finalmente dormiu em paz.
Não havia mais fantasmas.
Apenas amor.
E o amor, enfim, era o bastante.
