O ENGENHO DAS MULHERES SILENCIADAS BANQUETES PROIBIDOS —1879 Recôncavo Baiano

O Engenho São Bento, no Recôncavo Baiano de 1879, era uma terra de canaviais e segredos, mas vivia sob uma fachada de ordem que beirava o sacrilégio. O Coronel Inácio Moreira da Silva, um patriarca de 62 anos, tentava adiar a morte física enquanto sua esposa, Dona Eulália Sampaio Moreira, ansiava por restaurar a ordem moral de um casamento sem filhos legítimos. O silêncio, naquela Casa Grande, não era paz, era a casca de uma mentira prestes a estourar.

A mentira tinha três nomes: Joana, Clara, e Antônia. Nascidas entre 1860 e 1863, eram filhas do Coronel com escravas da propriedade. Nascidas livres pela Lei do Ventre Livre, mas condenadas a um limbo jurídico e moral: não eram escravas, mas não eram filhas; carregavam o sangue do Senhor, mas sem direito ao nome. Dona Eulália chamava-as, em suas confissões, de “as evidências do pecado”.

A revelação fatal não foi acidental. O Coronel, homem de consciência religiosa genuína, sentindo a fraqueza do coração e a proximidade do fim, planejava legitimar as filhas bastardas, um último acerto de contas com Deus. Uma carta ao seu advogado, datada de outubro de 1878, confirmava a intenção: “Não posso mais fingir que essas jovens não existem. Carregam meu sangue e merecem ao menos o reconhecimento legal.”

Dona Eulália descobriu essa traição à memória do casamento e agiu com a frieza calculada de quem acredita estar cumprindo um desígnio divino. Sua esterilidade amarga e a teologia distorcida que havia construído – Se Deus não me concedeu o dom da maternidade, como pode permitir que escravas gerem filhos do meu esposo? – transformaram as jovens em símbolos do pecado a ser combatido.

A orquestração do fim começou com a cumplicidade do Padre Anselmo Correia, homem de rigidez moral e descrição absoluta, que via nas moças um reflexo do seu próprio estigma de nascimento ilegítimo. Ele escreveu à Senhora do Engenho: “A providência divina oferece soluções para aqueles que sabem buscá-las com fé e descrição. O que é feito em nome da preservação da ordem moral não pode ser julgado pelos padrões mundanos.”

Os Banquete Proibidos começaram em janeiro de 1879. Dona Eulália os anunciou como reuniões sociais mensais, realizadas sempre na terceira sexta-feira. Não eram jantares comuns, mas um ritual de humilhação e eliminação sistemática que contava com a cumplicidade das mais altas autoridades locais: o juiz de direito, o delegado de polícia, e fazendeiros vizinhos, todos endividados ou dependentes da influência do Coronel. Todos tinham motivos para manter o silêncio.

As três jovens – Joana, Clara, e Antônia – serviam à mesa, vestidas de branco, cor da pureza e da mortalha. Carregavam as travessas, enchiam os copos, e permaneciam em silêncio, de pé, encostadas na parede, nunca tocando na comida. O Padre Anselmo estava sempre presente.

Joaquim Ferreira da Costa, então feitor e mordomo da Casa Grande, foi a testemunha ocular e silenciosa da tragédia, um papel que o assombraria por setenta e cinco anos. Ele notou que a cada banquete, a vitalidade das moças diminuía. Clara, antes robusta, tornava-se esquálida. Antônia desenvolvia uma tosse persistente.

O terceiro banquete, em março de 1879, marcou o início da escalada. Joana, a mais velha, não apareceu para servir. A desculpa: indisposição. Na manhã seguinte, Joaquim procurou por ela na senzala velha, transformada em habitação isolada. Joana havia desaparecido. “Viajou para Salvador a trabalho da senhora”, disseram-lhe Clara e Antônia. Ninguém mais a viu.

Joana, em seu diário encontrado anos depois, já pressentia o destino: “A Senhora nos olha de forma diferente agora. Há algo em seus olhos que me assusta. Tenho medo de que nem Deus possa nos proteger do que está por vir.”

O diário de Dona Eulália, um caderno de capa preta que ela carregava obsessivamente, revelava a frieza do método. Joaquim conseguiu ler fragmentos das anotações da senhora: “Joana, resistência diminuindo, aceita ordem sem questionamento, peso visivelmente reduzido. Padre Anselmo confirma: A providência age através da disciplina.”

A disciplina de que falavam era terrível. O Padre Anselmo realizava sermões de penitência nas manhãs de quinta-feira, véspera dos banquetes. Ele as fazia ajoelhar sobre grãos de milho enquanto rezava, dizendo que “a dor física purifica a alma”. Joana escreveu: “Minhas joelhos sangram, mas ele insiste que é necessário.” Ele as forçava a olhar para um espelho enquanto repetiam: “Sou filha do pecado e mereço o castigo.” Joana foi a primeira a sucumbir, parando de responder aos sermões antes de desaparecer.

O ritual de eliminação continuou. Clara durou até junho. Sua beleza, antes admirada, murchou em semanas. No sexto banquete, apenas Antônia serviu à mesa, sozinha. Ela tremia tanto que derrubou uma travessa de prata no chão. O barulho ecoou pela sala de jantar como um presságio. Dona Eulália sorriu e disse aos convidados: “As jovens estão nervosas com a proximidade da viagem.” Ninguém perguntou: Que viagem?

As velas dispostas em triângulo no centro da mesa simbolizavam as vidas. Quando Joana desapareceu, uma vela foi apagada. Depois de Clara, restou apenas uma única chama. O ritual sinistro se alimentava da submissão progressiva das vítimas.

Antônia, a caçula, a mais frágil, era também a mais observadora. Antes de desaparecer, ela deixou um último registro com carvão na parede da senzala: “Aqui jazem as filhas que nunca foram”. Acima, desenhou três cruzes em uma colina.

O último banquete aconteceu em 15 de agosto de 1879. A festa da Assunção de Nossa Senhora. O Padre Anselmo chegou carregando um crucifixo de prata. Não havia mais jovens para servir; Dona Eulália, em um vestido negro, servia à mesa com uma serenidade perturbadora, alegando luto. A cadeira vazia na cabeceira da mesa, o lugar do Coronel Inácio, pairava como uma presença fantasmagórica. Ele havia partido para Salvador, numa fuga que era, na verdade, cumplicidade silenciosa. Ele sabia o que estava acontecendo, e preferiu não testemunhar o fim do processo.

Três dias depois do banquete final, Antônia desapareceu.

Dona Eulália chamou Joaquim à Casa Grande. Entregou-lhe dinheiro, mais do que ele ganharia em dois anos, e uma carta de recomendação para um emprego em Salvador.

— Você vai esquecer tudo o que viu aqui nos últimos meses.

Joaquim tentou perguntar sobre as meninas. Dona Eulália fechou o caderno de capa preta e o encarou com um alívio profundo.

— Que meninas, Joaquim. Aqui nunca houve meninas.

Duas horas depois, Joaquim estava na estrada para Salvador, carregando a trouxa de roupas e o peso de um segredo que guardaria por setenta e cinco anos.

Antes de partir, ele visitou a senzala velha. No chão de terra batida, havia três depressões rasas, como se algo tivesse sido enterrado e depois removido. Nas paredes, as palavras de Antônia resistiam: Aqui jazem as filhas que nunca foram.

Joaquim Ferreira da Costa jamais voltou ao Recôncavo, mas todas as sextas-feiras, ele acendia três velas na janela de seu quarto em Salvador, “para as meninas que não tiveram velório”. Ele morreu em 1954, aos 86 anos, e em seu leito de morte, chamou o vigário e confessou a tragédia de omissão que carregava: o assassinato por conveniência moral de Joana, Clara, e Antônia.

Os registros paroquiais nunca registraram seus óbitos. As autoridades civis jamais questionaram o Coronel. A Igreja, através do Padre Anselmo, destruiu as confissões e o diário de Joana, apagando a história para preservar a respeitabilidade das famílias tradicionais.

Mas a verdade, que tentaram enterrar no solo e nas águas do Rio Paraguaçu, recusou-se a silenciar. Em 2010, escavações arqueológicas no local da senzala velha encontraram ossos humanos de três jovens entre 15 e 20 anos, com sinais de desnutrição severa. A análise forense provou que os corpos foram movidos, uma tentativa desesperada dos assassinos de ocultar as evidências quando o Engenho foi vendido.

Os ossos de Joana, Clara, e Antônia, as mulheres silenciadas do Recôncavo Baiano, foram sepultados em Santo Amaro, numa cerimônia discreta. A sua história, finalmente contada, não é sobre ódio ou loucura, mas sobre o custo moral do silêncio e da conveniência numa sociedade que considerava certas vidas descartáveis. Elas foram silenciadas em vida, mas a sua memória, através do testemunho de um feitor que não se calou na morte, finalmente encontrou voz.

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