
As manhãs na escola Camino Claro começavam com o tilintar das mochilas e os gritos alegres que ecoavam pelos corredores. O cheiro a pequeno-almoço misturava-se com o perfume a sabonete infantil, enquanto os desenhos nas paredes pareciam sorrir a todos os que passavam. Amália, a professora, chegava cedo. Gostava de percorrer os corredores ainda silenciosos, arrumar os livros nas prateleiras da sala, verificar se os lápis estavam bem afiados e endireitar os tapetes do canto de leitura. Era no silêncio da preparação que sentia a sua missão: transformar aquele espaço num refúgio acolhedor para cada criança que cruzasse a sua porta. Amália era o tipo de professora que guardava o nome dos avós dos alunos, sabia quem preferia sanduíches de queijo, quem tinha medo de cães, quem chorava ao ver formigas. Caminhava entre as carteiras com passos leves e uma voz que abraçava. Por vezes, deixava bilhetes escondidos nos cadernos, elogiava os desenhos com um entusiasmo que fazia os pequenos sentirem-se artistas e celebrava cada resposta correta como se fosse um golo na final do Mundial. Os seus alunos chamavam-lhe “profe,” “professora linda,” e até mesmo “mamã,” sem querer, e ela sorria com o coração apertado, sabendo que alguns daqueles meninos encontravam nela o que lhes faltava em casa.
No momento da roda de conversa, Amália sentava-se no chão, pernas cruzadas, ouvindo cada relato como se fosse a história mais importante do mundo. Ela ouvia com a alma e foi ouvindo assim, com todo o seu ser, que começou a notar os silêncios que não eram acompanhados por palavras. Foi nesse contexto que Antónia se destacou na sua mente. A menina entrava na sala todos os dias com os mesmos passos miúdos, a mochila colada ao corpo, o olhar baixo. Cumprimentava num sussurro e sentava-se sempre no canto esquerdo da sala, perto da janela, de onde podia ver o mundo lá fora sem ser vista. Amália observava-a com atenção crescente. Antónia nunca interrompia, nunca pedia atenção, mas também nunca se permitia relaxar. Havia um cuidado extremo nos seus movimentos, como se caminhasse sobre vidro partido, e isso inquietava Amália de uma forma que não sabia explicar, mas que sentia profundamente.
“Antónia, queres ajudar-me a colar os trabalhos no mural hoje?” perguntou Amália um dia, com suavidade na voz. A menina hesitou, olhou em redor como se procurasse uma permissão invisível, e anuiu. No início, não disse nada, mas depois de colar o segundo desenho, soltou um sorriso ténue, quase inaudível. “Está perfeito,” Amália sorriu de volta. “Acho que o mural nunca esteve tão bonito.” Antónia desviou o olhar, mas por um segundo, um brilho fugaz cruzou os seus olhos. Foi aí que Amália compreendeu: para se aproximar de Antónia, precisaria de paciência, constância e uma delicadeza quase reverente. Nos recreios, enquanto o pátio fervilhava de corridas e disputas pelo baloiço, Antónia preferia ficar à sombra da pitangueira, com o lanche intocado no colo. Amália, ao vê-la ali tantas vezes, começou a aproximar-se. Um dia, levou dois copos de sumo e sentou-se ao seu lado, dizendo: “Está calor hoje, não está? Também gosto de me sentar aqui, este canto é tranquilo.” Antónia não respondeu, apenas deu um pequeno gole, segurando o copo com força. Amália não insistiu, ficou apenas ali, sabendo que o silêncio entre duas pessoas pode dizer mais do que qualquer conversa.
Com o passar das semanas, Amália ajustou a sua rotina. Guardava sempre um tempo extra para Antónia: na leitura a dois, escolhia-a sem que parecesse uma escolha; nos desenhos, demorava-se um pouco mais ao seu lado. Cada gesto era subtil, mas intencional. Amália tentava construir uma ponte, mas não sabia que uma revelação avassaladora estava prestes a chegar.
Essa terça-feira começou como tantas outras, mas havia algo diferente no ar. Talvez o calor abafado que se arrastava pelos corredores, ou o céu nublado que deixava passar uma luz pálida, como um véu melancólico. O grupo parecia mais disperso e Amália, sentindo aquele ambiente estranho, decidiu adaptar a atividade do dia. “Hoje, quero que desenhem um sentimento,” disse com um sorriso doce. “Pode ser qualquer um: amor, saudade, medo, alegria. Tudo vale. Às vezes, o coração fala através das cores.” Os olhos dos alunos brilharam. Amália incentivava todos, passando entre as carteiras, elogiando ideias. “Vou desenhar um dinossauro porque me dá medo, mas também é fixe!” exclamou Pedro. “E eu a minha avó!” gritou Sofia. No meio daquele burburinho infantil, Amália notou que Antónia estava em silêncio, a cabeça baixa, já a desenhar. Usava apenas lápis grafite e um giz vermelho-escuro. Os traços eram intensos, como se cada linha exigisse um esforço de todo o seu corpo. Amália aproximou-se devagar, respeitando a concentração da menina. De vez em quando, Antónia levantava a cabeça e olhava em redor, não para os colegas, mas para os cantos da sala, para os lugares mais escuros, como se verificasse se algo ainda estava ali.
A aula continuou, os meninos terminaram os seus desenhos, rindo e trocando folhas. Mas Antónia permaneceu ali, desenhando até ao último minuto. Quando o toque da campainha soou, ela não correu para guardar as coisas. Caminhou devagar até à mesa da professora e parou em silêncio. Amália levantou o olhar e notou uma expressão diferente no rosto da menina: não era tristeza nem raiva, era vulnerabilidade crua. Antónia estendeu o papel com as duas mãos, como quem entrega um segredo que não devia ser revelado. E então, sem levantar os olhos, disse: “É o que mais sinto.”
Amália pegou no papel com cuidado, respirou fundo. O que viu congelou-a de imediato. Era uma imagem forte, visceral: uma menina encolhida no canto inferior da folha, com os olhos enormes, a boca aberta num grito silencioso. E por cima dela, ocupando quase toda a parte superior, uma sombra escura, disforme, com garras longas e afiadas, braços estendidos como se fossem alcançá-la. Não havia chão, nem céu, nem fundo, apenas a sombra e o medo. Amália sentiu um nó na garganta. “Antónia,” murmurou, ainda com os olhos fixos no desenho. “Quem é essa sombra?” Antónia calou-se por uns segundos, como se engolisse a pergunta. Depois, com os olhos ainda no chão, respondeu com a voz trémula: “É o pior da minha vida. Dá-me muito medo.”
Aquelas palavras atingiram Amália com força. Não era uma resposta genérica nem uma fantasia; era uma confissão. A professora olhou para ela e o seu coração partiu-se. Antónia tremia levemente, como se tivesse feito algo de errado. Amália agachou-se para ficar à altura da menina e disse: “Obrigada por me confiares isto. Este desenho é muito importante.” A menina anuiu, mas os seus olhos estavam distantes. Amália compreendeu que tinha nas mãos não apenas um desenho, mas uma chave, uma porta que havia sido entreaberta. O que estava por trás era um mistério, mas estava claro que não era nada pequeno.
“Antónia,” chamou Amália com suavidade, quando o toque da saída soou. “Amanhã, depois da aula, podes ficar um bocadinho comigo? Só nós as duas. Sem pressa. Só se quiseres, claro.” A menina hesitou, olhou para os próprios pés, e depois anuiu com a cabeça. Amália despediu-se com carinho discreto e ficou a observar enquanto a menina se afastava pelo corredor, pequena entre os outros, como uma sombra que se arrastava sem fazer ruído. Ela sabia: algo muito grave se escondia por trás daquele olhar baixo. De volta à sala vazia, Amália sentou-se na sua secretária com o desenho nas mãos. Passou os dedos pelas linhas do papel, como se pudesse, de alguma forma, tocar a dor que Antónia havia ali depositado. Aquilo não era um medo qualquer, era real, era vivido, era quotidiano, e Amália nunca se tinha deparado com algo tão claro e tão aterrador, mesmo sem ter sido dito em voz alta.
A partir do momento em que Antónia lhe entregou aquele desenho sombrio, Amália não conseguiu mais olhar para a menina da mesma maneira. Era como se a imagem da pequena aterrorizada e da sombra ameaçadora tivesse ficado fixa na sua memória, e agora cada gesto de Antónia era observado sob uma nova luz. Ela passou a vê-la com olhos atentos, minuciosos, não como quem desconfia, mas como quem tenta decifrar um enigma delicado, feito de silêncios e expressões subtis. E quanto mais observava, mais sinais encontrava.
O primeiro era a roupa. Mesmo nos dias mais quentes, Antónia insistia em usar blusas de manga comprida, às vezes até com o colarinho fechado. Era discreta, sempre discreta, mas Amália notava que ela puxava as mangas até cobrir os pulsos, como se quisesse esconder algo. “Antónia, não tens calor com essa blusa tão fechada?” perguntou Amália um dia, com um sorriso amável. A menina hesitou, baixou o olhar e murmurou: “Não gosto dos meus braços.” A resposta simples fez soar um alarme em Amália. Nos recreios, enquanto as outras crianças corriam e se empurravam alegremente, Antónia continuava à parte. Encolhia-se, geralmente perto da pitangueira, com o corpo curvado e o olhar perdido num ponto distante. Quando a convidavam para brincar, sorria levemente e dizia que estava cansada. Amália, que se sentava muitas vezes com ela, sabia que não era cansaço. Era um retraimento, uma espécie de defesa constante, como se Antónia vivesse em estado de alerta, sempre a preparar-se para um perigo invisível.
Amália notou outro detalhe: as olheiras eram subtis, mas constantes. Não pareciam resultado de uma noite mal dormida ocasional; eram marcas recorrentes que davam à menina um ar de esgotamento prematuro, como se carregasse um peso que ninguém via. “Dormiste bem esta noite, Antónia?” perguntou-lhe numa manhã. A resposta foi rápida, quase ensaiada: “Sim, dormi bem.” Mas os olhos da menina não confirmavam as suas palavras. Estavam avermelhados, fundos, e a sua postura dizia o contrário. Era como ver uma criança a usar uma máscara de normalidade e a falhar, pouco a pouco, em mantê-la firme.
Amália também notou que Antónia evitava o contacto físico. Quando recebia um cumprimento mais caloroso, encolhia os ombros. Um dia, ao passar na sala e roçar-lhe acidentalmente o braço, a menina estremeceu de forma desproporcional, recuando como se tivesse levado um choque. Amália pediu desculpa com delicadeza, mas guardou silêncio. Ficou a pensar, a refazer mentalmente cenas anteriores. O sobressalto sempre esteve ali, só que antes ela não o tinha notado. À noite, em casa, Amália surpreendia-se a pensar em Antónia mais do que gostaria. Sentada à mesa da cozinha, com os cadernos para corrigir empilhados, relia as suas redações, pequenos textos sobre a família, o fim de semana, o que mais gostava de fazer. Em todas, Antónia usava palavras curtas e vagas: “Fiquei em casa,” “Brinquei sozinha,” “Não saí.” Não havia menção ao pai, à mãe, a irmãos, nenhum nome, nenhum detalhe, como se escrever fosse perigoso, como se abrir qualquer fresta pudesse trazer consequências. Amália, com os olhos cheios de lágrimas, sussurrava para si mesma: “Há algo que não está bem. Algo está muito mal.”
Ainda com todos aqueles sinais, havia uma parte de Amália que resistia. Não queria acreditar que algo tão grave estivesse a acontecer debaixo do seu nariz. Queria pensar que talvez fosse apenas timidez, que era só uma menina mais introspectiva. Mas a cada dia, essa desculpa se desfazia um pouco mais. As peças do puzzle não encaixavam como deviam, e o desenho – aquele maldito desenho – continuava guardado na sua gaveta, como uma ferida aberta que palpitava cada vez que se lembrava. Amália sabia que precisava de fazer algo, mas o quê? Como? Até onde podia ir? Começou a tirar notas, pequenos registos, datas, comportamentos. Criou uma pasta na sua mala onde guardava tudo o que lhe parecia importante. Começava a preparar-se, ainda sem saber para que tipo de tempestade. O seu instinto dizia-lhe que já não podia ignorar. Antónia estava a gritar por dentro e, embora as suas palavras continuassem poucas, os seus olhos, ah, os seus olhos diziam tudo. E Amália, mesmo com medo, mesmo sem saber para onde tudo aquilo a levaria, estava determinada a ouvir até ao fim.
A sexta-feira chegou com um céu cinzento e preguiçoso. O vento arrastava folhas secas pelo pátio da escola, como se até o clima refletisse a inquietação que Amália sentia por dentro. Tinha passado a noite em claro a pensar em Antónia, a repassar cada detalhe dos últimos dias, cada frase dita, cada silêncio estranho. Sentia-se sufocada por uma urgência silenciosa, uma necessidade latente de agir. E naquele dia, decidiu que não ia adiar mais. Era hora de falar com a menina, de verdade, com calma, com cuidado, com coragem.
Depois da aula, quando todas as crianças corriam pelos corredores rumo à saída, Amália aproximou-se da carteira de Antónia e, com voz suave, perguntou: “Podes ficar um bocadinho comigo hoje? Só nós as duas. Não precisas de dizer nada se não quiseres, só quero conversar.” Antónia hesitou, olhou para a sua mochila, como quem procura um refúgio, mas algo no seu olhar dizia que esperava aquele convite. Com um gesto quase impercetível, anuiu. Amália sorriu, tentando esconder a tensão que a invadia. Fechou a porta da sala com cuidado, como quem isola o mundo exterior. Sentaram-se lado a lado no tapete do canto de leitura, onde já haviam sido contadas tantas histórias. Amália cruzou as pernas, mantendo uma distância confortável; não queria parecer invasiva, só queria ser uma presença.
“Sabes, Antónia, às vezes guardamos coisas aqui dentro,” disse ela, apontando suavemente para o peito. “Coisas que doem, que assustam, e sentimos que não podemos contá-las a ninguém.” A menina olhava para as suas mãos no colo, sem dizer nada. Amália continuou: “Mas quando falamos, por mais difícil que seja, as coisas começam a doer um bocadinho menos.” Houve um longo silêncio. Amália respeitou cada segundo. Depois de um tempo, Antónia levantou os olhos e perguntou num sussurro: “Se eu contar, vais dizer a alguém?” Amália respirou fundo. Era o momento de ser transparente. “Se for algo que te está a fazer mal, preciso de te ajudar. E às vezes, ajudar significa contar a alguém que te possa proteger. Mas farei com muito cuidado. Nada vai acontecer sem que saibas. Prometo-te.”
Antónia anuiu lentamente, como se absorvesse cada palavra com esforço. E então, com os olhos cheios de lágrimas, começou a falar. As palavras saíram devagar, entre pausas e respirações trémulas. “É o meu pai,” disse, com a voz quase apagada. “Ele… ele grita muito comigo. Às vezes empurra-me, manda-me para o quarto e deixa-me lá no escuro. Não me deixa comer se eu fizer as coisas mal.” Amália sentiu o corpo inteiro a enrijecer, engolindo as lágrimas que queriam sair. “Ele diz que dou problemas, que sou um peso, que se eu não existisse, tudo seria melhor.” Antónia parou por um momento, os olhos cheios de lágrimas que não caíam. “Às vezes, queria só desaparecer.”
Amália não aguentou mais. Limpou discretamente os olhos e aproximou-se um pouco mais. Estendeu os braços com ternura e perguntou, com a voz embargada: “Posso dar-te um abraço?” Antónia demorou um instante. Depois, atirou-se para os braços dela num choro contido. Aquele choro silencioso foi para Amália o som mais doloroso que alguma vez ouvira em toda a sua vida. Era um choro de alívio, de medo, de entrega, como se, naquele instante, a menina tivesse finalmente encontrado um lugar seguro para desabar. Amália envolveu-a com ternura e repetia num sussurro: “Não estás sozinha, meu amor. Eu estou aqui. Estou contigo.”
Depois do abraço, permaneceram em silêncio por longos minutos. Amália acariciava o cabelo liso da menina, tentando transmitir com o contacto o que as palavras não conseguiam expressar. No seu coração, havia um turbilhão de sentimentos: tristeza, indignação, amor, urgência. Ela sabia que a partir daquele momento, a sua responsabilidade havia mudado de tamanho. Agora era real, tinha nome, tinha rosto, tinha um corpo frágil e uns olhos assustados. Antónia já não era apenas uma aluna; era alguém que precisava dela mais do que ninguém. Quando finalmente se separaram, Amália pegou nas mãos de Antónia e disse, com firmeza: “Foste muito corajosa hoje. Estou muito orgulhosa de ti. E prometo que vou tratar disto. Vais ficar bem.” Antónia não respondeu, mas olhou-a nos olhos pela primeira vez com uma firmeza silenciosa que Amália nunca lhe tinha visto. E naquele olhar, a professora teve a certeza: este era o início de algo profundo, algo que não podia mais ser ignorado e que exigia ação imediata. Já não havia tempo a perder.
O fim de semana arrastou-se para Amália. A cada hora, parecia mais longa. A lembrança do abraço da menina, do choro contido e das palavras ditas com tanto medo invadia os seus pensamentos como ondas constantes. Ela sabia a resposta, mas doía enfrentar a realidade. Na noite de domingo, com o telemóvel na mão, Amália olhava para o número da polícia como quem olha para um abismo. O 112 piscava no ecrã. Ela sabia que um telefonema mudaria tudo. Respirou fundo, olhou pela janela e fechou os olhos. Sentia um nó na garganta, uma mistura de angústia e proteção. Sabia que não tinha mais o direito de duvidar. Marcou. Quando a operadora atendeu, a sua voz saiu baixa, mas firme: “Boa noite. Sou professora e preciso de reportar algo sobre uma aluna. Uma criança está a sofrer abuso emocional e possivelmente físico. É urgente. Ela contou-me.”
A conversa com a polícia demorou longos minutos. Amália deu informações detalhadas, relembrou cada palavra de Antónia, mencionou o desenho, o comportamento, os sinais. Explicou como a menina se isolava, as suas roupas, o susto ao contacto, as olheiras, o silêncio doloroso que a envolvia como um escudo. A operadora anotava tudo com precisão e, no final, assegurou-lhe: “Vamos agir, senhora. Hoje mesmo. A situação é delicada. Fique tranquila. Essa menina não vai ficar sozinha.” Amália desligou com o coração aos pulos. Chorou ali mesmo, sentada no chão da sala, abraçando as suas próprias pernas. Era como se, naquele momento, tivesse feito algo enorme e irreversível.
Horas depois, já de madrugada, Amália recebeu uma mensagem da esquadra local: “Intervenção realizada. A menina está sob cuidados dos serviços de proteção. O responsável foi detido.” Ela leu as palavras uma, duas, três vezes. Só então deixou que as lágrimas corressem livremente. Era um alívio e uma dor ao mesmo tempo. Sentia como se tivesse arrancado Antónia de uma casa em chamas, mas agora ela estava sozinha, assustada, rodeada de estranhos. Amália cobriu o rosto com as mãos e sussurrou: “Meu Deus, o que é que ela estará a sentir agora?”
Na manhã seguinte, a escola parecia diferente. A ausência de Antónia era esmagadora, um vazio na sala. Ao sentar-se na sua secretária, Amália lutava contra o impulso de explicar tudo, de gritar que algo terrível havia sido interrompido por um triz, mas sabia que não podia. O silêncio, desta vez, era proteção. Ao fim da aula, a diretora chamou-a para uma breve conversa. Disse-lhe que havia sido informada do sucedido. Os seus olhos estavam húmidos. “Fizeste o que tinha de ser feito, Amália. Salvou uma vida,” disse, pegando na mão da professora. Amália anuiu, mas a emoção sufocava-lhe a voz. Pensava em Antónia num lar temporário, a dormir num colchão desconhecido, rodeada de vozes estranhas. Pensava no medo de não saber o que viria a seguir. Queria estar lá, queria ser a mão estendida, a voz calma, o abraço conhecido. E mais do que tudo, sabia, no fundo do seu peito, que a história entre elas não podia terminar ali. Ainda não.
Nessa noite, Amália sentou-se à mesa da cozinha com uma decisão a palpitar-lhe forte no peito. Abriu o portátil, escreveu com determinação: “Guarda temporária de menor. Como solicitar.” e começou a ler tudo o que pôde. Queria mais do que saber se a menina estava segura; queria ser essa segurança.
No dia seguinte, após falar com a direção da escola e procurar aconselhamento legal, Amália fez o pedido formal de guarda temporária de Antónia. Foi ouvida com respeito. “A senhora quer mesmo fazer isto?” perguntou uma das assistentes sociais, com os olhos cheios de uma emoção contida. Amália anuiu com firmeza. “Ela não pode voltar para casa e precisa de alguém que a conheça, que a entenda, que a olhe com amor.” A mulher disse: “Faremos o possível.” O processo, embora burocrático, foi acelerado devido ao empenho da escola, aos registos detalhados de Amália e à gravidade do caso. Em menos de uma semana, o juiz autorizou a guarda temporária.
Amália recebeu a notícia com as mãos e o peito a transbordar de sentimentos contraditórios: alegria, medo, responsabilidade, amor. Quando foi buscar Antónia ao centro de acolhimento, sentia as pernas fracas. Antónia estava sentada num sofá cinzento, abraçada a uma almofada, com o olhar baixo. Ao ver Amália, ficou imóvel. “Olá, pequena,” disse a professora, ajoelhando-se à sua frente. Antónia demorou a reagir, mas depois de uns segundos, levantou-se devagar e abraçou-a. Um abraço mudo, longo, cheio de significado. Amália chorou ali mesmo, e não escondeu.
A chegada de Antónia à casa de Amália foi discreta, quase tímida. Amália havia preparado o quarto com o maior carinho: lençóis com estrelas, um candeeiro de luz suave, uma prateleira com livros infantis. Nada exagerado, apenas o suficiente para que se sentisse bem-vinda. Quando Antónia entrou no quarto, observou tudo em silêncio. Passou a mão pela colcha, sentou-se à beira da cama e depois foi até à janela. “Este quarto é só meu?” perguntou baixinho. Amália anuiu: “Sim, e podes decorá-lo à tua maneira, ok? É o teu espaço.” A menina não respondeu, mas Amália viu o início de um sorriso no seu rosto: pequeno, tímido, mas real.
Os primeiros dias foram de descobertas. Antónia comia devagar, demorava a adormecer, e quando conseguia, tinha pesadelos e acordava a chorar. Amália estava sempre lá, sentada ao lado da cama, segurando-lhe a mão até que o sono regressasse. Começaram a criar pequenas rotinas: os pequenos-almoços de panquecas aos domingos, o banho de sol no jardim, as histórias antes de dormir. Um dia, Antónia perguntou se podia ajudar a fazer o almoço. Amália sorriu: “Claro, vai ser a nossa receita especial.” Cozinharam em silêncio, lado a lado, e naquela cozinha, entre colheres e cenouras, nasceu algo mais forte do que um laço: nasceu a pertença.
Com o tempo, Antónia começou a mostrar outras cores. Ria de piadas parvas, inventava nomes para os pássaros que apareciam na janela, falava sozinha enquanto desenhava. Às vezes, ainda guardava silêncio por horas, às vezes, ainda chorava sem motivo aparente, mas agora havia um lugar seguro para chorar, um colo disponível, uma escuta atenta. Amália compreendia cada nuance, cada pausa, cada tentativa. Sabia que a cura viria devagar, como o amanhecer que rompe a noite: lenta, mas segura. E no meio de toda aquela construção delicada, notou que a sua vida também havia mudado. Antónia não era apenas uma criança resgatada; era parte dela agora, parte da sua casa, dos seus dias, do seu afeto. E foi numa tarde qualquer, enquanto dobravam roupa juntas, que Amália ouviu algo que nunca esqueceria. Antónia, a segurar uma blusinha nas mãos, disse, num tom distraído, mas cheio de verdade: “Aqui é o primeiro lugar onde me sinto viva.” Amália parou. Não disse nada. Apenas se dirigiu a ela, abraçou-a por trás e fechou os olhos, sabendo que aquele era o início de uma nova história para as duas, um recomeço silencioso, mas poderoso.
A tarde caía dourada. Amália e Antónia caminhavam lado a lado pelo parque, um dos poucos lugares da cidade onde o ruído cedia espaço à brisa e aos sons da natureza. As mãos estavam entrelaçadas num gesto simples, mas poderoso. Amália olhou para Antónia e sorriu. A menina caminhava agora com os ombros um pouco mais relaxados, os passos menos temerosos, o rosto, embora ainda tímido, já não se escondia tanto. Havia ali um começo luminoso, um terreno onde o medo já não era absoluto, onde finalmente a criança podia ser apenas isso: uma criança.
“Estás bem, minha flor?” perguntou Amália, com a voz embalada pelo calor suave da tarde. Antónia anuiu devagar. Olhavam o lago central, onde a água refletia o céu em movimento. Sentaram-se juntas, partilhando uma maçã. Havia o silêncio confortável de quem partilha mais do que palavras. De repente, Antónia falou, a voz ainda pequena, mas firme: “Tu salvaste-me.” Amália ficou imóvel. Antónia continuou, olhando para o horizonte: “Antes, eu pensava que ia viver assim para sempre, sozinha, com medo. Mas tu vieste. Tu entraste e tiraste-me de lá.” Amália sentiu as lágrimas a subir, lentamente. Tentou falar, mas a garganta apertada não o permitiu. Antónia virou o rosto, olhou-a diretamente e completou: “Podes não ser a minha mãe de verdade, mas amo-te como se fosses.”
A frase trespassou Amália por completo. Ela fechou os olhos por um segundo e, ao abri-los, deixou que as lágrimas corressem livremente pelo seu rosto. Pegou no rosto de Antónia entre as suas mãos quentes e trémulas e disse: “E eu amo-te como se fosses minha filha. És minha, aqui dentro,” apontou para o peito, “onde importa.” Antónia atirou-se para ela num abraço apertado, desesperado, total. Amália segurou-a como se segurasse o mundo. Ali, naquele banco de madeira, selaram um pacto invisível, forte e silencioso. Nunca mais estariam sozinhas. A dor ainda existia, os traumas ainda ressoavam, mas agora havia espaço para curar, havia terra firme onde plantar uma nova vida. Mais tarde, enquanto o sol se punha e o céu se tingia de azul, Amália propôs: “Queres atirar uma pedrinha ao lago e pedir um desejo?” Antónia sorriu, pegou numa pedrinha do chão, fechou os olhos com força e atirou-a à água. Amália não perguntou o que ela tinha pedido. Ficou apenas a olhar para a superfície do lago, sabendo, no fundo do seu coração, que fosse qual fosse o desejo, elas caminhariam juntas para o realizar.