María Josefa: A ESCRAVA de Oaxaca cuja senhora tinha um filho negro… e a casa ficou em silêncio

No verão sufocante de 1782, quando o calor em Oaxaca derretia chumbo sobre as telhas de barro e o ar cheirava a copal queimado, misturado com o suor adocicado dos carregadores que subiam sacas do vale, a casa de Dom Baltazar de Montemayor erguia-se em frente à praça de Santo Domingo como uma fortaleza de segredos.

As paredes eram tão grossas que podiam conter gritos, confissões e mentiras por gerações sem que o mundo exterior ouvisse nada. Nos pátios interiores, as buganvílias vermelhas trepavam pelas colunas de cantaria verde, enquanto as criadas lavavam roupa no lavadouro de pedra, cantando canções em zapoteco que falavam de coisas que o espanhol não podia nomear.

Era uma casa de ordem aparente, de missas diárias e contas meticulosas, mas sob a superfície corria uma corrente de transgressões que ninguém se atrevia a mencionar em voz alta.

Maria Josefa havia chegado àquela casa 7 anos antes, no outono de 1775, quando tinha apenas 14 anos e ainda sonhava numa língua que estava esquecendo rapidamente.

Haviam-na comprado no mercado de Veracruz, arrancada de um grupo de africanos recém-chegados que vinham num navio chamado Santa Lucía. Os papéis diziam que era das costas da Guiné, mas ela mesma já não lembrava o nome de sua aldeia nem os rostos de sua família.

O que se lembrava com uma clareza que a acordava gritando algumas noites era a escuridão do navio, o cheiro de urina e de morte, a sede que parecia converter sua garganta em areia. Em Oaxaca, havia aprendido o espanhol misturado com zapoteco que se falava nas cozinhas e nos fundos. Havia aprendido a moer o cacau no metate até que os braços lhe ardessem como se estivessem em chamas.

Havia aprendido a caminhar com a cabeça baixa e a responder “sim, senhora” antes que terminassem de fazer-lhe as perguntas. E, sobretudo, havia aprendido que seu corpo não lhe pertencia, que era uma ferramenta a mais naquela casa, como o metate ou o comal.

Se você vive no México ou em qualquer canto da América Latina, onde estas histórias ainda ressoam nos quartos fechados e nos arquivos empoeirados, deixe seu país nos comentários para continuarmos a resgatar as vozes que a história oficial decidiu enterrar sob camadas de silêncio e esquecimento.


Dona Inés de Villareal, esposa de Dom Baltazar, havia a escolhido como camareira pessoal em 1778 porque tinha as mãos pequenas e sabia pentear o cabelo comprido sem puxar, sem arrancar mechas como faziam as outras moças desajeitadas do serviço. “É limpa e de bom natural”, havia dito Dona Inés ao marido.

Palavras que naquela casa significavam que Maria Josefa havia aprendido quando falar e, mais importante ainda, quando calar. A senhora a queria perto, sempre perto, para que lhe abotoasse os vestidos com seus centenas de botões diminutos, para que lhe alcançasse as pílulas quando lhe doía a cabeça, para que lhe lesse em voz alta as vidas das santas enquanto bordava lenços de linho.

Dona Inés rezava muito, especialmente em frente ao altar da Virgem da Soledade que tinha em seu quarto, pedindo um filho que nunca chegava. Ano após ano, os lençóis continuavam a se manchar com sangue menstrual e, ano após ano, Dom Baltazar se tornava mais silencioso e mais duro em seus tratos com ela.

Foi no outono de 1781 quando finalmente aconteceu. Dona Inés deixou de sangrar.

O médico confirmou que estava grávida e a casa inteira se transformou como se tivesse caído uma bênção do céu. Dom Baltazar, comerciante próspero de cochonilha e anil que tingia os panos mais finos da Europa, começou a falar em voz alta sobre herdeiros nas tertúlias do portal, onde os homens importantes de Oaxaca se reuniam para fumar tabaco e discutir os preços da seda e o tributo dos povos.

Mandou trazer de Puebla um berço de cedro entalhado com anjos e querubins, o mesmo que sua própria mãe havia usado décadas atrás. Dona Inés caminhava pelo pátio com as mãos protetoras sobre o ventre, que crescia mês após mês, ordenando que preparassem roupões de algodão egípcio e que procurassem a melhor parteira da cidade, uma mulher chamada Jacinta, que havia assistido os partos das famílias mais distintas, sem nunca perder uma mãe.


Mas o que ninguém notou, ou o que ninguém quis notar porque as escravas eram invisíveis, exceto quando serviam o chocolate ou sacudiam os móveis, era que Maria Josefa também havia deixado de sangrar com a lua. Seu ventre crescia discreto sob as anáguas folgadas e os aventais de cozinha que a mantinham coberta da cintura aos joelhos.

Quando Dona Inés lhe perguntava por que tinha o rosto tão inchado ultimamente, Maria Josefa respondia que havia comido muitos feijões pretos ou que o calor a estava fazendo reter água.

A única que sabia a verdade completa era Petrona, a cozinheira zapoteca que estava há 30 anos naquela casa e que havia visto passar todas as misérias humanas possíveis. Petrona olhava para Maria Josefa com olhos que sabiam, mas não perguntavam, e às vezes lhe deslizava tortilhas extras ou um pouco de mole guardado do almoço, comida que uma moça grávida precisava, embora ninguém admitisse que estava grávida.


As dores chegaram a Maria Josefa na madrugada gelada de 14 de abril de 1782, justo quando o galo do vizinho cantava pela segunda vez e a cidade ainda dormia sob o manto de estrelas.

A coincidência foi cruel e perfeita. No mesmo momento, no quarto principal da casa, Dona Inés também começou a sentir as contrações que anunciavam que o parto havia começado.

Toda a casa acordou com seus gritos que ressoavam contra as paredes de adobe, como se fossem os lamentos de um animal ferido. Dom Baltazar corria de um lado para o outro dando ordens contraditórias, mandando aquecer água, trazer lençóis limpos, chamar o médico e o pároco, por via das dúvidas. A parteira Jacinta chegou com sua bolsa de couro cheia de ervas e óleos. Encerrou-se com Dona Inés e de fora só se ouviam orações e gemidos.

Enquanto isso, no quarto pequeno dos fundos, o que normalmente se usava para guardar as panelas quebradas e os sacos de milho para as galinhas, Petrona levou Maria Josefa quase arrastando-a.

“Aguenta e não grites”, ordenou a cozinheira com voz dura, mas não cruel. “Se alguém te escuta, se alguém fica sabendo agora, vão te vender amanhã mesmo para as fazendas de Veracruz, onde as escravas morrem em 3 anos cortando cana. Entendes?”

Maria Josefa assentiu mordendo os lábios até que sangrassem, apertando entre as mãos um trapo velho que Petrona lhe havia dado. A dor era como um animal selvagem que a dilacerava por dentro, mas o pior não era a dor física, mas sim o terror absoluto de não saber o que ia acontecer com seu filho, se é que sobreviveria ao parto.

Ali, sobre um petate estendido no chão de terra, com apenas a luz de uma vela de sebo e o cheiro de umidade e de milho guardado, Maria Josefa trouxe ao mundo um menino que chorava com uma força surpreendente para algo tão pequeno.

O bebê tinha a pele escura como o barro cozido depois da chuva, o cabelo preto e encaracolado como espuma de chocolate batido e os pulmões tão poderosos que Petrona teve que tapar-lhe a boca com a mão para que seus gritos não chegassem até o quarto principal, onde Dona Inés continuava lutando com seu próprio parto.

Maria Josefa só pôde olhar para seu filho durante um segundo, talvez dois, antes que Petrona o arrancasse dos braços e o envolvesse rapidamente em um rebozo de algodão que havia trazido escondido.

“Não o olhes muito”, advertiu a cozinheira com voz quase gentil, “que depois a lembrança dói mais.”

Maria Josefa sentiu que algo dentro dela se rompia mais profundamente do que qualquer dilaceramento físico do parto. Mas não teve tempo de chorar porque do outro lado da casa os gritos de Dona Inés haviam alcançado um tom desesperado que não augurava nada bom.


Uma hora depois, quando o sol apenas começava a aquecer as pedras do pátio e os pássaros começavam a cantar sem saber que aquele dia ficaria marcado para sempre na memória daquela casa, Dona Inés deu à luz um menino morto.

O bebê havia nascido azul com o cordão umbilical enrolado ao redor do pescoço como uma serpente assassina. E não respondeu nem às palmadas desesperadas da parteira, nem à água benta que lhe jogaram na testa, tentando batizá-lo antes que sua alma escapasse para o limbo.

Dom Baltazar saiu do quarto com o rosto mais pálido do que os muros caiados, batendo na parede com o punho fechado repetidamente, até que os nós dos dedos sangraram. De dentro do quarto se ouviam os soluços quebrados de Dona Inés, um som que parecia vir de algum lugar muito abaixo da terra, das cavernas onde os antigos zapotecas enterravam seus mortos.

Foi nesse momento, em meio ao caos e ao desespero e ao luto que estava caindo sobre a casa como uma manta preta, que Petrona tomou a decisão que mudaria o destino de todas as vidas conectadas àquela casa.

Olhou para o menino morto que a parteira havia envolvido em linho branco. Olhou para os fundos onde Maria Josefa jazia sobre o petate com os olhos vazios, e o filho vivo escondido em um canto escuro. E calculou rapidamente as possibilidades.

Dona Inés precisava de um filho ou ficaria louca de dor. Dom Baltazar precisava de um herdeiro ou seu nome se extinguiria. O menino vivo precisava de proteção e comida, ou morreria em questão de dias. E Maria Josefa, a pobre Maria Josefa, já não tinha voz nem voto em nada.

A decisão foi tomada em menos de um minuto. Petrona lavou o filho de Maria Josefa com água morna, envolveu-o no linho branco que haviam preparado para o herdeiro dos Montemayor e o levou ao quarto onde Dona Inés chorava com os braços vazios.

“Senhora”, disse Petrona com voz firme, quase autoritária, empurrando a parteira para um lado. “Deus ouviu tuas orações. O menino está vivo. Estava fraco, quase sem respirar, mas o revivemos. A Virgem da Soledade fez um milagre por ti.”

E pôs o bebê que chorava com força e saúde nos braços trêmulos de Dona Inés.

A senhora olhou para o menino que tinha nos braços. Era mais escuro do que havia imaginado, muito mais escuro, com esse cabelo tão encaracolado que não se parecia com o de ninguém em sua família nem na de Dom Baltazar. Mas os recém-nascidos às vezes nasciam assim, não era certo? E depois clareavam. Não diziam as comadres que os bebês mudavam de cor nos primeiros meses? E o menino tinha os olhos de sua avó materna. Ou ao menos isso quis acreditar nesse momento de confusão e alívio e necessidade desesperada de que algo fizesse sentido.

Dom Baltazar entrou no quarto minutos depois, preparado para consolar sua esposa e organizar o funeral de seu filho morto. E, em vez disso, encontrou Dona Inés segurando um bebê vivo que mamava em seu peito com força. Seu rosto passou por uma série de expressões em questão de segundos: confusão absoluta, suspeita crescente e, depois de olhar para Petrona e depois para a parteira que mantinha os olhos fixos no chão, algo que parecia compreensão e cálculo.

“O que aconteceu aqui?”, perguntou com voz perigosamente baixa.

Petrona repetiu a história do milagre, de como o menino havia parecido morto, mas havia revivido com as orações e os cuidados. Dom Baltazar não era tolo. Havia vivido tempo suficiente na Nova Espanha para saber como as coisas funcionavam nas casas grandes, como as verdades incômodas eram enterradas nos fundos e como as mentiras necessárias se convertiam em realidades oficiais.

Olhou para sua esposa, que tinha o rosto iluminado pela primeira vez em anos beijando a cabeça do menino que segurava. Olhou para o bebê, indubitavelmente demasiado escuro, com traços que nenhuma genealogia espanhola ou crioula podia explicar facilmente, e depois olhou para Petrona, para a parteira e para o futuro que se abria em dois caminhos: um onde ele admitia que seu filho havia morrido e ficava sem herdeiro, objeto de pena e de murmúrios sobre a maldição de sua família, ou um onde aceitava este menino vivo e enfrentava as consequências de seus traços evidentes.

“É nosso filho”, disse finalmente com voz que não admitia discussão. “É Francisco Javier de Montemayor e quem disser o contrário será expulso desta casa e desta cidade. Todos me entenderam.”

A parteira assentiu rapidamente. Petrona baixou o olhar. O silêncio instalou-se na casa como um hóspede permanente que nunca iria embora.


A Maria Josefa não foi permitido ver seu filho durante semanas inteiras que se converteram em meses de tortura.

Enclausuraram-na no quarto dos fundos com o pretexto de que havia adoecido de febres puerperais e precisava de isolamento para se recuperar. Levavam-lhe tortilhas frias e atole ralo, mas ninguém lhe falava, ninguém respondia às suas perguntas sobre o bebê.

À noite, quando a casa ficava em silêncio, escutava o choro do menino que vinha do quarto principal e apertava o peito inchado de leite que ninguém lhe permitia dar, sentindo como o leite secava dolorosamente dia após dia.

Petrona vinha às vezes, sempre de madrugada, para lhe trocar os trapos ensanguentados e pôr-lhe compressas frias de ervas nos peitos para aliviar a inflamação e secar o leite mais rapidamente. “O menino está bem”, sussurrava sem olhá-la nos olhos. “Tem ama-de-leite, uma mulher do povo de Shokhootlán que perdeu seu próprio filho na semana passada. Dá leite abundante.”

Maria Josefa queria perguntar mil coisas. Se a ama-de-leite sabia a verdade, se mais alguém sabia, se seu filho se lembraria dela de alguma maneira, se algum dia poderia sequer tocá-lo. Mas as palavras ficavam-lhe presas na garganta como pedras demasiado grandes para engoli-las.

Quando finalmente lhe permitiram voltar às suas tarefas habituais, dois meses depois do parto, a casa havia mudado completamente. Dom Baltazar havia mandado batizar o menino numa cerimônia privada na capela de Santo Domingo, oficiada pelo pároco Frei Cristóbal com os padrinhos mais importantes que pôde conseguir: o alcaide-mor e sua esposa, gente tão respeitável que sua presença fazia qualquer pergunta incômoda parecer uma impertinência.

O menino foi inscrito nos registros paroquiais como Francisco Javier de Montemayor y Villareal, filho legítimo de Dom Baltazar e Dona Inés, nascido em 14 de abril de 1782. A letra do escrivão era perfeita, sem rasuras nem correções que pudessem despertar suspeitas. Tudo parecia estar em ordem, ao menos no papel.

Dona Inés passeava com o menino pelo pátio todas as tardes, mostrando-o às visitas que vinham conhecer o herdeiro dos Montemayor. As senhoras da sociedade oaxaquenha inclinavam-se sobre o berço fazendo comentários que podiam ser inocentes ou maliciosos, dependendo do tom.

“É muito moreninho seu filho, Inés”, dizia uma com um sorriso ambíguo. “Tem o cabelo tão encaracolado. Que curioso”, comentava outra enquanto tocava os caracóis do bebê com dedos curiosos.

Dona Inés respondia com as explicações que havia ensaiado: que seu bisavô materno havia sido andaluz muito tostado pelo sol do sul, que as crianças às vezes nasciam escuras e depois clareavam no primeiro ano, que o cabelo encaracolado vinha da família de sua avó, que tinha algo de sangue mourisco muito antigo. As explicações eram cada vez mais elaboradas e menos críveis.

Maria Josefa servia o chocolate espumoso e os buñuelos polvilhados com açúcar, mantendo os olhos fixos no chão, sentindo que seu coração se partia em pedaços cada vez que o menino chorava e ela não podia tomá-lo nos braços.


Os meses se passaram arrastando-se com a lentidão da cal, secando nas paredes recém-caiadas. Francisco Javier crescia forte e saudável, com as pernas gordas e redondas, com risos que enchiam o pátio. Dom Baltazar levava-o consigo à loja do portal, onde vendia os fardos de cochonilha aos comerciantes que vinham de Puebla e do México. Sentava-o em seu colo enquanto revisava os livros de contabilidade com sua pena de ganso e falava em voz alta sobre ensinar-lhe o negócio quando tivesse idade para entender números e negociações.

Mas Maria Josefa, que agora tinha acesso a toda a casa como camareira principal, notava como o olhar de Dom Baltazar se detinha às vezes no menino com uma expressão que não conseguia decifrar. Era culpa? Era dúvida? Era simplesmente resignação?

E notava como ele franzia a testa quando as visitas faziam comentários cada vez menos sutis sobre a cor da pele de Francisco Javier, que não clareava como Dona Inés havia prometido, mas que se mantinha escuro e bonito como madeira polida.

Uma tarde calorenta de agosto, enquanto Maria Josefa sacudia os móveis do escritório de Dom Baltazar, escutou vozes que vinham do outro lado da porta. Dom Baltazar estava falando com o pároco Frei Cristóbal, que havia vindo tomar chocolate e discutir as obras de caridade que a família patrocinava.

“Minha esposa está delicada dos nervos desde o parto difícil que teve”, dizia Dom Baltazar com voz cuidadosamente controlada. “Às vezes diz coisas que não fazem sentido, que não consegue se lembrar bem desses dias. O doutor diz que é normal depois de perder tanto sangue, é preciso ser paciente com ela e não dar importância a certas confusões.”

O pároco murmurou algo sobre os mistérios de Deus e as provas que enviava às famílias mais piedosas para fortalecer sua fé. Maria Josefa ficou paralisada atrás da porta, entendendo que Dom Baltazar estava preparando o terreno para desacreditar qualquer coisa que Dona Inés pudesse dizer sobre a verdade do nascimento.


Foi Petrona quem eventualmente contou a Maria Josefa o que as pessoas murmuravam no mercado do Pochote, onde as vendedoras de flores, pimentas e gafanhotos falavam livremente das coisas que as damas jamais mencionariam nas salas elegantes.

Que Dona Inés havia tido um filho com algum mulato ou negro, talvez o cocheiro ou algum trabalhador das fazendas de Dom Baltazar na costa. Que Dom Baltazar era um corno que fingia não notar para salvar as aparências. Que a casa dos Montemayor estava amaldiçoada pelos pecados secretos que haviam cometido e que, cedo ou tarde, Deus os castigaria.

Maria Josefa escutou esses rumores com uma mistura complexa de raiva, medo e algo parecido com satisfação amarga. Raiva porque seu filho estava sendo usado como prova de um pecado que não era o que haviam cometido realmente. Medo, porque se os rumores crescessem demais, Dom Baltazar teria que tomar medidas drásticas. E satisfação amarga, porque ao menos a verdade, embora deformada e mal interpretada, estava vindo à luz de alguma maneira.

“E se eu falar?”, perguntou Maria Josefa a Petrona uma noite enquanto lavavam os pratos de barro no lavadouro do pátio sob as estrelas que brilhavam indiferentes aos dramas humanos. “E se eu for ao pároco e contar tudo? E se eu disser ao alcaide que meu filho me foi roubado?”

Petrona parou de esfregar e olhou para ela com olhos que haviam visto demasiadas tragédias naquela casa. “Se falas, te matam ou te vendem para o sul, para as fazendas de cana de Veracruz, onde as escravas duram dois ou três anos antes de morrer de febres ou de tanto trabalho. E o menino, mandam-no para longe, muito longe, para um convento na Espanha ou para alguma fazenda remota onde ninguém o conheça e possa crescer sem rumores. Vão separá-lo de ti para sempre. É isso que queres?”

Maria Josefa sentiu que as lágrimas lhe queimavam os olhos, mas não as deixou cair. “Então, não há nada que eu possa fazer”, disse com voz vazia. “Só esperar e ver como meu filho cresce sem poder dizer-lhe que sou sua mãe.”

Petrona pôs uma mão áspera sobre seu ombro. “Às vezes”, disse suavemente, “a única forma de proteger alguém é ficar perto, mesmo que doa, mesmo que tenhas que viver com o silêncio.”


O ponto de ruptura chegou no inverno frio de 1784, quando Francisco Javier tinha 2 anos e meio e começava a falar em frases completas, combinando espanhol com palavras zapotecas que havia aprendido das criadas.

Dom Baltazar teve que viajar para a Cidade do México para resolver assuntos complicados de impostos e permissões com os oficiais reais da Real Fazenda. Estaria fora pelo menos três meses, talvez quatro, se as chuvas tornassem os caminhos intransitáveis. Deixou a casa a cargo de Dona Inés, com instruções estritas de manter tudo em ordem e de não permitir que os rumores continuassem a crescer.

Mas sem a presença autoritária de Dom Baltazar, Dona Inés começou a desmoronar como adobe molhado. Passava horas fechada na capela privada da casa, rezando o terço repetidamente, até que os dedos lhe sangravam de tanto apertar as contas de madeira. Deixou de comer apropriadamente, deixou de dormir bem. As criadas a escutavam chorar à noite chamando nomes que ninguém reconhecia.

Uma tarde chuvosa de fevereiro, quando o céu estava cinza como o estanho e a água caía sobre as telhas com um som constante e melancólico, Dona Inés chamou Maria Josefa ao seu quarto. Francisco Javier estava dormindo no berço grande que agora ocupava, com os punhos cerrados junto às bochechas e a boca entreaberta, respirando com aquele ritmo suave das crianças que dormem profundamente.

As duas mulheres ficaram de pé junto ao berço, olhando para o menino em silêncio durante o que pareceram horas. Finalmente, Dona Inés falou com voz trêmula que mal se ouvia sobre o som da chuva.

“Tu sabes, não sabes? Tu sabes que este menino não saiu do meu ventre, que meu filho nasceu morto e que Petrona me trouxe este outro menino. Tu sabes.”

Maria Josefa sentiu que o mundo parava completamente, que seu coração deixava de bater durante um segundo eterno. Havia esperado e temido este momento durante 2 anos e meio, mas agora que chegava não sabia o que dizer, o que fazer, como responder sem destruir tudo ou sem destruir a si mesma.

“Senhora”, começou, mas a voz lhe falhou.

Dona Inés voltou-se para ela com os olhos vermelhos de chorar. “Não me mintas. Já não posso viver mais com as mentiras. Eu vi como o olhas. Eu vi como choras em silêncio quando está doente ou quando se magoa. Eu vi como cantas canções nessa língua que não entendo. Canções que o acalmam quando mais nada funciona. Uma mãe conhece outra mãe, Maria Josefa. Os corpos reconhecem o que as palavras não podem dizer.”

Ficaram se olhando em silêncio, duas mulheres separadas por um abismo de casta e cor e poder, mas unidas por um segredo que as prendia mais fortemente do que qualquer corrente.

Finalmente, Maria Josefa assentiu uma vez, um movimento pequeno, mas definitivo da cabeça. “Sim”, disse com voz mal audível, como se as palavras lhe custassem algo precioso. “É meu filho. Nasceu na mesma noite que o seu. Eu estava no quarto dos fundos parindo sozinha com Petrona. E quando seu filho nasceu morto, Petrona pegou o meu e deu a você. Eu não sabia de nada até que foi tarde demais. Quando acordei, meu filho já não estava comigo.”

Dona Inés cobriu o rosto com as mãos e começou a soluçar, um choro profundo que sacudia todo o seu corpo. “Eu sabia”, repetia entre soluços. “Deus me perdoe. Eu sabia desde o primeiro momento. Quando Petrona o pôs em meus braços, soube que algo estava errado. Mas não quis ver, não quis saber porque se admitisse, tinha que admitir que havia falhado, que não pude dar a Dom Baltazar a única coisa que me pedia, um herdeiro de seu sangue, e preferi viver com a mentira a viver com esse fracasso.”

Maria Josefa não sabia o que dizer para consolar esta mulher que havia participado do roubo de seu filho, mas que agora estava destroçada pela culpa. Finalmente, com voz suave disse: “Você o criou bem, você o amou. Isso conta para algo, não? O amor também cria laços, ainda que não sejam de sangue.”


Essa conversa mudou algo fundamental entre elas. Dona Inés começou a permitir, timidamente no início e depois mais abertamente, que Maria Josefa passasse mais tempo com Francisco Javier. Pedia-lhe que o levasse ao jardim para que brincasse, que lhe ensinasse canções, que o pusesse para as sestas.

As duas mulheres desenvolveram uma rotina estranha e frágil que nunca era mencionada em voz alta. Durante o dia, perante o mundo, Dona Inés era a mãe e Maria Josefa a serva. Mas nas noites, quando a casa submergia em escuridão e silêncio, Maria Josefa ficava junto ao berço de Francisco Javier, contando-lhe histórias sussurradas sobre uma terra distante que ela mesma mal lembrava, sobre árvores enormes e rios largos, sobre gente que se parecia com ele.

Dona Inés o sabia e o permitia, ficando acordada em sua cama, escutando essas canções em língua estrangeira que acalmavam o menino melhor do que qualquer cantiga em espanhol.

“Quando for maior”, disse Dona Inés a Maria Josefa uma noite enquanto costuravam juntas junto ao braseiro, uma cena que teria sido impensável meses atrás. “Quando Dom Baltazar já não estiver neste mundo e eu for velha e ele for um homem feito e direito, lhe direi a verdade completa. Lhe falarei de ti, de quem és realmente. Lhe darei teu nome e ele decidirá o que fazer com essa informação. Mas até então, temos que protegê-lo, porque se a verdade sair agora, a única coisa que conseguiremos é destruir seu futuro e o teu.”

Maria Josefa assentiu, entendendo a lógica cruel dessa decisão. Na Nova Espanha, ser filho bastardo de uma escrava significava perder qualquer direito à herança, à educação, ao respeito social. Significava ser classificado como zambo ou mulato, com todas as restrições legais que essas categorias implicavam. Por mais doloroso que fosse o silêncio, talvez fosse a única maneira de dar a Francisco Javier uma oportunidade de vida decente.


Mas a paz frágil que haviam construído não estava destinada a durar. Quando Dom Baltazar regressou da Cidade do México na primavera de 1785, trouxe consigo seu sobrinho Diego de Montemayor, um jovem de 24 anos recém-chegado da Espanha, com ideias muito claras sobre como as coisas deveriam funcionar nas colônias.

Diego era alto, de olhos cinzentos e frios, e maneiras refinadas que ocultavam uma crueldade. A crueldade de quem acredita sinceramente que a ordem social é natural e justa e que qualquer desvio deve ser eliminado. Dom Baltazar havia-lhe oferecido um posto como administrador de seus negócios com a promessa de eventualmente herdar parte da fortuna familiar, já que Francisco Javier era ainda muito pequeno e o futuro era sempre incerto.

Diego notou de imediato as irregularidades daquela casa. Notou como Dona Inés tratava Maria Josefa com uma familiaridade inapropriada, quase como se fossem iguais. Notou como Maria Josefa tinha acesso ao quarto do herdeiro a qualquer hora. Notou, sobretudo, como o menino chamado Francisco Javier corria para Maria Josefa quando se magoava, como buscava seus braços para consolo antes que os de sua suposta mãe. E notou, porque era observador e suspeitoso por natureza, que o herdeiro dos Montemayor tinha traços que não se correspondiam com nenhuma genealogia espanhola ou crioula que ele conhecesse.

Começou a fazer perguntas discretas entre as criadas, oferecendo moedas de prata em troca de informação. Começou a revisar os registros da casa, procurando discrepâncias nas datas. E começou a escutar os rumores que circulavam pelo mercado e pelas pulquerías sobre a verdadeira origem do menino.

“Por que uma escrava dorme perto do quarto do herdeiro?”, perguntou a Dom Baltazar uma tarde enquanto revisavam os livros de contabilidade no escritório. “Por que minha tia Inés a trata com tanta consideração? Nas casas bem ordenadas de Sevilha, estas familiaridades não são toleradas, criam desordem e confusão nas hierarquias que Deus estabeleceu.”

Dom Baltazar respondeu com irritação mal dissimulada que Maria Josefa era uma serva confiável que havia atendido Dona Inés durante o parto difícil e que por isso merecia certo tratamento especial. Diego não pareceu convencido, mas deixou o tema por enquanto.

O que Diego não deixou foi sua vigilância. Começou a seguir Maria Josefa pela casa, anotando seus movimentos em um caderno pequeno que guardava no bolso de sua casaca. Contava as horas que passava com Francisco Javier. Observava os olhares que trocava com Dona Inés.

E uma tarde calorenta de junho, encontrou a prova que havia estado buscando.


Caminhava pelo jardim quando escutou vozes que vinham do outro lado do muro de buganvílias. Era Maria Josefa, sentada num banco de pedra com Francisco Javier, de 3 anos, em seu colo. O menino estava chorando porque havia caído e raspado o joelho. E Dona Inés, que estava dentro da casa atendendo a visitas, havia pedido a Maria Josefa que o consolasse.

Sem pensar nas consequências, com o instinto maternal que dois anos e meio de separação forçada não haviam podido apagar, Maria Josefa havia levantado sua blusa e posto o menino em seu peito. Já não tinha leite, obviamente, mas o gesto da amamentação continuava a ser um consolo poderoso para o menino que se acalmou imediatamente.

Diego ficou paralisado do outro lado do muro de flores, olhando a cena com uma mistura de horror, triunfo e algo parecido com repulsa moral.

“Então é verdade”, disse finalmente saindo de seu esconderijo com voz fria como gelo. “Os rumores do mercado são completamente certos. Este menino que carrega o sobrenome Montemayor não é filho de meu tio, é filho desta… desta escrava negra. E toda esta casa participou de um engano que ofende a Deus e às leis da Espanha.”

A acusação caiu sobre a casa como uma sentença de morte inapelável. Diego foi diretamente a Dom Baltazar, que estava revisando correspondência recém-chegada de Veracruz. Maria Josefa os escutou gritar através das paredes grossas de adobe, que de repente não pareciam tão grossas.

Diego exigia que o menino fosse reconhecido formalmente como bastardo, que se retificassem os registros paroquiais, que Maria Josefa fosse vendida imediatamente às plantações do sul, onde não pudesse causar mais problemas, que Dona Inés fosse enviada a um convento para expiar seu pecado de engano.

Dom Baltazar rugia que Diego não entendia nada, que era um peninsular arrogante, que não compreendia como as coisas funcionavam na Nova Espanha, que a honra da família estava em jogo e que se esta história se tornasse pública, seriam o escárnio de Oaxaca inteira e provavelmente perderiam seus contratos comerciais com as autoridades vice-reinais.

“O menino tem meu sobrenome. Está batizado nos registros de Santo Domingo. É legalmente meu filho perante a igreja e a Coroa”, gritava Dom Baltazar com um desespero que revelava o quanto havia investido emocionalmente em manter esta mentira. “O que tenha acontecido naquela madrugada de há 3 anos fica enterrado nesta casa. Ninguém fala disso nunca, sob nenhuma circunstância.”

Diego respondeu com frieza que a verdade sempre vinha à luz cedo ou tarde, que Deus castigava o engano e que ele não ia ser cúmplice desta farsa que manchava o sobrenome de sua família. “Se não retificar esta situação”, disse com voz ameaçadora, “eu mesmo irei ao bispo e ao alcaide-mor, e então não poderá controlar como a história é contada.”


Mas Diego não estava disposto a esperar a decisão de seu tio. Nessa mesma noite, foi ao pároco Frei Cristóbal na casa paroquial de Santo Domingo e contou-lhe suas suspeitas, respaldadas pelo que havia visto.

O pároco, que sempre havia tido dúvidas sobre o batismo de Francisco Javier, mas que havia preferido não fazer perguntas incômodas a uma família tão generosa com a igreja, sentiu-se obrigado agora a investigar formalmente. Convocou a parteira Jacinta, que havia assistido os dois partos daquela madrugada fatídica. A mulher, já anciã e doente, sob a pressão do interrogatório eclesiástico e a ameaça de excomunhão, confessou finalmente a verdade completa.

Sim, havia visto nascer dois meninos naquela noite, um morto e branco no quarto principal, outro vivo e muito escuro nos fundos. Sim, havia suspeitado desde o primeiro momento que o menino que Dona Inés tinha nos braços não era o que havia nascido de seu ventre. Mas Dom Baltazar a havia ameaçado de arruinar sua família se falasse, e ela havia precisado do dinheiro que lhe pagaram por seu silêncio.

O pároco Frei Cristóbal, escandalizado pela magnitude do engano, foi diretamente ao bispo de Antequera. O bispo, um homem chamado Frei Antonio Vergosa y Jordán, que levava muito a sério seu papel como guardião da moralidade pública, ordenou uma investigação formal. O assunto estava saindo completamente de controle, convertendo-se de um segredo familiar em um escândalo eclesiástico que podia ter repercussões legais graves.

O batismo de Francisco Javier podia ser anulado, o que significaria que legalmente nunca havia sido cristão, nunca havia sido reconhecido pela Igreja e, portanto, não podia herdar propriedades nem usar o sobrenome Montemayor. Era o tipo de escândalo que arruinava famílias inteiras na Nova Espanha.


Em meio a esta tempestade que crescia a cada dia, Dona Inés adoeceu gravemente. O médico, um homem sério chamado Doutor Paredes, que havia estudado na Universidade do México, disse que era uma febre nervosa complicada com melancolia profunda, mas todos sabiam que era o peso da mentira, do segredo, da culpa acumulada, o que finalmente a estava destruindo por dentro.

Ficava na cama negando-se a comer, chorando em silêncio durante horas. Uma noite, quando Maria Josefa entrou em seu quarto para lhe levar um chá de ervas que Petrona havia preparado, Dona Inés a tomou pela mão com dedos trêmulos e frios.

“Perdoa-me”, disse com voz rouca e quebrada. “Roubei-te a única coisa que tinhas neste mundo, teu filho, teu sangue. Pensei que estava salvando minha família, salvando meu casamento, cumprindo meu dever, mas só condenei a todos, a ti, a mim, a Francisco Javier, inclusive a Dom Baltazar. Tudo isso é minha culpa.”

Maria Josefa sentiu uma compaixão estranha e complexa por esta mulher que havia sido sua ama, sua cúmplice e, de certo modo, sua inimiga. “Você o amou”, disse suavemente. “Foi uma boa mãe para ele em muitos sentidos. Isso tem que contar para algo.”

Dona Inés negou com a cabeça fracamente. “O amor não apaga o roubo. E agora, quando tudo vai vir à luz da pior maneira possível, ele vai sofrer mais do que qualquer um de nós. Vai crescer sabendo que sua vida inteira foi uma mentira.”

Ficou calada por um momento, respirando com dificuldade. “No fundo do meu armário, na caixa de cedro que tem minhas iniciais, há um documento. É tua carta de liberdade, assinada por Dom Baltazar há dois anos. Obriguei-o a assiná-la quando finalmente admiti para mim mesma o que havíamos feito. Quando eu morrer, pega essa carta e foge com o menino se puderes. Fujam juntos. Construam uma vida longe daqui, onde ninguém conheça esta história.”

Dona Inés morreu três dias depois, na madrugada de 15 de julho de 1785, enquanto caía uma chuva suave que cheirava a terra molhada e a flores noturnas. Suas últimas palavras foram para Francisco Javier, a quem segurou brevemente em seus braços: “Perdoa tua mãe. Perdoa a todas as tuas mães.”


O funeral foi concorrido, mas estranhamente tenso. As famílias importantes de Oaxaca vieram apresentar suas condolências, mas os murmúrios e os olhares de soslaio revelavam que os rumores haviam se espalhado por toda a cidade.

Diego aproveitou o luto para aumentar a pressão sobre Dom Baltazar. Apresentou-lhe um documento legal preparado por um advogado, uma declaração formal de que Francisco Javier era filho ilegítimo de procedência desconhecida e devia ser excluído de qualquer herança da família Montemayor.

O bispo enviou uma carta oficial solicitando a anulação do batismo e uma investigação completa sobre o engano sacramental. Dom Baltazar, devastado pela morte de sua esposa e pressionado por todos os lados, estava à beira do colapso total.

Foi Petrona quem deu a Maria Josefa o último empurrão para a ação. Encontrou-a chorando no quarto dos fundos, o mesmo onde havia parido 3 anos atrás.

“Já não há nada que te prenda aqui”, disse a velha cozinheira com voz surpreendentemente gentil. “A senhora te deu a liberdade antes de morrer. O menino nunca será realmente teu enquanto estiver nesta casa rodeado de homens como Diego que vão converter sua vida em um inferno de suspeitas e humilhações. Mas lá fora, no mundo grande, talvez possam ser algo mais do que ama e escrava. Há povos nas serras zapotecas onde ninguém faz perguntas incômodas, onde as castas se misturam sem tanto escândalo, porque todos estão demasiado ocupados sobrevivendo para se preocuparem com a pureza de sangue.”

Maria Josefa encontrou a caixa de cedro no fundo do armário de Dona Inés, exatamente onde lhe havia dito. Dentro estava o papel com o selo oficial de Dom Baltazar e a assinatura de um escrivão, declarando-a livre da escravidão, com data de 20 de março de 1783. Também havia uma bolsa pequena de couro com 50 pesos em moedas de prata, mais dinheiro do que Maria Josefa havia visto junto em toda sua vida. E havia uma carta selada com cera vermelha, dirigida a Francisco Javier para “quando tiver idade de ler e entender”.

Maria Josefa guardou tudo em um embornal que Petrona lhe havia preparado com comida para o caminho.


Na noite em que Maria Josefa decidiu fugir, a casa estava submersa no caos dos preparativos para a missa de requiem oficial de Dona Inés, que seria celebrada no dia seguinte.

Dom Baltazar estava fechado em seu escritório bebendo aguardente catalã e revisando papéis legais repetidamente, como se pudesse encontrar alguma escapatória na letra miúda. Diego havia saído para se reunir com o advogado para discutir os próximos passos do processo. As criadas corriam de um lado para o outro, preparando velas pretas e arranjos de flores brancas.

Em meio a este caos, ninguém notou quando Maria Josefa envolveu Francisco Javier adormecido em seu melhor rebozo e saiu pela porta dos fundos que dava para o beco traseiro. Petrona lhe havia dado instruções detalhadas: “Pega o caminho do norte em direção a Etla, depois sobe a serra por trilhas que só os tropeiros conhecem. Há uma mulher em San Pablo, Etla, que se chama Juana Remedios”, havia dito. “É parteira e curandeira. Recebe a gente que foge de coisas que não se podem resolver com as autoridades. Diz que vais da minha parte, ela te ajudará.”

Maria Josefa caminhou pelas ruas escuras de Oaxaca com o menino adormecido contra seu peito, sentindo pela primeira vez em anos algo parecido com esperança. Passou por Santo Domingo, cujas torres se recortavam contra o céu estrelado. Passou junto às casas de famílias que nunca saberiam seu nome, mas que murmurariam sobre ela durante anos.

Chegou ao caminho real que conduzia ao norte, onde as árvores de pirul formavam túneis de sombra sob a lua crescente. Caminhou durante duas horas, afastando-se da cidade, com os pés doloridos, mas o coração mais leve do que estivera em 3 anos.


Mas não foi longe o suficiente. Diego, que desconfiava de tudo e de todos, havia posto guardas pagos nas saídas principais da cidade, antecipando exatamente este movimento. Sabia que Maria Josefa representava uma ameaça enquanto estivesse viva e livre, que podia contar a verdade em qualquer povoado e arruinar completamente o sobrenome Montemayor.

Capturaram-na perto do povoado de Santa María del Tule, junto ao ahuehuete milenário que tinha 2.000 anos vendo as tragédias humanas passarem sem se perturbar. Dois homens armados com facões a cercaram no caminho e, embora ela tentasse correr com o menino nos braços, não teve chance.

Arrastaram-na de volta a Oaxaca, acorrentada como se fosse uma criminosa perigosa, enquanto Francisco Javier chorava nos braços de um dos guardas que o carregava com desajeito. Levaram-na diretamente para a casa dos Montemayor, onde Dom Baltazar a esperava no pátio principal com o rosto desfeito.

O menino continuava chorando, chamando-a com aquela palavra que havia começado a dizer ultimamente: “Mamãe!”

Dom Baltazar olhou para Maria Josefa com olhos avermelhados pelo álcool e pelo choro. “Ias roubá-lo de mim?”, perguntou com voz quebrada que continha dor genuína, além de fúria. “Depois de tudo o que fizemos, depois de que te demos um lugar nesta casa, comida, proteção…”

Maria Josefa olhou-o diretamente nos olhos, algo que uma escrava nunca devia fazer, e respondeu com voz firme: “Não é roubo levar o que é teu. Esse menino saiu do meu corpo. Vocês o roubaram de mim primeiro.”


O julgamento informal foi realizado dois dias depois na sala principal da casa, porque o escândalo já era demasiado grande para ser tratado em privado, mas ainda não tanto para levá-lo aos tribunais oficiais, onde ficaria registrado permanentemente. Estavam presentes o alcaide-mor, Dom Fernando Maldonado, o pároco Frei Cristóbal e o representante do bispo, um cônego chamado Dom Vicente Guerrero, que tinha reputação de ser severo, mas justo.

Diego apresentou todas as suas provas, meticulosamente organizadas: o depoimento assinado da parteira Jacinta, as medições e descrições físicas de Francisco Javier que mostravam inequivocamente seus traços africanos, os testemunhos de várias criadas sobre o comportamento de Maria Josefa com o menino, os rumores documentados do mercado e a tentativa de fuga que provava, segundo ele, uma consciência culpada. Exigiu que Maria Josefa fosse castigada por roubo, tentativa de sequestro e participação em um engano sacramental. Exigiu que o batismo de Francisco Javier fosse anulado formalmente. Exigiu que o menino fosse declarado filho ilegítimo sem direitos de herança.

O pároco Frei Cristóbal falou sobre a gravidade do engano perante Deus, sobre como um sacramento havia sido profanado com mentiras, sobre como isso punha em perigo não apenas as almas dos envolvidos, mas a credibilidade da própria Igreja. O representante do bispo citou as leis canônicas sobre a legitimidade e os requisitos para o batismo.

Tudo parecia conduzir a uma sentença terrível que destruiria todos os envolvidos.

Foi então que Dom Baltazar finalmente se levantou de sua cadeira, apoiando-se pesadamente no bastão, porque parecia ter envelhecido 10 anos nos últimos dias. Olhou para cada um dos presentes com uma expressão de dignidade desesperada.

“Esse menino”, disse com voz firme que não admitia contradição, “é meu filho perante a lei do rei, perante Deus e perante este tribunal. Eu o batizei com meu sobrenome. Eu o criei durante 3 anos como meu herdeiro. Eu o amei como um pai ama seu filho. Se minha esposa, que Deus a tenha em glória, e esta mulher conspiraram para me dar um herdeiro quando o meu morreu no parto, fizeram-no movidas por misericórdia, não por maldade. Não é mais cristão criar um menino que de outra forma teria morrido nos fundos como um animal sem nome, sem batismo, sem futuro?”

Continuou falando com uma paixão que surpreendeu a todos. “O que propõem vocês? Que anulemos seu batismo e o convertamos em nada? Que o declaremos bastardo e o condenemos a uma vida de desprezo e limitações? E para quê? Para satisfazer alguma noção abstrata de pureza de sangue, que de todas as formas é uma mentira na Nova Espanha, onde todos carregamos misturas, ainda que nos neguemos a admitir. Eu conheço a verdade, ou a suspeitei durante 3 anos, e escolhi conscientemente aceitar este menino como meu. Essa é minha vontade como pai e como cabeça desta família.”

O alcaide-mor, Dom Fernando Maldonado, um homem pragmático que havia visto demasiados escândalos familiares em seus 20 anos de serviço, interveio com voz cansada. “A legitimidade do menino é, efetivamente, um assunto legal e canônico muito complicado. O batismo se realizou formalmente com testemunhas respeitáveis, inscrito corretamente nos registros paroquiais. Se começarmos a anular cada batismo onde há suspeitas de irregularidade na origem do menino, esvaziaríamos a metade das igrejas da Nova Espanha e criaríamos um caos legal impossível de gerenciar. Minha recomendação para evitar um escândalo público maior que prejudicaria toda a cidade é que o menino conserve o sobrenome Montemayor e sua legitimidade formal, mas que quando tiver idade apropriada seja enviado à Espanha para ser educado longe destes rumores.”

Voltou-se para Maria Josefa com expressão impenetrável. “Quanto a ti, a situação é diferente. Tecnicamente não cometeste nenhum crime que possamos provar. Não roubaste um menino alheio, mas sim tentaste levar o teu próprio. Mas também não podes simplesmente ficar aqui como se nada tivesse acontecido. Ofereço-te duas opções, e esta é a única vez que te será permitido escolher algo em tua vida. Primeira opção: aceita a carta de liberdade que Dona Inés te deixou. Pega o dinheiro e vai-te de Oaxaca imediatamente e para sempre sem o menino. Poderás construir uma vida livre em algum outro lugar onde ninguém conheça tua história. Segunda opção: renuncia formalmente à tua liberdade e fica nesta casa como propriedade de Dom Baltazar, com a promessa escrita e selada de não voltar a tentar fugir ou causar distúrbios. Se escolheres ficar, poderás ver o menino crescer, mas sempre como serva, nunca como mãe. O que escolhes?”

O silêncio na sala era tão denso que se podia escutar o zumbido das moscas contra as janelas. Maria Josefa olhou para Francisco Javier, que estava sendo segurado por uma criada no fundo da sala. O menino a olhava com esses olhos grandes e assustados, com lágrimas nas bochechas. Tinha 3 anos e meio, idade suficiente para sentir que algo terrível estava acontecendo, embora não pudesse entendê-lo completamente.

Maria Josefa pensou na liberdade, em poder caminhar pelo mundo sem correntes nem amos, em construir uma vida própria em algum povoado remoto da serra. Mas também pensou em deixar seu filho nas mãos de homens como Diego, crescendo sem nunca saber quem era sua mãe verdadeira, envergonhando-se talvez de sua própria pele escura, sem ter ninguém que lhe dissesse que essa pele era bonita, era valiosa, era a herança de povos que haviam sobrevivido a tragédias inimagináveis.

“Fico”, disse finalmente com voz clara. “Mas exijo algo em troca de renunciar à minha liberdade. Exijo que me seja permitido criar este menino até que complete 10 anos. Que me seja dada autorização formal para ensinar-lhe a ler e escrever. Que me seja permitido contar-lhe em privado quem é sua mãe verdadeira e de onde vem. Depois de completar esses 10 anos, Dom Baltazar pode fazer com ele o que considerar necessário, enviá-lo à Espanha, entregá-lo a tutores, o que for, mas esses 10 anos de sua infância são meus. Esse é meu preço por ficar e manter a paz nesta casa.”

Dom Baltazar olhou para o alcaide-mor, que assentiu lentamente. O acordo foi redigido pelo escrivão presente, um documento estranho e sem precedentes que especificava os termos exatos. Maria Josefa permaneceria como propriedade legal de Dom Baltazar de Montemayor, mas lhe seria concedido o papel especial de educadora e cuidadora principal de Francisco Javier até que o menino completasse 10 anos. Ser-lhe-ia permitido ensinar-lhe letras, números e compartilhar com ele aspectos de sua herança materna dentro de limites de decoro apropriados. Depois de completar os 10 anos, Dom Baltazar recuperaria o controle completo sobre a educação e o futuro do menino.

Todos assinaram o documento. Dom Baltazar, o alcaide-mor, o pároco como testemunha. E Maria Josefa, pôs sua marca, porque nunca lhe haviam ensinado a escrever seu nome.

Diego protestou furiosamente, argumentando que este acordo era uma abominação que perpetuava o escândalo. Mas Dom Baltazar, revitalizado por ter encontrado uma solução que lhe permitia conservar seu herdeiro, usou sua autoridade como cabeça de família para silenciá-lo. Mais ainda, descobriu convenientemente irregularidades nos livros de contabilidade que Diego havia estado gerenciando, discrepâncias que sugeriam roubo ou ao menos incompetência grave. Nunca se soube se estas irregularidades eram reais ou fabricadas, mas foram suficientes para que Dom Baltazar enviasse seu sobrinho de volta à Espanha no navio seguinte com uma carta selada dirigida a seus pais.

Diego partiu cheio de ressentimento, prometendo vingança, mas nunca regressou à Nova Espanha.


Os anos seguintes foram estranhos, precários e surpreendentemente ricos em maneiras que ninguém teria antecipado. Maria Josefa vivia num limbo legal e social que não tinha nome nas categorias reconhecidas da Nova Espanha. Não era exatamente livre, mas tampouco completamente escrava. Não era mãe perante a lei, mas exercia todos os papéis maternais. Não era tutora oficial, mas tinha autoridade educativa sobre o herdeiro de uma família proeminente.

Dom Baltazar lhe designou um quarto pequeno, mas decente, perto do principal. Deu-lhe acesso aos livros de sua biblioteca pessoal e lhe proporcionou o necessário para ensinar Francisco Javier.

Maria Josefa, que havia aprendido a ler e escrever em segredo, escutando as lições que Dona Inés recebia de um mestre particular anos atrás, descobriu que tinha talento para o ensino. Ensinou Francisco Javier as letras usando os livros de comércio de Dom Baltazar, formando palavras com grãos de milho sobre a mesa. Ensinou-lhe números fazendo-o contar as moedas de prata e cobre. Contou-lhe histórias sobre as terras de onde ela vinha, histórias que ela mesma mal lembrava, mas que reconstruía com fragmentos de memória e muita imaginação, sobre árvores tão altas que tocavam as nuvens, sobre rios tão largos que não se via a outra margem, sobre gente que caçava leões e entalhava máscaras de ébano. Falou-lhe em sua língua materna as poucas palavras que ainda conservava em algum canto de sua memória: palavras para mãe, para filho, para amor, para esperança.

Francisco Javier crescia sabendo que era diferente, que sua pele mais escura e seu cabelo encaracolado o marcavam como distinto dos outros meninos de famílias espanholas que via nas festas e cerimônias religiosas, mas também crescia sabendo que era amado de uma maneira profunda e complicada por duas mulheres. Uma que havia morrido dando-lhe um nome e uma posição social, outra que vivia ensinando-lhe quem era realmente.

Maria Josefa nunca lhe mentiu sobre sua origem. Quando teve idade suficiente para entender, explicou-lhe que havia nascido de seu corpo na mesma noite em que o filho de Dona Inés havia nascido morto, que por razões complexas de sobrevivência e misericórdia imperfeita havia sido criado como herdeiro dos Montemayor, que carregava duas heranças em seu sangue e que ambas eram valiosas, embora o mundo só reconhecesse uma.


Quando Francisco Javier completou 10 anos em abril de 1792, o mundo havia começado a mudar de maneiras que ninguém em Oaxaca podia ignorar completamente. As notícias da Revolução Francesa chegavam em navios e jornais da Europa, trazendo ideias perigosas e inebriantes sobre liberdade, igualdade, fraternidade. Na Nova Espanha, as reformas bourbônicas haviam relaxado algumas das restrições mais severas sobre as castas, permitindo que pardos e mulatos ocupassem cargos que antes lhes estavam vedados. Havia um sentimento no ar, ainda vago, mas presente, de que o velho ordem podia não ser eterno.

Dom Baltazar, cada vez mais doente com dores no peito e dificuldade para respirar, estava consciente de sua mortalidade. Mandou chamar seu advogado e modificou seu testamento de maneira que surpreendeu a todos os que eventualmente o leram. Deixou a maior parte de sua considerável fortuna a Francisco Javier, reconhecendo-o formalmente e sem ambiguidade como seu único herdeiro legítimo. Mas também incluiu uma cláusula extraordinária que libertava formalmente Maria Josefa da escravidão e lhe outorgava uma pensão anual de 20 pesos em prata. “Para que crie meu filho”, dizia o texto do testamento com uma honestidade brutal, “como o tem feito durante 10 anos com devoção maternal que supera qualquer vínculo de sangue.”

Dom Baltazar morreu no inverno de 1793, na mesma casa onde tantos segredos haviam nascido e sido enterrados. Francisco Javier, com 11 anos, herdou uma fortuna considerável, mas também um nome manchado por rumores persistentes e perguntas sussurradas.


Maria Josefa, agora livre de verdade pela segunda vez em sua vida, tomou uma decisão que surpreendeu a muitos. Escolheu ficar em Oaxaca em vez de fugir como havia tentado anos atrás. Usou sua pensão e as economias que havia acumulado de presentes ocasionais para comprar uma pequena casa perto do santuário da Virgem da Soledade, em uma rua onde viviam artesãos e comerciantes modestos de todas as castas imagináveis.

Ali instalou uma oficina de chocolate e doces tradicionais, usando as receitas que Petrona lhe havia ensinado durante tantos anos na cozinha dos Montemayor. Seu chocolate batido era famoso por sua espuma perfeita, seus doces de leite por sua textura suave como seda. O negócio prosperou modestamente, dando-lhe dinheiro suficiente para viver com dignidade.

Francisco Javier, que tecnicamente já não estava sob sua tutela segundo o acordo original, escolhia visitá-la todos os dias depois de terminar suas lições com os tutores que os testamenteiros de Dom Baltazar haviam contratado. Aprendia o ofício do chocolate, moendo os grãos de cacau no metate, como ela lhe ensinava, batendo a espuma com o molinillo até que os braços lhe doessem. E falavam sobre tudo. Falavam sobre quem ele era realmente, sobre as injustiças do sistema de castas, sobre como navegar um mundo que o julgaria por sua aparência antes de conhecer seu caráter.

Os anos se passaram e Francisco Javier cresceu num jovem inteligente e consciente das complexidades de sua posição. Tinha acesso à fortuna dos Montemayor, mas também carregava a marca visível de sua origem em sua pele e seus traços. Lia vorazmente, especialmente os escritos que chegavam de forma clandestina da França e dos Estados Unidos sobre igualdade e direitos naturais.

Maria Josefa o via crescer com uma mistura de orgulho e medo, sabendo que esse jovem não se conformaria em simplesmente administrar negócios e manter as aparências.


Quando estourou a guerra de independência em setembro de 1810 com o Grito de Dolores do Padre Hidalgo, Francisco Javier tinha 28 anos e havia decidido o que fazer com sua vida. Havia lido o decreto de Hidalgo que abolia a escravidão. Havia lido as proclamações de Morelos sobre a igualdade de todas as castas. Sentia no mais profundo de seu ser que essa guerra era também sua guerra, que estava sendo travada não apenas pela independência da Espanha, mas pelo direito de gente como ele e como sua mãe a existir plenamente no mundo.

Antes de se juntar às forças insurgentes, sob o comando do Cura Morelos, que operavam no sul da Nova Espanha, foi ver Maria Josefa uma última vez. Ela tinha já mais de 50 anos, o cabelo completamente branco e as mãos deformadas por anos de moer cacau e bater chocolate. Mas seus olhos continuavam agudos e sua mente clara. Sentaram-se no pequeno pátio de sua casa sob o laranjeira que havia plantado quando comprou a propriedade, enquanto o cheiro do chocolate se misturava com o aroma das flores de laranjeira.

“Vou lutar”, disse Francisco Javier, “para que nenhuma mãe tenha que viver o que tu viveste, para que nenhum menino tenha que se perguntar se merece existir pela cor de sua pele, para que as mentiras deixem de ser necessárias para sobreviver.”

Maria Josefa o abraçou sentindo o corpo alto e forte desse homem que havia sido seu bebê roubado, seu filho recuperado pela metade, sua esperança feita carne. “Já não me perdeste”, disse com voz quebrada pela emoção. “Estou aqui, sempre estive aqui. E ainda que vás lutar, ainda que corras todos os perigos, levas comigo algo que ninguém pode tirar-te: a verdade de quem tu és.”


Francisco Javier sobreviveu à guerra, embora regressasse com uma perna ferida por uma bala realista durante o cerco de Oaxaca em 1813, ferida que o faria mancar o resto de sua vida. Sobreviveu às derrotas, às traições, aos anos escuros quando a causa insurgente parecia perdida. Sobreviveu até ver a consumação da independência em 1821, embora não exatamente nos termos que Hidalgo e Morelos haviam sonhado.

Regressou a Oaxaca com medalhas que ninguém das famílias antigas queria reconhecer, mas também com convicções que nenhuma derrota havia conseguido quebrar. Usou sua herança dos Montemayor, que havia administrado prudentemente durante sua ausência, para estabelecer uma escola gratuita para crianças de todas as castas em uma casa grande que comprou perto do mercado. Chamou-a Escola Maria Josefa, desafiando abertamente os murmúrios que ainda circulavam sobre sua origem depois de 40 anos.

Quando as pessoas lhe perguntavam por que esse nome, ele respondia com orgulho que não dissimulava: “Porque Maria Josefa me ensinou a lição mais importante de minha vida: que o amor verdadeiro não tem nada a ver com o sangue que corre pelas veias, mas sim com o sacrifício que se faz pelo outro, que a maternidade é um ato de vontade, não apenas um acidente da natureza.”

A escola aceitava todas as crianças, sem importar se eram filhos de espanhóis pobres, de mestiços, de índios zapotecas, de mulatos ou pardos. Francisco Javier ensinava pessoalmente a ler e escrever aos mais avançados, usando os mesmos métodos que Maria Josefa havia usado com ele décadas atrás. Ensinava que a educação era o caminho para a verdadeira liberdade, mais duradoura do que qualquer decreto político. E nas paredes da escola pendurou um retrato que havia mandado pintar de Maria Josefa, baseado em descrições e em sua própria memória. Uma mulher de pele escura e olhar sereno, segurando um livro aberto nas mãos.


Maria Josefa morreu em paz em 1825, em sua pequena casa perto da Soledade, rodeada pelo cheiro do chocolate que havia sido seu sustento durante mais de 30 anos de liberdade. Morreu sabendo que seu filho havia se convertido em um homem que honrava sua memória não com silêncio nem vergonha, mas com ação e orgulho.

Francisco Javier a enterrou no panteão da família Montemayor, em um túmulo junto ao de Dona Inés e Dom Baltazar, desafiando as objeções furiosas dos primos distantes que ainda existiam. Na lápide, fez gravar em letras grandes:

MARIA JOSEFA, MÃE VERDADEIRA. 1768-1825. NOS ENSINOU QUE A MATERNIDADE É UM ATO DE VONTADE, NÃO DE NATUREZA. SEU AMOR SOBREVIVEU AO ROUBO, AO SILÊNCIO E À INJUSTIÇA. DESCANSA NA PAZ QUE TE FOI NEGADA EM VIDA.

A Escola Maria Josefa continuou funcionando durante décadas, geração após geração, educando centenas de crianças que de outra forma não teriam tido acesso às letras. Tornou-se uma instituição respeitada de Oaxaca, embora alguns dos velhos oligarcas nunca a reconhecessem formalmente.

Francisco Javier viveu até 1856, vendo os inícios da reforma liberal, vendo como as leis finalmente começavam a reconhecer a igualdade legal que ele havia lutado para conseguir. Morreu sabendo que a história de sua mãe, embora dolorosa, não havia sido em vão.


Nas noites, quando o vento sopra dos morros zapotecas e faz ranger as telhas velhas das mansões coloniais de Oaxaca, quando a lua ilumina as ruas de paralelepípedos, onde Maria Josefa caminhou acorrentada e depois caminhou livre, ainda se pode escutar o eco daquela madrugada de abril de 1782, quando dois meninos nasceram e só um pôde ficar. Quando uma casa inteira escolheu o silêncio sobre a verdade, quando uma mulher escrava se converteu em mãe através da dor mais profunda, do roubo mais cruel e, finalmente, de uma redenção imperfeita, mas real, que transformou o sofrimento em legado e o segredo em história.

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