João Silva: O escravo de 18 anos castrado para agradar sua senhora — ela o chamava de “Anjo Negro”

O vento soprava leve sobre as colinas de Minas Gerais, espalhando o cheiro doce do café recém-colhido. No coração da fazenda Santa Clara, o silêncio escondia segredos que ninguém ousava dizer em voz alta. Lá, entre o canto distante dos galos e o estalar das carroças, um nome sussurrado com medo ainda ecoava: João Silva, o jovem escravo que a Sinhá chamava de “Anjo Negro”.

Nascido em 1867, João não era como os outros. Filho de Benedita, a mucama-chefe da Casa Grande, crescera cercado por palavras que os escravos raramente ouviam: “pureza”, “salvação”, “destino”. Desde pequeno, chamava atenção por seus olhos grandes e sua fala mansa. Era alto, esguio, com a pele clara demais para um filho da senzala. Alguns diziam que o coronel Joaquim Mendonça, dono da fazenda, era seu verdadeiro pai. Outros apenas desviavam o olhar — porque em Santa Clara, saber demais podia custar caro.

Quando o coronel morreu subitamente em 1884, a fazenda ficou sob o comando da viúva, Dona Eulália Mendonça. Tinha trinta e quatro anos, alma devota e coração dominado por uma fé que queimava como febre. Usava vestidos de luto e rezava mais do que dormia. Diziam que falava com anjos à noite, e que Deus lhe confiara uma missão: purificar as almas impuras sob seu teto.

Numa manhã de março de 1885, ela chamou Benedita à Casa Grande.

— Seu filho está crescendo — disse, com a voz suave demais. — Deus me revelou que ele foi escolhido.
— Escolhido pra quê, Sinhá? — perguntou Benedita, tentando esconder o medo.
— Para servir. De forma especial.

Naquele dia, João foi retirado da senzala e levado para os aposentos da senhora. Dormia num quarto pequeno, atrás do oratório, e servia nas orações, nas leituras e nos cuidados da casa. Para todos, era uma promoção. Para ele, era o início do fim.

Dona Eulália observava o rapaz com uma mistura de devoção e algo mais escuro, algo que ela mesma chamava de “provação divina”. Em seu diário, mais tarde encontrado escondido numa parede da igreja, ela escreveu:
“Deus me mostrou a beleza de João para testar a minha fé. Se eu conseguir purificá-lo, talvez salve a mim mesma.”

As semanas passaram, e as fronteiras entre fé e loucura começaram a desaparecer. João lia versículos sobre sacrifício enquanto ela o observava em silêncio. Quando ele sorria, ela via pecado. Quando corava, via tentação. Cada gesto do jovem era interpretado como uma ameaça espiritual.

— Você entende, meu anjo negro? — dizia ela, com ternura doentia. — A beleza é uma maldição. Deus quer te libertar dela.
— Se é vontade de Deus, Sinhá, eu aceito. — respondeu João, sem compreender o que o destino lhe preparava.

O padre Antônio Ferreira, confessor da família, começou a desconfiar das intenções de Dona Eulália. Recebia cartas inquietantes. Numa delas, ela pedia bênçãos para “rituais de purificação corporal”. O padre tentou adverti-la.
— Filha, a alma se purifica pela fé, não pela mutilação.
Ela sorriu.
— E Abraão, padre? Não estava disposto a sacrificar o próprio filho quando Deus mandou?

A partir daquele dia, o padre nunca mais falou contra ela.

Em julho, chegaram encomendas estranhas da capital: bisturis, pinças, ervas anestésicas, ópio. Também chegou um homem, Dr. Sebastião, contratado em segredo. Ninguém sabia de onde vinha. Tinha olhos frios e mãos firmes. Ficou hospedado numa casa afastada, e apenas Dona Eulália o visitava.

Enquanto isso, Benedita rezava todas as noites por seu filho. Um dia, ajoelhou-se diante da patroa.
— Sinhá, ele é só um menino. Deixe que sirva de outro jeito.
— Benedita — respondeu Eulália, erguendo o olhar como quem fala em nome do céu —, você não entende o plano divino. Deus o escolheu. João será purificado.

Benedita chorou.
— A senhora chama de purificação o que é castigo.
— O que é dor para você é salvação para mim.

No dia 18 de agosto de 1885, o sol se pôs mais cedo sobre Santa Clara. Os escravos foram reunidos no terreiro. Dona Eulália, vestida de branco, ergueu um crucifixo.
— Hoje, um de vocês receberá a graça da pureza — anunciou. — João Silva foi escolhido por Deus para se tornar sagrado.

Benedita caiu de joelhos, gritando. Ninguém se atreveu a ajudá-la.

Quando a noite caiu, João foi levado à sala que chamavam de “capela nova”, nos fundos da Casa Grande. Era uma sala pequena, sem janelas, com paredes de pedra e cheiro de incenso. No centro, uma mesa coberta com lençóis brancos. Sobre ela, instrumentos de metal, cordas de seda e uma lamparina acesa.

— Não tenha medo, meu anjo — sussurrou Eulália, acariciando o rosto dele.
— Estou pronto, Sinhá.
— Deus te verá puro.

O procedimento durou quatro horas. Gritos cortaram o silêncio da noite, depois gemidos, depois nada. Às duas da manhã, Dona Eulália saiu da sala com o vestido manchado de sangue e o olhar sereno.
— Está consumado. — disse. — João foi purificado.

Dr. Sebastião partiu antes do amanhecer, levando uma maleta e um saco de ouro. Nunca mais foi visto.

Três dias depois, João apareceu caminhando pelo terreiro. Vinha devagar, com os olhos vazios. Olhou para a mãe e não a reconheceu.
— João, meu filho! — gritou Benedita, correndo até ele.
Ele apenas respondeu:
— Estou limpo, mãe. A Sinhá me salvou.

O rapaz sobreviveu fisicamente, mas sua mente ficou presa no mesmo instante em que o bisturi o tocou. Tornou-se uma sombra obediente, incapaz de rir, chorar ou sonhar. Dona Eulália o chamava de “meu anjo perfeito”. Ele a seguia em silêncio, como uma alma sem corpo.

Dois anos depois, em 1887, João morreu de febre alta. No registro, constava apenas “morte natural”. Nenhuma palavra sobre a verdade.

Benedita cuidou dele até o fim. Quando a abolição chegou, recusou a liberdade.
— De que adianta ser livre se meu filho ainda é prisioneiro? — dizia.

Permaneceu na fazenda até morrer, dez anos depois, com o mesmo peso no coração: o de ter amado demais e podido fazer de menos.

Dona Eulália viveu até 1923. Morreu sozinha, murmurando nomes de anjos que só ela via. Nos últimos anos, dizia conversar com João todas as noites.
— Você entende agora, meu anjo negro? — sussurrava. — Eu te salvei.

Décadas mais tarde, quando a Casa Grande foi demolida, encontraram atrás de uma parede a sala selada. Dentro, o crucifixo, as cordas e manchas antigas no chão. Também encontraram o diário de Eulália. Na última página, uma frase escrita com sangue:
“Ele agora é puro. Deus me perdoará, porque o amor também é uma forma de loucura.”

E assim, entre o pó do café e o silêncio das colinas mineiras, a história de João Silva — o escravo que virou anjo à força — continuou viva apenas nas sombras.

Alguns juram que, em certas noites de agosto, ainda se ouve uma voz sussurrando perto das ruínas da fazenda:
— Estou limpo, mãe. A Sinhá me salvou.

Mas o vento, cúmplice antigo de todos os segredos, leva as palavras embora antes que alguém possa acreditar.

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