A presença do presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta, no estúdio I da GloboNews, não foi apenas uma entrevista; foi uma jogada política calculada, um ato de desespero articulado para pacificar uma crise que ameaçava implodir sua já combalida credibilidade. O tema central era o controverso Projeto de Lei Antifacção, que, após uma tramitação relâmpago e carregada de acusações de má-fé, estava prestes a ser votado. Motta sabia que precisava desarmar a narrativa que o colocava no centro de uma conspiração para blindar corruptos e enfraquecer a Polícia Federal (PF).
O que se desenrolou no ar foi uma tensa sessão de explicações e rebatidas, onde o presidente da Casa buscou, a todo custo, dissociar seu nome da agenda do caos e da impunidade, e, em vez disso, vender o PL — em sua quinta versão — como a “resposta mais dura que o Congresso Nacional irá dar no combate ao crime organizado no Brasil.” O cerne da sua defesa repousava em três pilares: a retirada do dispositivo mais perigoso (a equiparação de terrorismo), a garantia do papel inegociável da PF, e a demonstração de humildade política em corrigir os erros que o relator, Guilherme Derrite, havia introduzido. Mas o que Motta revela, por trás da fachada de “transparência democrática,” é o quanto o Centrão foi acuado pelo Judiciário, pela mídia e pelo próprio Governo Lula, forçando correções que alteraram dramaticamente o destino do projeto.
/https://i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_59edd422c0c84a879bd37670ae4f538a/internal_photos/bs/2025/w/L/fNGFsfSUmz39ikJ2FQQA/img20250806223400639-1-.jpg)
A Batalha da Lex: A Quinta Versão e a Retirada do Terrorismo
Motta começou a entrevista confirmando o óbvio: o projeto seria votado naquele dia, após uma reunião final de líderes para que Derrite apresentasse as “últimas modificações.” O fato de o texto já estar na quinta versão — uma anomalia mesmo para o complexo processo legislativo brasileiro — foi defendido por Motta como uma prova de democracia e diálogo. “Isso é natural do processo legislativo,” disse ele, alegando que as sugestões vieram do Governo Federal, do Senado, dos governadores, dos secretários de segurança. Contudo, na prática, essa dança das cadeiras com o texto era a demonstração pública do conflito interno e da pressão externa insustentável.
O ponto crucial, e que mais inflamava a militância bolsonarista, era a reivindicação de equiparar organizações criminosas ao terrorismo. Esta ideia, caótica e desastrosa, faria o Brasil correr o risco de ser classificado internacionalmente como um ninho de terroristas, derrubando notas de crédito e afugentando investidores — o famoso “Risco Brasil”. Motta confirmou a retirada deste ponto: “Isso não está no texto, André. […] O relator entendeu que o melhor caminho seria criar uma nova lei, que nós estamos chamando de marco legal de enfrentamento ao crime organizado”.
Essa retirada não foi um mero ajuste; foi uma rendição estratégica para salvar o projeto da total inviabilidade jurídica e econômica. Motta prometeu um “Marco” com penas mais duras (chegando a 66 anos para chefes de facção), mas, ao fazer isso, ele desautorizou publicamente a ala mais radical que via na medida o caminho para criminalizar movimentos sociais e grupos políticos rivais. A militância que “espumava de raiva,” conforme o título do vídeo, era justamente a que se sentia traída por essa capitulação.
O Nó Desfeito da Polícia Federal: Blindagem ou Negociação?
O ponto mais quente da entrevista, e que expôs a fragilidade da posição de Motta, foi a insistência dos entrevistadores sobre a tentativa de limitar a atuação da Polícia Federal e blindar governadores de investigações.
Motta negou veementemente a acusação de blindagem, afirmando que “Nunca aconteceu o interesse […] da Câmara dos Deputados em tirar o poder da Polícia Federal”. Ele recorreu a uma defesa técnica para explicar a polêmica:
A Origem do Conflito: A primeira versão do texto mexia na Lei Antiterrorismo, um crime de atribuição exclusiva da PF.
A Invasão de Competência: Ao modificar essa lei, Derrite foi forçado a incluir no texto a apuração por parte dos Ministérios Públicos e polícias estaduais, pois os crimes de facção também são investigados nos Estados.
A Solução Técnica: “Na hora em que a gente decide não mexer na lei antiterrorismo, tudo isso cai por terra, porque para nós o papel da Polícia Federal é inegociável”.
Ao garantir que a PF é um “patrimônio do Brasil” e que seu papel é “innegociável”, Motta não só buscou a paz com a instituição, mas também se alinhou, ainda que indiretamente, à posição do Governo Lula e do Supremo Tribunal Federal, que já haviam deixado clara sua fúria com a tentativa de enfraquecimento da PF em um momento de grandes investigações (como Carbono Oculto e Banco Master). A tática de Motta foi isolar o erro como uma falha técnica do relator, rapidamente corrigida, e não como uma intenção política da Casa.
Vitória Técnica da Justiça: O Perdimento Extraordinário de Bens
Um dos maiores indícios de que o projeto foi “melhorado” sob pressão política e técnica veio na discussão sobre o perdimento extraordinário de bens. Esta proposta do governo, crucial para sufocar financeiramente o crime organizado, permite o bloqueio e confisco de bens suspeitos durante a fase de inquérito, antes mesmo do trânsito em julgado da sentença, transferindo o ônus da prova ao criminoso.
Valdo Cruz levantou a crítica de que a versão de Derrite havia transferido esse perdimento para o trânsito em julgado, o que beneficiaria o crime organizado. A resposta de Motta foi incisiva e representou um importante recuo tático: “Nós estamos agora nessa última versão retomando a proposta inicial do governo e permitindo sim durante a fase de inquérito já o bloqueio e perdimento desses bens”.
Motta alegou que “dizem” (em referência aos críticos) não sustentam o que estão dizendo e que o relator corrigiu o texto para incluir o perdimento na fase de inquérito, “a ser pedido inclusive pelo delegado”. Essa correção, feita nos minutos finais da negociação, é uma vitória inegável para as forças de segurança e para o Ministério Público, e uma concessão fundamental de Motta para mostrar que a Câmara “não tem compromisso com o erro” e, mais importante, que não está tentando proteger os bens ilícitos de criminosos.
A Polêmica do FUNAD: O Fundo de Segurança e o Papel das Estaduais
Outra questão levantada foi a divisão dos recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública (FUNAD), que, segundo a crítica da PF, estava sendo enfraquecida. Motta negou o interesse em “tirar dinheiro de absolutamente ninguém,” mas sim em reconhecer o papel das polícias estaduais, que, pela sua capilaridade, muitas vezes têm mais atuação do que a PF.
A nova regra de divisão proposta é:
Recursos recuperados por polícias estaduais sozinhas vão para o Fundo Estadual.
Recursos recuperados em atuação conjunta (PF e Polícias Estaduais) são divididos.
Recursos recuperados só pela PF vão para o Fundo Nacional de Segurança Pública.
Motta defendeu que essa é uma forma de estimular e reconhecer o trabalho das Polícias Civil e Militar, que estão nas ruas e merecem o financiamento, e que não há “interesse de tirar dinheiro da Polícia Federal”. Essa explicação, embora tecnicamente plausível, surge em meio a um debate de fundo sobre a centralização de poder da PF e a capacidade de investigação de crimes de colarinho branco, o que manteve o ceticismo na mesa da entrevista.
O Combo de Escândalos: Blindagem Vencida vs. Agenda de Interesse Público
O clímax da entrevista ocorreu quando os jornalistas tentaram enquadrar o PL Antifacção em um “combo” de propostas controversas da Câmara, incluindo a PEC da Blindagem (que permitiria intervenção nas diretorias de autarquias como o Banco Central e que foi arquivada pelo Senado) e a suposta tentativa de limitar a PF. O jornalista Flávio Oliveira, por exemplo, conectou a agenda parlamentar ao escândalo do Banco Master e a preocupações com desmandos na área financeira.
Motta, visivelmente incomodado com a correlação, desarmou o argumento insistindo que a imprensa precisa analisar o que foi aprovado, e não as propostas. “Você passa parecendo que a Câmara aprovou intervenção no Banco Central. Você passa que a Câmara aprovou limitação do poder da Polícia Federal e nada disso foi aprovado”.
Ele defendeu que a Câmara tem “compromisso com a segurança pública do país”, citando mais de 40 propostas na área, e que a aprovação da PEC das Prerrogativas (também arquivada pelo Senado) foi uma resposta a “interferências com relação ao exercício do mandato parlamentar,” como deputados processados por “crimes de opinião”.
Ao defender que a Câmara tem a “humildade de reconhecer quando há algum erro”, Motta tentou resgatar a imagem da Casa como um poder responsável. No entanto, a necessidade de tantas versões e as correções de última hora, sob o peso da opinião pública e da articulação do Governo Lula, demonstram que, embora a Câmara tenha evitado o desastre institucional, foi o medo do STF e a pressão política que a forçaram a recuar do seu plano original de enfraquecimento. O resultado é um projeto melhor, mas a custo de expor a má-fé e a fragilidade do Centrão no jogo do poder
As Medidas de Choque e a Mensagem Final
Para Motta, o sucesso do dia era cimentar a narrativa da “resposta mais dura.” No texto final, ele garantiu, entraram medidas de impacto social e repressivo:
Fim da visita íntima para chefes de facções criminosas.
Gravação das tratativas com advogados nos presídios.
Chefes de facções criminosas serão transferidos diretamente para presídios federais.
Aumento das penas (20 a 40 anos, até 66 para líderes).
Novas tipificações criminais: novo cangaço, domínio de cidades, obstrução de vias, cootação de menores.
Essas medidas, inegavelmente duras e populares, são a principal moeda de Motta para justificar a tramitação turbulenta. Ele concluiu, dirigindo-se ao eleitor: “O cidadão que está sendo roubado nesse momento nas ruas […] não está interessado em saber qual é o nome da lei que nós estamos dando. O que ele quer é uma resposta ao crime”.
A entrevista serviu para desmantelar as acusações mais graves, mas confirmou que a Câmara se move por pressões. Motta saiu do estúdio com a tarefa de aprovar o texto e tentar limpar sua imagem. No entanto, a sombra da suspeita – a tentativa de blindagem, os interesses por trás das emendas – permanece. A vitória, no final, é da força institucional que conseguiu forçar a correção e evitar o caos, mais do que da vontade inicial dos líderes da Câmara.