
O caso de Heleninha não começa no verão quente de 1952; ele germina muito antes, nas sombras e nos segredos de uma cidade que fingia ser pacata. Ribeirão Preto, naquela época, não era a potência econômica que viria a se tornar, mas sim uma colmeia de aparências, onde o dinheiro do café e da cana comprava não apenas o luxo, mas o silêncio. A cidade respirava os ares provincianos, onde a lei e a justiça frequentemente se curvavam à conveniência das famílias influentes, e os segredos, os mais terríveis, ficavam enterrados sob camadas de cumplicidade social, sustentados pelo medo e pela indiferença fria.
Helena Maria Nogueira, chamada por todos, com um carinho que só a tragédia tornaria eterno, de Heleninha, trabalhava no Bar Riviera. O Riviera não era um lugar de luxo; era um purgatório de luz fraca e fumaça densa, um estabelecimento modesto localizado no quadrilátero central da cidade, a duas quadras da Praça Quinze de Novembro, o coração da hipocrisia ribeirão-pretana. Sua fachada pintada de um verde desbotado, parecia absorver a luz da rua, exalando um ar de melancolia.
Os relatos policiais, apesar de escassos e incompletos – ou talvez, convenientemente mutilados –, indicam que na noite de 14 de fevereiro de 1952, por volta das 21 horas, Heleninha serviu diversas mesas, como fazia todas as noites. Segundo testemunhas, a jovem de 23 anos mantinha sua habitual discrição, uma armadura de sorrisos contidos e olhares baixos. Era conhecida por sua eficiência quase robótica e por jamais se envolver em conversas demasiado íntimas com os clientes, uma proteção psicológica que a diferenciava das outras garçonetes.
Filha de Sebastião Nogueira, um pequeno comerciante do mercado municipal, um homem que já carregava o peso de um coração frágil e doente, e de Dona Conceição, uma costureira que, ironicamente, atendia algumas das famílias mais abastadas da cidade, costurando o tecido de suas mentiras sociais. Heleninha havia conseguido o emprego no Bar Riviera graças à recomendação de um tio distante que conhecia o proprietário, o senhor Antenor Correia. O bar não era considerado um local de má fama, mas também não figurava entre os estabelecimentos frequentados pela elite; sua clientela consistia principalmente de trabalhadores do comércio local, alguns estudantes da faculdade de medicina e, ocasionalmente, viajantes de passagem.
A decoração era simples, quase sufocante. Mesas de madeira escura que pareciam absorver a luz, algumas cadeiras desemparelhadas e gastas, um balcão comprido com banquetas de couro rasgado, e um pequeno palco onde aos sábados apresentavam-se músicos locais, cujas canções de amor e desilusão pareciam apenas amplificar a solidão do lugar. Nas paredes, fotografias em preto e branco mostravam cenas da cidade em décadas anteriores, quando os cafezais ainda dominavam a paisagem e a promessa de progresso era apenas um sussurro distante, uma ironia histórica para as almas perdidas que ali bebiam.
A família Nogueira vivia em uma casa modesta no bairro Vila Tibério, há aproximadamente 20 minutos de caminhada do centro, uma caminhada que Heleninha fazia todas as noites sob o medo e o cansaço. Era uma construção simples, com três cômodos e um pequeno quintal, onde Dona Conceição cultivava ervas para chás e temperos. Os vizinhos descreviam os Nogueira como reservados, mas cordiais, gente de bem, a descrição mais perigosa na boca da província. Sebastião raramente era visto depois do expediente no mercado, preferindo o conforto de sua casa e o som abafado de seu rádio Philips, que considerava seu bem mais precioso. Dona Conceição dividia seu tempo entre a máquina de costura e os afazeres domésticos, tecendo a sobrevivência da família. Quanto a Heleninha, era considerada uma moça recatada e trabalhadora. Ninguém suspeitaria que aquela família aparentemente comum guardava segredos que a cidade, e a elite que a regia, preferiria não conhecer.
E o horror começou a vir à tona naquela noite de 14 de fevereiro, quando algo incomum aconteceu no Bar Riviera. Segundo o depoimento de Antônio Ferreira, um dos clientes regulares, Heleninha parecia ligeiramente diferente naquela noite. “Ela estava mais calada que o normal, nem respondeu quando perguntei sobre seu pai, que eu sabia estar adoentado”, declarou Antônio em seu testemunho, anos depois, tentando desesperadamente lembrar de um detalhe que o inocentasse do silêncio. Outro cliente, que preferiu não se identificar, mencionou que a jovem parecia evitar uma das mesas em particular, ocupada por três homens que ele nunca tinha visto antes, figuras de fora, com ternos caros demais para a informalidade do Riviera.
O que os registros policiais posteriormente revelaram é que aqueles três homens eram de São Paulo capital. Um deles, Eugênio Matarazo, pertencia a um ramo menor da famosa família de industriais e estava em Ribeirão Preto para avaliar possíveis investimentos na região, um predador a farejar o lucro. Os outros dois eram Paulo Brenner e Renato Aguiar, sócios de Eugênio em diversos empreendimentos, cúmplices silenciosos em qualquer que fosse o negócio, lícito ou ilícito. Nenhum deles possuía conexão aparente com Heleninha ou sua família, pelo menos não aos olhos da lei.
Por volta das 22:30, segundo testemunhas que bebiam silenciosamente em suas mesas, Eugênio chamou Heleninha e fez um pedido específico, um comando de voz que parecia carregar o peso do destino. Não se sabe ao certo o que foi dito naqueles poucos segundos, mas a garçonete pareceu hesitar antes de dirigir-se ao balcão, seus movimentos travados pela hesitação e pelo medo. Minutos depois, ela retornou com uma bandeja contendo três copos idênticos aos que já estavam na mesa. O conteúdo, presumivelmente whisky puro, tinha a mesma coloração âmbar dos copos anteriores, a ilusão da normalidade.
O que aconteceu nos 40 minutos seguintes permanece envolto em contradições, medos e lacunas nos depoimentos. O que sabemos com certeza, conforme registrado no boletim policial número 876 do ano de 1952, é que às 23:12 Eugênio Matarazo começou a demonstrar sinais de mal-estar súbito e terrível. De acordo com Paulo Brenner em seu depoimento, Eugênio “queixou-se de uma sensação estranha na língua, seguida por tontura e dificuldade para respirar”, o primeiro sinal de que a vida estava sendo arrancada de seu corpo. Antenor Correia, o proprietário do bar, imediatamente pediu que chamassem um médico. O Dr. Francisco Junqueira, que por coincidência sinistramente conveniente jantava em um restaurante próximo, chegou em aproximadamente 15 minutos, mas Eugênio já apresentava convulsões violentas e espuma na boca. Apesar dos esforços do médico, o homem faleceu ainda no local, no chão de madeira do Bar Riviera. A causa da morte seria posteriormente atribuída a envenenamento por uma substância que os limitados recursos forenses da época não conseguiram identificar com precisão, um veneno inteligente e traiçoeiro.
As atenções voltaram-se imediatamente para Heleninha, o ponto fraco, o bode expiatório perfeito. Segundo Antenor, ela havia desaparecido do bar minutos antes de Eugênio demonstrar os primeiros sintomas. “Achei que ela tinha ido ao banheiro, como fazia normalmente em seus intervalos”, declarou o proprietário, com uma voz que escondia o medo de perder seu negócio. Quando a polícia chegou, por volta da meia-noite, não havia sinal da jovem. Uma busca foi iniciada na casa dos Nogueira, em Vila Tibério, onde encontraram Dona Conceição sozinha, aparentemente desconcertada e em estado de choque com a chegada repentina dos policiais. Ela jurou não saber do paradeiro da filha e insistiu que Heleninha deveria ainda estar no trabalho. Sebastião, segundo sua esposa, havia saído mais cedo para visitar um irmão em Sertãozinho, cidade vizinha, e ainda não retornara. Naquela mesma noite, três policiais foram designados para procurar por Heleninha, enquanto outros dois permaneceram no Bar Riviera para interrogar as testemunhas. Os copos da mesa de Eugênio foram recolhidos como evidência, assim como a garrafa de whisky utilizada para servir as bebidas. O corpo da vítima foi levado ao necrotério municipal para a autópsia.
Na manhã seguinte, o mistério se aprofundou e se tornou tragédia. O corpo de Heleninha foi encontrado no Rio Pardo, a aproximadamente 15 km do centro de Ribeirão Preto. A descoberta foi feita por um pescador local, José Clementino, que avistou algo boiando próximo à margem. Inicialmente, segundo seu relato ao jornal A Cidade, ele pensou tratar-se de um fardo de roupas, até notar cabelos flutuando na água, cabelos castanhos misturados à sujeira do rio. A autópsia realizada pelo Dr. Paulo Meirelles indicou que Heleninha havia morrido por afogamento, uma morte lenta e brutal. No entanto, havia marcas em seus pulsos, sugerindo que ela poderia ter sido amarrada antes de entrar na água, uma captura violenta. Não foram encontrados sinais de violência sexual, mas havia hematomas no rosto e no abdômen consistentes com agressão física. O relatório também mencionava a presença de álcool em seu sistema, embora amigos e familiares insistissem que Heleninha não bebia, sugerindo que ela havia sido forçada a beber, ou a beber algo que continha álcool.
Sebastião Nogueira retornou a Ribeirão Preto na tarde do dia 15, visivelmente abalado com a notícia da morte da filha. Seu álibe foi rapidamente confirmado pelo irmão e por vizinhos em Sertãozinho, que atestaram sua presença na cidade na noite anterior. Dona Conceição, por sua vez, entrou em um estado de quase catatonia após receber a notícia da morte de Heleninha, sendo necessária internação temporária no Hospital Santa Teresa. O terror a havia silenciado.
A investigação tomou um rumo inesperado quando Paulo Brenner, um dos acompanhantes de Eugênio Matarazo, foi encontrado morto em seu quarto de hotel na manhã de 16 de fevereiro. A causa da morte, um aparente suicídio por ingestão de barbitúricos, deixou uma nota escrita à mão onde assumia responsabilidade pela morte de Eugênio, alegando desavenças relacionadas a negócios e uma profunda culpa. Não mencionava Heleninha, silenciando-a até mesmo na morte. Renato Aguiar, o terceiro homem da mesa, foi detido para interrogatório. Negou veementemente qualquer envolvimento nas mortes, insistindo que não conhecia Heleninha antes daquela noite e que seu único vínculo com Paulo e Eugênio era profissional, uma mentira ensaiada. De acordo com seus registros financeiros analisados posteriormente, Renato havia recentemente vendido sua participação em uma empresa de importação para Eugênio por um valor consideravelmente abaixo do mercado, o que o tornava duplamente suspeito. Os investigadores, no entanto, consideraram este fato suspeito, mas insuficiente para manter Renato detido.
O caso parecia encaminhar-se para um desfecho conveniente para todos: Paulo Brenner havia envenenado seu sócio por motivos financeiros e, sentindo-se culpado ou temendo as consequências, tirou a própria vida. Quanto a Heleninha, a teoria oficial, a que a elite queria que prevalecesse, era que ela havia reconhecido a situação, entrado em pânico e fugido, sendo posteriormente encontrada por pessoas não identificadas que a silenciaram permanentemente. Esta versão foi a que prevaleceu nos jornais e na memória coletiva da cidade por quase uma década. O caso foi oficialmente encerrado em junho de 1952, com a morte de Paulo Brenner classificada como suicídio, e a de Heleninha como homicídio por autor desconhecido.
O silêncio que se seguiu ao encerramento do caso era pesado demais para ser natural. Certos nomes deixaram de ser mencionados em conversas públicas. Certas perguntas eram recebidas com olhares evasivos e, curiosamente, a família Nogueira experimentou uma súbita, embora modesta, melhoria financeira nos anos seguintes. Sebastião abandonou seu posto no mercado municipal para abrir uma pequena loja de ferragens que prosperou rapidamente. Dona Conceição, recuperada de seu estado de choque, deixou de costurar para os outros e passou a dedicar-se exclusivamente ao lar, que agora era uma casa significativamente maior no recém-construído bairro de Campos Elísios, área destinada à crescente classe média da cidade. O silêncio havia sido comprado, o preço era a dignidade dos Nogueira.
Em 1961, quase uma década após os eventos no Bar Riviera, uma jovem jornalista chamada Clara Mendonça, recém-formada pela Universidade de São Paulo, retornou à sua cidade natal, Ribeirão Preto, e começou a trabalhar no jornal A Cidade. Idealista e ambiciosa, Clara estava interessada em histórias esquecidas que revelassem aspectos menos conhecidos da sociedade ribeirão-pretana, as rachaduras no verniz social. Foi durante uma conversa casual com seu tio Jaime Mendonça, antigo funcionário da delegacia central, que Clara ouviu pela primeira vez sobre o caso de Heleninha. A forma como seu tio mencionou o assunto, baixando a voz como quem teme ser ouvido pelo vento, despertou sua curiosidade profissional.
— Há coisas sobre aquela noite que nunca foram a público — disse Jaime, recusando-se a elaborar, mas o medo em seus olhos era eloquente.
Clara começou sua própria investigação, buscando nos arquivos do jornal todas as menções ao caso. Descobriu que a cobertura havia sido surpreendentemente breve para um evento tão dramático. Alguns artigos curtos nos dias imediatamente após as mortes, seguidos por um silêncio quase completo. Não houve acompanhamento da investigação, nem entrevistas com familiares ou amigos da vítima, nenhum questionamento sobre as circunstâncias estranhas que cercavam os eventos. Sua próxima parada foi o arquivo policial. Usando seus contatos como jornalista e a influência de seu tio, Clara conseguiu acesso ao arquivo do caso. Para sua surpresa, o dossiê era notavelmente fino. Faltavam páginas cruciais, fotografias estavam ausentes e certos testemunhos mencionados no índice não apareciam no corpo do arquivo. Era como se alguém, com poder e precisão cirúrgica, tivesse deliberadamente removido partes do registro oficial, selando o horror.
Uma das poucas fotografias remanescentes mostrava o local onde o corpo de Heleninha havia sido encontrado. Clara notou algo curioso. Ao fundo, quase fora de quadro, podia-se ver um carro estacionado na estrada rural próxima ao rio. O veículo parecia ser um Cadillac, um automóvel raro no Brasil daquela época, especialmente em uma cidade do interior. Clara decidiu procurar antigas testemunhas, começando por Antenor Correia, o ex-proprietário do Bar Riviera. Descobriu que ele havia vendido o estabelecimento em 1954 e mudado-se para Santos.
Através de contatos naquela cidade, conseguiu seu endereço atual. Antenor, agora um homem de 60 e poucos anos, mostrava-se visivelmente desconfortável com a visita da jornalista.
— Por que mexer nisso agora? Já faz tanto tempo? — Foram suas primeiras palavras, um apelo para o esquecimento.
Relutante a princípio, Antenor eventualmente concordou em falar, desde que seu nome não fosse publicado. Segundo ele, havia detalhes daquela noite que nunca apareceram nos registros oficiais. Heleninha não era apenas uma garçonete qualquer. O Bar Riviera, como muitos estabelecimentos da época, oferecia discretamente outros tipos de serviços para clientes seletos.
— Não era um prostíbulo declarado, mas certas garotas, incluindo Heleninha, ocasionalmente acompanhavam clientes após o expediente, mediante arranjos feitos com Antenor. Ela não era como as outras, sempre muito reservada, muito seletiva. Só aceitava certos clientes e apenas quando precisava muito do dinheiro — afirmou Antenor, com a voz baixa e tensa.
De acordo com ele, Heleninha usava o dinheiro extra para ajudar no tratamento médico de seu pai, que sofria de uma condição cardíaca não divulgada publicamente. O mais revelador, entretanto, foi a informação de que Eugênio Matarazo não era um estranho em Ribeirão Preto, como os jornais haviam sugerido. Ele visitava a cidade regularmente há pelo menos dois anos antes de sua morte, sempre hospedando-se no mesmo hotel e frequentando o Bar Riviera, e sempre requisitando a companhia de Heleninha.
— Era um arranjo discreto. Ele vinha a Ribeirão a cada dois ou três meses, enviava um recado com antecedência e eu informava Heleninha. Ela nunca parecia particularmente feliz com esses encontros, mas tampouco recusava — recordou Antenor.
Na noite de 14 de fevereiro, algo havia sido diferente. Eugênio chegou acompanhado, o que era incomum. Segundo Antenor, ele percebeu a tensão de Heleninha ao ver os três homens juntos, mas atribuiu isso à preocupação dela em manter sua descrição habitual.
— O que posso dizer é que minutos antes de servir aquela mesa, Heleninha recebeu um telefonema no bar. Quando voltou, estava pálida, com os olhos arregalados. Foi logo depois disso que serviu os drinks — revelou Antenor.
Esse detalhe do telefonema não constava em nenhum relatório oficial que Clara havia consultado, mais um silêncio orquestrado.
Intrigada, Clara continuou sua investigação, agora focada em encontrar outras pessoas que pudessem ter conhecimento sobre a relação entre Heleninha e Eugênio Matarazo. Sua busca a levou a Maria Silveira, uma antiga colega de trabalho de Heleninha, que agora vivia em Franca, cidade próxima a Ribeirão Preto. Maria, inicialmente relutante em falar sobre o passado, acabou cedendo após Clara garantir-lhe anonimato.
— Heleninha havia confidenciado semanas antes de sua morte que estava grávida. Ela estava apavorada. Disse que o pai da criança era um homem poderoso, casado, de São Paulo. Não queria causar escândalo, mas também não queria se desfazer do bebê. Estava planejando mudar-se para o Rio de Janeiro, onde tinha uma prima, e recomeçar a vida longe daqui — relatou Maria.
Quando Clara perguntou se o homem poderoso poderia ser Eugênio Matarazo, Maria hesitou.
— Ela nunca mencionou nomes, mas certa vez havia entrado no carro de um homem que os outros garçons disseram ser um industrial paulistano. Era um Cadillac preto.
Um Cadillac. O mesmo que aparecia parcialmente na fotografia do local onde o corpo de Heleninha foi encontrado. Clara descobriu que além de seus negócios oficiais, havia rumores do envolvimento de Eugênio com contrabando e outros negócios ilícitos. Sua morte havia sido tratada pela imprensa de São Paulo como um trágico acidente durante uma viagem de negócios, com poucas menções ao possível envenenamento. Mas, significativamente, Clara descobriu que o advogado da família Matarazo havia visitado Ribeirão Preto três vezes nas semanas seguintes à morte de Eugênio. Não havia registros oficiais dessas visitas, mas um funcionário aposentado do principal hotel da cidade recordava-se do homem e de suas reuniões com o então delegado-chefe Otávio Junqueira.
A menção ao delegado Junqueira levou Clara a uma nova linha de investigação. Otávio era primo do Dr. Francisco Junqueira, o médico que havia atendido Eugênio Matarazo no Bar Riviera. Ambos pertenciam a uma das famílias mais tradicionais e influentes de Ribeirão Preto, com laços históricos ao ciclo do café e, posteriormente, à indústria açucareira. Clara descobriu, através de registros municipais, que a família Junqueira havia vendido uma propriedade significativa para Sebastião Nogueira, pai de Heleninha, em 1953, a um preço notavelmente abaixo do valor de mercado. Era a mesma casa grande para onde os Nogueira haviam se mudado após a morte da filha. O preço do silêncio havia sido pago com tijolos e cimento.
À medida que Clara aprofundava sua investigação, começou a sentir resistência. Seu editor, no jornal A Cidade, mostrou-se progressivamente desinteressado em sua história, eventualmente atribuindo-lhe outras pautas que a afastaram do caso. Pessoas que inicialmente haviam concordado em falar com ela começaram a cancelar entrevistas. Seu tio Jaime, que havia despertado seu interesse no caso, agora evitava o assunto, com os olhos fixos no chão, temendo ser o próximo a pagar o preço do segredo. Determinada, Clara continuou sua investigação por conta própria. Decidiu procurar Renato Aguiar, o único sobrevivente da mesa de Eugênio Matarazo naquela noite fatídica.
Após alguma pesquisa, descobriu que ele vivia em uma chácara isolada nos arredores de Campinas. O encontro com Renato foi tenso, carregado de medo e culpa. O homem, agora na casa dos 50 anos, parecia envelhecido além de sua idade, como se o segredo o estivesse corroendo. Recebeu Clara em sua varanda, recusando-se a convidá-la para entrar. Suas mãos tremiam ligeiramente enquanto segurava um copo de água, um tremor constante.
— Não há nada a ser dito sobre aquela noite que já não tenha sido dito — afirmou com voz firme, contradizendo a fragilidade de seu corpo.
Clara mencionou suas descobertas: O relacionamento prévio entre Heleninha e Eugênio, a gravidez, o telefonema misterioso antes de servir as bebidas, o Cadillac na foto, a súbita prosperidade da família Nogueira após a tragédia.
— Teorias conspiratórias de uma jornalista em busca de sensacionalismo — rebateu Renato. No entanto, Clara notou como seus olhos evitavam os dela, como sua respiração acelerou, um batimento frenético.
— O que havia realmente no copo do Senhor Matarazo? — perguntou Clara diretamente, um golpe final.
Renato ficou em silêncio por quase um minuto, apenas o som da respiração forçada quebrando o ar.
— Sabe por que sobrevivi aquela noite, Senhorita Mendonça? Porque não bebi. Nunca bebo em negociações. Paulo também não bebeu muito, apenas molhou os lábios. Eugênio, por outro lado, esvaziou seu copo rapidamente.
— Então, foi mesmo veneno?
— Não sei o que era. Só sei que Paulo não teve nada a ver com isso. Ele não se matou. Foi silenciado, assim como a garota.
— Por quem e por quê? — insistiu Clara, com a voz embargada.
— Por que algumas pessoas não podem ter seus nomes manchados? Por que algumas famílias estão acima da lei? Por que algumas verdades são perigosas demais para virem à tona? — Renato levantou-se, indicando que a conversa havia terminado. — Se valoriza sua vida e sua carreira, senhorita. Abandone esta história. Já causou destruição suficiente.
Nos dias que se seguiram, Clara sentiu-se observada. Notou um carro escuro frequentemente estacionado perto de seu apartamento. Recebeu ligações onde ninguém falava do outro lado, apenas um silêncio pesado. Seu apartamento foi revistado durante sua ausência, embora nada de valor tenha sido levado, uma clara mensagem de ameaça. Ainda assim, persistiu, impulsionada pela fúria de Heleninha silenciada. Uma revelação crucial veio de uma fonte inesperada. Dona Conceição, mãe de Heleninha, agora uma senhora idosa vivendo na mesma casa comprada em Campos Elísios. Clara abordou-a após a missa dominical na igreja que ela frequentava regularmente. Inicialmente, dona Conceição recusou-se a falar sobre a filha.
— Algumas dores são melhor deixadas adormecidas — disse com olhos marejados.
No entanto, quando Clara mencionou sua visita a Renato Aguiar, algo mudou no semblante da senhora.
— Ele ainda está vivo, depois de tudo o que fez? — murmurou, quase para si mesma, com um ódio frio.
Clara aproveitou a abertura.
— O que exatamente ele fez, Dona Conceição?
A idosa olhou ao redor, como se temesse ser ouvida pelas paredes.
— Venha à minha casa amanhã. Sebastião estará no clube de xadrez à tarde toda. Há coisas que você precisa ver.
No dia seguinte, Dona Conceição recebeu Clara com uma expressão solene e a levou até um quarto nos fundos da casa que parecia inabitado há anos, o quarto de Heleninha. De um baú antigo, retirou uma caixa de sapatos desbotada.
— Estas são as últimas cartas de Helena. Ela as escreveu nas semanas antes de morrer, mas nunca as enviou. Encontrei-as entre seus pertences que a polícia devolveu.
As cartas, escritas em papel pautado com uma caligrafia delicada, eram endereçadas a uma prima no Rio de Janeiro. Nelas, Heleninha confirmava sua gravidez e expressava seu temor quanto à reação do pai da criança.
Ele diz que arruinaria sua vida se alguém descobrisse, escreveu em uma passagem. Ofereceu dinheiro para que eu “resolvesse o problema”, como ele chama. Quando recusei, vi algo mudar em seus olhos. Tenho medo, Maria, não apenas por mim, mas pela criança.
Em outra carta, datada de 10 de fevereiro, apenas quatro dias antes de sua morte, Heleninha mencionava:
Ele virá com seus amigos na sexta-feira. Diz que chegamos a um acordo, que me ajudarão a ir para o Rio. Não confio neles, especialmente no amigo mais novo, aquele de Campinas. Há algo em seu olhar que me perturba profundamente. Mas que escolha tenho?
Clara olhou para Dona Conceição, que chorava silenciosamente.
— Por que a senhora não mostrou estas cartas à polícia na época?
— Elas não estavam comigo. A polícia devolveu os pertences de Helena quase um mês depois. Quando encontrei as cartas e compreendi o que havia acontecido, procurei o delegado Junqueira. Ele me ouviu, pegou as cartas e disse que investigaria. No dia seguinte, Sebastião foi chamado para uma reunião privada. Quando voltou, estava com os papéis daquela casa. Disse que deveríamos ser gratos pela generosidade da família Junqueira, e nunca mais falar sobre Helena. Estas são cópias que fiz antes de entregar as originais.
— A senhora acredita que sua filha foi morta por causa da gravidez?
— Acredito que minha filha foi sacrificada para preservar a reputação de um homem poderoso. E acredito que meu marido e eu fomos comprados com esta casa e o silêncio de uma vida confortável — confessou a velha, com a voz quebrada pela vergonha.
As revelações de Dona Conceição forneceram a Clara as peças que faltavam. Heleninha, grávida de Eugênio Matarazo, representava uma ameaça à sua reputação e casamento. O encontro no Bar Riviera não foi casual, foi uma emboscada premeditada. O telefonema misterioso que Heleninha recebeu provavelmente foi um aviso, talvez de alguém que soubesse do plano e tentou alertá-la. Quanto ao envenenamento, Clara suspeitava que não tinha sido obra de Heleninha, como sugerido oficialmente, nem de Paulo Brenner, como indicado em sua suposta carta de suicídio. Sua teoria era que Renato Aguiar, o sobrevivente, era o verdadeiro responsável, talvez agindo a mando da família Matarazo, ou possivelmente por conta própria, para eliminar um sócio problemático e a moça, testemunha inconveniente, de uma só vez.
O assassinato de Heleninha provavelmente ocorreu para silenciá-la definitivamente. As marcas em seus pulsos sugeriam que ela havia sido capturada, possivelmente levada à força até o Rio Pardo, naquele mesmo Cadillac que aparecia parcialmente na fotografia. Paulo Brenner, o outro sócio, foi silenciado da mesma forma quando se tornou um risco. Sua morte disfarçada de suicídio. A investigação foi encoberta graças à influência da família Matarazo e à cooperação das autoridades locais (Junqueira), que receberam compensações pelo seu silêncio, assim como a família Nogueira.
Clara escreveu sua matéria, documentando meticulosamente cada descoberta, cada conexão, cada inconsistência nos registros oficiais. Intitulou-a: “Heleninha de Ribeirão Preto: A Verdade Silenciada”, e apresentou-a ao seu editor. Como esperava, ele recusou-se a publicá-la, citando falta de evidências concretas e possíveis repercussões legais contra o jornal. Determinada a não deixar a história morrer, Clara enviou cópias do artigo para jornais em São Paulo e Rio de Janeiro.
Após semanas sem resposta, recebeu uma ligação de um editor do Diário de Notícias do Rio, interessado em publicar uma versão condensada como parte de uma série sobre crimes históricos não resolvidos. Na manhã em que o artigo seria publicado, Clara não apareceu para trabalhar. Preocupados, colegas foram até seu apartamento, encontrando-o vazio, com sinais de que ela havia saído às pressas. Sua escova de dentes ainda estava no banheiro, roupas no armário, anotações espalhadas pela mesa de trabalho. Seu carro permanecia estacionado em frente ao edifício. Uma investigação policial foi aberta, mas rapidamente arquivada por falta de evidências. O artigo no Diário de Notícias nunca foi publicado, removido da edição na última hora, sem explicações. Era como se ela, assim como sua investigação, tivesse simplesmente evaporado, engolida pelo mesmo silêncio que havia consumido Heleninha.
Em 1968, 7 anos após o desaparecimento de Clara, um jovem estudante de jornalismo da Universidade de São Paulo, Víctor Almeida, iniciou uma pesquisa sobre desaparecimentos não resolvidos de jornalistas no Brasil. Ao investigar o caso de Clara Mendonça, encontrou uma pasta em um arquivo morto na Biblioteca Municipal de Ribeirão Preto. A pasta continha fragmentos do que parecia ser o rascunho de uma matéria sobre Heleninha Nogueira. Entre os documentos, Víctor descobriu uma fotografia que não constava nos arquivos oficiais. A imagem mostrava claramente o Cadillac preto estacionado próximo ao local onde o corpo de Heleninha foi encontrado. A placa era parcialmente visível, o suficiente para que Victor iniciasse sua própria investigação sobre o veículo. Através de contatos na Delegacia de Trânsito de São Paulo, conseguiu confirmar que o automóvel era registrado em nome de Ricardo Matarazo, irmão mais novo de Eugênio, que havia vindo para encobrir os rastros. Um detalhe curioso era que o carro havia sido reportado como roubado dois dias após a morte de Heleninha, apenas para reaparecer uma semana depois, abandonado em uma estrada secundária nos arredores de Campinas. Curiosamente, não muito longe da propriedade de Renato Aguiar.
Víctor também localizou o prontuário médico de Sebastião Nogueira no Hospital Santa Teresa. Os registros confirmavam uma condição cardíaca crônica, mas revelavam algo mais. Em janeiro de 1952, um mês antes dos eventos no Bar Riviera, Sebastião havia sido internado com sintomas de envenenamento. O diagnóstico oficial era intoxicação alimentar, mas as anotações do médico assistente mencionavam possível envenenamento por substância desconhecida. Este detalhe intrigante levou Víctor a uma nova teoria. E se o alvo original do envenenamento não fosse Eugênio Matarazo, mas sim o próprio pai de Heleninha? A internação de Sebastião coincidiu com o período em que, segundo as cartas encontradas por Clara, Heleninha havia revelado sua gravidez ao pai da criança.
Os registros do hospital também mostravam que durante a internação de Sebastião, ele recebera visitas de Otávio Junqueira, o mesmo delegado que posteriormente conduziu a investigação das mortes no Bar Riviera, uma conexão sinistra e inegável. Victor decidiu procurar Dona Conceição novamente. Descobriu que ela havia falecido em 1965, aparentemente de causas naturais. Sebastião Nogueira ainda vivia na mesma casa em Campos Elísios, agora um homem idoso e recluso. As tentativas de Víctor de entrevistá-lo foram recebidas com hostilidade e ameaças de chamar a polícia, o medo e o segredo ainda o sufocavam.
Uma pista promissora surgiu quando Víctor localizou Antônio Ferreira, um dos clientes regulares do Bar Riviera, que havia testemunhado os eventos daquela noite. Antônio, agora com quase 70 anos, vivia em uma casa de repouso em Batatais, cidade próxima a Ribeirão Preto. Inicialmente confuso devido à idade avançada, Antônio aos poucos recordou-se daquela noite ao conversar com Víctor.
— A moça estava diferente, sim, parecia assustada. Mas não foi só isso. Antes de servir aquela mesa, eu a vi colocando algo em um dos copos.
— Tem certeza disso? — perguntou Víctor surpreso.
— Tenho, mas quando contei ao delegado, ele disse que eu devia estar enganado, que a luz do bar era fraca, que eu havia bebido demais. Depois um policial me procurou, disse que seria melhor para todos se eu não mencionasse esse detalhe.
— O senhor viu qual copo ela alterou?
— Não tenho certeza, mas lembro que ela parecia determinada. Não parecia estar agindo sob pressão. Quando o homem começou a passar mal, ela não pareceu surpresa, simplesmente desapareceu.
Este testemunho lançava uma nova luz sobre o caso. Talvez Heleninha tivesse de fato envenenado Eugênio Matarazo deliberadamente. Mas por quê? Vingança pela pressão para abortar? Medo do que ele poderia fazer para silenciá-la? Ou havia algo mais? Alguma ameaça que não constava nas cartas encontradas por Clara. Um novo elemento surgiu quando Victor conseguiu acesso a um arquivo confidencial na antiga estação ferroviária de Ribeirão Preto. Os registros mostravam que na noite de 14 de fevereiro de 1952, uma passagem de trem para o Rio de Janeiro havia sido comprada em nome de Helena Nogueira. O bilhete nunca foi utilizado. Isto sugeria que Heleninha realmente planejava fugir após o encontro no Bar Riviera. Talvez o plano fosse eliminar Eugênio Matarazo e depois desaparecer antes que qualquer suspeita recaísse sobre ela. Se assim fosse, algo deu errado. Alguém a interceptou antes que pudesse chegar à estação.
Víctor decidiu investigar o último elo vivo dessa história, Renato Aguiar. Descobriu que o homem havia falecido em 1967 de um aparente ataque cardíaco. No entanto, seu obituário mencionava que nos últimos anos de vida, Renato havia se tornado extremamente paranóico, raramente saindo de casa e contratando segurança privada para sua propriedade. Entre os pertences de Renato leiloados após sua morte, Víctor conseguiu adquirir um diário de capa de couro. As entradas eram esparsas e crípticas, mas uma delas, datada de 10 de fevereiro de 1961, coincidentemente 9 anos após os eventos no Bar Riviera, chamou sua atenção.
“Aniversário do Pacto. Mais um ano carregando este fardo. Eugênio foi tolo. Paulo foi fraco. A garota foi mais esperta do que imaginávamos. Mas no final todos pagaram, menos eu. Sempre me pergunto se ela realmente sabia o que estava fazendo quando colocou aquilo no copo. Se soubesse que era para ela mesma, teria feito diferente.”
Esta entrada enigmática sugeria um novo cenário, um terror ainda maior. E se Heleninha realmente tivesse colocado algo na bebida, mas tivesse sido enganada sobre a natureza da substância, talvez acreditasse estar usando um sedativo, algo para incapacitar temporariamente Eugênio, quando na verdade era um veneno letal. Ou talvez a entrada de Renato se referisse a um copo diferente. Não aquele que matou Eugênio, mas o que ela própria poderia ter bebido posteriormente, que a deixou vulnerável para ser capturada e levada ao Rio Pardo. O diário também continha uma lista de pagamentos periódicos a diversas pessoas identificadas apenas por iniciais. Um desses beneficiários, S. N., recebia quantias substanciais a cada 3 meses. As datas dos pagamentos começavam em março de 1952, um mês após as mortes, e continuavam até 1966. Víctor suspeitou que S. N. poderia ser Sebastião Nogueira, o pai.
Com estas novas informações, Víctor procurou o delegado Roberto Meirelles, sobrinho do Dr. Paulo Meirelles, que realizara a autópsia de Heleninha. Roberto tinha a reputação de ser incorruptível, um dos poucos policiais que resistiam à cultura de conivência, que ainda prevalecia na cidade. Víctor compartilhou suas descobertas, incluindo a fotografia do Cadillac, os registros do hospital, o testemunho revisado de Antônio Ferreira, o bilhete de trem não utilizado e as entradas do diário de Renato Aguiar. Roberto ouviu atentamente, tomando notas detalhadas.
— Isto é suficiente para reabrir o caso? — Perguntou Víctor, a esperança frágil em sua voz.
— Oficialmente, provavelmente não. Os envolvidos estão mortos. As evidências são circunstanciais e, francamente, ainda existem pessoas em posição de poder que prefeririam manter esta história enterrada — respondeu Roberto, com um olhar de resignação.
— Então, não há nada a ser feito. A verdade sobre Heleninha jamais virá à tona.
— Eu não disse isso — respondeu Roberto com um olhar determinado. — Não posso reabrir o caso oficialmente, mas posso conduzir uma investigação discreta.
— E você, como jornalista, pode fazer o que Clara Mendonça tentou fazer, e acabar como ela? — questionou Víctor com evidente apreensão, temendo o destino de sua antecessora.
— Os tempos mudaram. As famílias que tinham tanto poder na época já não exercem a mesma influência. Além disso, temos algo que Clara não tinha: aliados. Eu serei seu contato na polícia. Tenho amigos em São Paulo que podem nos dar cobertura institucional.
Nos meses seguintes, Víctor e Roberto trabalharam incansavelmente, reunindo mais evidências, conectando pontos que haviam permanecido desconectados por mais de uma década e meia. Descobriram que Paulo Brenner, antes de sua morte, havia deixado um envelope lacrado com seu advogado para ser aberto apenas no caso de sua morte por causas não naturais. O advogado, temendo por sua própria vida, nunca entregou o envelope às autoridades, mantendo-o escondido até sua própria morte. Poucos anos depois, Victor conseguiu localizar a filha do advogado, agora vivendo em Curitiba, que ainda mantinha o envelope entre os pertences do pai. O documento continha uma carta manuscrita onde Paulo expressava seu temor por estar sabendo demais sobre os negócios obscuros de Eugênio e principalmente sobre o plano para silenciar a garota do bar. Mencionava explicitamente Renato Aguiar como o arquiteto do plano, afirmando que ele havia manipulado tanto Eugênio quanto Heleninha, visando eliminar um sócio problemático e uma testemunha inconveniente de uma só vez.
A carta não explicava claramente como o plano havia funcionado, mas sugeria que Heleninha fora convencida a administrar uma substância a Eugênio, acreditando ser algo inofensivo, talvez um sedativo, que permitiria que ela escapasse para a estação de trem enquanto ele estivesse incapacitado. Na realidade, a substância era letal e a própria Heleninha havia sido usada como instrumento para um assassinato premeditado. Quando Eugênio começou a apresentar sintomas muito mais graves do que ela esperava, Heleninha entrou em pânico e fugiu. Foi interceptada por alguém, provavelmente o próprio Renato ou um cúmplice, e levada à força para o Rio Pardo, onde foi silenciada permanentemente. Paulo, testemunha de todo o plano e começando a questionar seu papel nos eventos, tornou-se o próximo alvo. Sua morte disfarçada de suicídio. A família Nogueira, possivelmente sob ameaças ou simplesmente aproveitando a oportunidade de melhorar sua situação financeira, aceitou o silêncio em troca de uma nova casa e pagamentos contínuos. O delegado Junqueira, já conectado à família Matarazo por laços sociais e comerciais, garantiu que a investigação seguisse o rumo conveniente.
Víctor escreveu uma série de reportagens detalhando o caso, publicadas inicialmente em um jornal universitário e posteriormente reproduzidas em veículos maiores. Diferentemente de Clara, ele não desapareceu misteriosamente, mas enfrentou ameaças, processos por difamação, todos eventualmente retirados e tentativas de desacreditá-lo profissionalmente. O caso Heleninha nunca foi oficialmente reaberto. As evidências, embora substanciais, eram em grande parte circunstanciais, e o tempo havia apagado muitos dos rastros que poderiam ter levado a uma conclusão definitiva. No entanto, a história ressurgiu na consciência pública, tornando-se parte do folclore de Ribeirão Preto.
O Bar Riviera há muito havia sido demolido, dando lugar a um edifício comercial. No entanto, funcionários que trabalham no local relatam ocasionalmente ouvir sons estranhos durante a noite, o tilintar de copos, passos apressados e, às vezes, um sussurro feminino dizendo: “Eu não sabia o que havia no copo”. Em 2001, quase 50 anos após os eventos, uma placa discreta foi colocada na margem do Rio Pardo, próxima ao local onde o corpo de Heleninha foi encontrado. A placa, iniciativa de uma associação local de direitos das mulheres, traz uma inscrição simples em memória de Helena Maria Nogueira, cujas verdades foram afogadas nestas águas. A cada 14 de fevereiro, flores aparecem misteriosamente junto à placa.
O que permanece como fato documentado nos arquivos da cidade é que três pessoas morreram naqueles dias de fevereiro de 1952 e uma quarta desapareceu anos depois enquanto investigava o caso. Os detalhes exatos do que realmente aconteceu, as motivações verdadeiras de cada um dos envolvidos, os pactos de silêncio e as traições. Tudo isso permanece parcialmente obscuro, como um quebra-cabeça, onde algumas peças foram deliberadamente destruídas. O caso de Heleninha de Ribeirão Preto permanece como um lembrete sombrio de uma época em que poder e privilégio frequentemente triunfavam sobre a verdade e a justiça. Uma era onde certos segredos eram enterrados junto com suas vítimas e onde o silêncio podia ser comprado a um preço que para alguns parecia justo. E assim, a história da moça do bar, que jurava não saber o que havia no copo, tornou-se mais do que um mistério não resolvido. Transformou-se em uma parábola sobre a fragilidade da verdade, a corruptibilidade da justiça e o peso opressor dos segredos que nunca deveriam vir à tona, mas que, como corpos no fundo de um rio, eventualmente encontram seu caminho à superfície, mesmo que décadas depois. O verdadeiro terror na história de Heleninha está no silêncio cúmplice de uma sociedade inteira, na frieza calculista com que vidas foram descartadas para preservar reputações. E na perturbadora possibilidade de que ao servir aquela bebida fatídica, Heleninha realmente não soubesse o que havia no copo, transformada em instrumento de sua própria destruição por aqueles que deveriam protegê-la, um eco do que poderia ter sido sua última afirmação desesperada: “Eu não sabia o que havia no copo. Eu juro que não sabia.”